23 anos depois ainda há vestígios do genocídio do Ruanda. Atrás de uma imagem restaurada, o país vive o problema das crianças nascidas de violações.
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Durante o genocídio de 1994, no Ruanda, entre 250 mil e 500 mil mulheres foram violadas, dizem as estimativas. Milhares de crianças nasceram dessa violência, mas ninguém sabe exatamente quantas. "A violação ainda é um assunto tabu por aqui", explica Samuel Munderere, da organização Survivors Fund (SURF) ou Fundo de Sobreviventes, que apoia vítimas de violação.
"As mulheres não falam sobre a violência que sofreram e a gravidez apenas lhes aumenta a vergonha", diz Munderere. Enquanto isso, os filhos das vítimas cresceram numa sociedade que os encara como "filhos de assassinos", em vez de vítimas.
Vítimas esquecidas
Na sua pequena casa em Kiyovu, um bairro pobre da capital de Kigali, Annonciata recorda 1994 em lágrimas. Toda a sua família foi assassinada e ela sofreu nas mãos das tropas. "Não sei quantos me violaram", diz.
Durante três meses, Annonciata foi violada todos os dias e, quando foi finalmente resgatada pela Frente Patriótica Ruandesa (FPR), soube que era seropositiva e que estava grávida. "Quando vi o meu filho pela primeira vez, não consegui parar de chorar."
Agora, o seu filho Paulin tem 22 anos. Em criança, costumava perguntar a Annonciata pelo pai, mas ela evitava o assunto. Paulin também prefere não falar sobre o passado da mãe e não o contou aos amigos, por receio de ser gozado. "Eu apenas finjo que nada aconteceu", afirma.
Mulheres como Annonciata têm pouca assistência familiar e criam os filhos em ambientes de pobreza. Muitas tentam abortar ou matar os filhos, por estes lhes fazerem recordar a violência sofrida.
Já os filhos sofrem preconceitos da sociedade patriarcal. As crianças são conhecidas como as "vítimas esquecidas". Como muitas delas nasceram depois de 1994, não recebem apoio do Governo por não serem consideradas vítimas do genocídio. Na tentativa de preencher a lacuna, a SURF fornece serviços de apoio psicológico e de ajuda a pequenas empresas.
Relação complicada entre mães e filhos
Eugenie conheceu Annonciata no grupo de apoio. No início do conflito, em 1994, o seu marido foi morto, pelo que ela se refugiou numa escola, pois as milícias Hutu começaram a exercer violência sobre a população tutsi. "Amarraram-me os braços e as pernas, taparam-me os olhos e violaram-me", lembra Eugenie, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.
Meses depois, Eugenie descobriu que estava grávida. Temia que o bebé fosse parecido com o violador, mas na primavera de 1995, Eugenie deu à luz Jean-Baptiste. "Ele era parecido comigo", diz, lembrando o sentimento de alívio.
Apesar disso, apenas anos mais tarde contou a Jean-Baptiste a verdade. "Eu estava sempre chateado com ela", admite Jean-Baptiste, de 22 anos. "Agora entendo o quão difícil deve ter sido [para ela]".
Ser filho ilegítimo
Também Nádia foi violada várias vezes durante o genocídio. "Quando penso nisso, é como se voltasse a sentir a dor". Recorda que os seus pais assistiram à violação mas não fizeram nada. "Nunca mais consegui olhar a minha mãe e o meu pai nos olhos".
Nove meses depois, nasceu Asimine. Uma filha que lhe fazia recordar o passado e, apesar de os seus pais terem sobrevivido aos assassinatos, eles recusaram-se aceitar a sua filha. "Eles vêem Asimine como uma criança ilegítima, apesar de me terem visto a ser violada".
Asimine cresce sem o pai. "Todos os meus colegas têm um pai e eu não, então eles gozavam comigo", lembra Asimine enquanto olha para o chão.
Feridas por sarar
Apesar de traumatizadas e do ambiente de pobreza, as mulheres violadas durante o genocídio do Ruanda lutaram para criar crianças saudáveis. Paulin pretende terminar os seus estudos em tecnologia informática. "E, claro, espero ter netos em algum momento", acrescenta Annonciata com um sorriso.
Eugenie também se orgulha do seu filho, que sonha ter a sua própria fazenda de porcos. No entanto, longe, nas colinas, Nádia é menos otimista. Está feliz por ter um neto, mas preferia que Asimine tivesse um emprego. Ainda assim, agradece a ajuda que o Survivors Fund lhe deu: uma vaca, que lhe permite sustentar a pequena família graças às vendas de leite.
Como diz Paulin, "as feridas vão curar, passo a passo". Mas ainda há um longo caminho a percorrer.
O genocídio no Ruanda
O genocídio no Ruanda, 25 anos atrás, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo a França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: picture-alliance/dpa
O pontapé do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então Presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o Presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do Presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiraram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação Radio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura", incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura desportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. E permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo, onde representam até hoje uma ameaça para o Ruanda.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste congolês.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do Governo. Os rebeldes assumiram o controlo da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um Governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o Presidente do Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebés, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.