Ruanda: Hutus e tutsis reconciliam-se após genocídio
Isaac Mugabi | rl
10 de maio de 2019
Em 1994, o massacre no Ruanda não poupou vizinhos, nem mesmo famílias. Muitos hutus mataram os seus cônjuges e até os seus filhos. Mas, 25 anos depois, há famílias que abriram as portas à reconciliação.
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Em abril de 1994, o genocídio do Ruanda chocou o mundo. Extremistas hutus atacaram a minoria tutsi no país, fazendo milhares de mortos. O massacre em grande escala não poupou vizinhos ou mesmo famílias. Muitos hutus mataram os seus próprios cônjuges por não partilharem a mesma etnia. Houve mesmo hutus que, sendo casados com mulheres tutsis, mataram os seus próprios filhos por entenderem que estes tinham características ou aparência de tutsis.
De 1994 para cá, a reconciliação do país é um tema que marca a agenda do governo. Nas montanhas de Cyangugu, no oeste do Ruanda, perto da fronteira com a República Democrática do Congo, a DW foi ao encontro de algumas famílias que decidiram colocar o passado atrás das costas e perdoar as atrocidades que ali se viveram há vinte e cinco anos atrás.
Thomas Ntanshutimwe é tutsi, Laurence Niyonsaba é hutu. Os dois decidiram passar por cima das fronteiras étnicas e religiosas que os separavam e casaram em 2012, abrindo portas a uma história de amor, da qual nasceram já cinco filhos.
Ruanda: Hutus e tutsis reconciliam-se após genocídio
À DW, Laurence recorda que a cerimónia do seu casamento juntou hutus e tutsis. "Nós, como Cristãos, temos uma forte ligação uns com os outros, ao ponto de podermos gostar ou amar alguém mais do que os nossos irmãos verdadeiros, de sangue. Então, nós éramos amigos e só depois concordámos em começar uma família", conta.
"Um novo Ruanda"
O marido de Laurence, Thomas, sobreviveu ao genocídio. Foi poupado porque, como era catequista, ensinou religião a muitos dos filhos dos assassinos. Talvez isso explique o porquê dele acreditar que os ruandeses devem seguir em frente. "O que quer que tenha acontecido já passou", diz Thomas Ntanshutimwe, que acrescenta: "As pessoas que foram mortas não vão ressuscitar. Eu acredito que todos temos de nos focar na nossa força interior. Uns, para pedir perdão, e os outros para que aprendam a perdoar, para assim ser possível construir um novo Ruanda".
Não muito longe da casa da família Ntanshutimwe, vivem duas outras famílias, uma hutu e outra tutsi, que decidiram também abraçar a reconciliação, deixando para trás o passado, como exigido pelo governo.
Pedir perdão
Nicholas Habiyaremye participou no genocídio e matou o pai de Mariana Umuliisa. Continuam hoje a viver lado a lado. "O Nicholas que veem aqui é o mesmo que matou o meu pai. Antes do genocídio vivíamos juntos em harmonia. O meu pai fornecia até o leite para a casa dele. Não tínhamos qualquer problema - mas durante o genocídio foi ele quem foi buscar o meu pai a casa e o matou", conta Mariana à DW.
Mais tarde, Nicholas Habiyaremye pagou pelos crimes que cometeu. Cumpriu 12 dos 15 anos de prisão a que foi condenado pelos tribunais de Gacaca, instituições criadas pela comunidade e que tinham como objetivo julgar casos referentes ao genocídio. Nicholas pôde sair três anos mais cedo. Mas, para isso teve, não só, de fazer serviço comunitário, mas também pedir perdão a Mariana e à sua família. "Antes do genocídio eu era um cristão dedicado. Mas quando começaram as mortes, eu e o meu cunhado juntámo-nos a um gang de assassinos. Matámos o pai da Marianna e, mais tarde, fui preso. No tempo em que estivemos na prisão, explicaram-nos que, se nos assumíssemos como culpados, seríamos libertados. Eu escrevi à família da Marianna e ao governo a pedir perdão", contou.
O genocídio no Ruanda
O genocídio no Ruanda, 25 anos atrás, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo a França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: picture-alliance/dpa
O pontapé do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então Presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o Presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do Presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiraram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação Radio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura", incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura desportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. E permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo, onde representam até hoje uma ameaça para o Ruanda.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste congolês.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do Governo. Os rebeldes assumiram o controlo da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um Governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o Presidente do Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebés, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.