Ingabire exige a libertação de todos os presos políticos.
Etienne Gatanazi | ar
18 de setembro de 2018
Em entrevista exclusiva à DW, a ruandesa Victoire Ingabire disse que não contava sair tão cedo da prisão e exige das autoridades a libertação de todos os prisioneiros políticos.
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Uma das principais figuras da oposição ruandesa, a economista Victoire Ingabire, foi libertada no último sábado (15.09) depois de oito anos na prisão. A decisão foi anunciada no quadro da libertação antecipada de mais de dois mil prisioneiros pelo Presidente Paul Kagame que dirige o Ruanda com uma mão de ferro há cerca de 25 anos. Logo depois da sua libertação, Ingabire exigiu às autoridades de Kigali a libertação de outros presos políticos.
A libertação surpresa de 2.140 presos, entre eles Victoire Ingabire e o músico Kizito Mihigo, foi decidida durante o conselho de ministros da passada sexta-feira (14.09) durante o qual uma amnistia proposta pelo Presidente ruandês foi aprovada.
Em entrevista exclusiva à DW, Victoire Ingabire disse não contava sair tão cedo da prisão.
"Não! Eu não esperava, foi uma grande surpresa para mim. Tomei conhecimento da notícia às 23h através da rádio ruandesa. Fiquei tão surpresa que não consegui dormir nesse dia".
Condições na prisão
A opositora também falou das condições da sua detenção durante esses oito anos. "Os primeiros cinco anos foram muito difíceis porque eu estava totalmente isolada, não tinha contato com o mundo exterior. Mas, em seguida, fui transferida com outros prisioneiros e nos últimos três anos, já poderia falar com outros presos, ou seja mantinha contato regular com os outros prisioneiros", recorda Victoire Ingabire ao sair da prisão de Mageragere, na capital ruandesa, Kigali.
Recorde-se, que Ingabire foi presa em 2010, pouco tempo depois do seu regresso ao Ruanda quando se preparava para apresentar a sua candidatura às eleições presidenciais contra o Paul Kagame. A sua candidatura era apoiada pelo partido das Forças Democráticas Unidas, uma formação política não reconhecida pelas autoridades de Kigali.
Genocídio em 1994
A opositora cumpria uma pena de 15 anos de prisão decretada pelo Supremo Tribunal. Ingabire foi acusada de "conspiração contra as autoridades por terrorismo e minimização do genocídio de 1994", que fez 800 mil mortos entre abril e julho de 1994, essencialmente no seio da minoria tutsi. Kigali acusou ainda Victoire Ingabire de ter negado a realidade do genocídio ao exigir que os autores dos crimes contra os hutus fossem também julgados. Mas Ingabire, na entrevista à DW, afirma que não se arrepende do seu passado.
"Não, não me arrependo do meu passado. Repito, nunca disse que em Ruanda houve um duplo genocídio. O que fiz foi exigir que também fosse feita justiça pelos crimes cometidos contra o povo hutu. Talvez, o que lamento é o local onde fiz este discurso. Trata-se de um lugar sensível para os sobreviventes do genocídio dos tutsis. Então, lamento e pedi perdão, e continuo a pedir perdão para aqueles que ficaram feridos com o meu discurso feito num local errado. Mas o que disse foi a verdade", declara.
Libertação dos presos políticosQuestionada se a sua libertação não poderá também ser uma tática ou estratégia política do Presidente Paul Kagame?
Ingabire quer a libertação de presos políticos
"Espero que não seja esse o caso, porque seria lamentável para o nosso país. Não, eu continuo convencida de que é um pequeno passo, tímido, porque ainda há nove membros de meu grupo que estão na prisão, além de muitas outras pessoas. São presos políticos como Mushaidi Déo , Diane Rwigara e outros que se encontram nas celas. E aproveito esta oportunidade, como fiz no primeiro dia da minha libertação, para pedir ao Presidente Kagame para que continue a ter posições deste tipo visando aceitar libertar outros presos políticos", disse Victoire Ingabire.
Ruanda é um país com um sistema multipartidário mas a maioria dos partidos reconhecidos apoia a Frente Patriótica Ruandesa (FPR), no poder há 24 anos. Contudo, o Partido Democrático Verde de Frank Habineza, o único partido da oposição tolerado, obteve 5% dos sufrágios nas legislativas do início de setembro, tendo conseguido dois lugares de deputado dos 80 assentos no Parlamento ruandês.
Em 2015, uma reforma da Constituição adotada por referendo permite a Paul Kagame apresentar-se para um novo mandato e eventualmente dirigir o país até 2034.
O genocídio no Ruanda
O genocídio no Ruanda, 25 anos atrás, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo a França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: picture-alliance/dpa
O pontapé do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então Presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o Presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do Presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiraram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação Radio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura", incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura desportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. E permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo, onde representam até hoje uma ameaça para o Ruanda.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste congolês.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do Governo. Os rebeldes assumiram o controlo da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um Governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o Presidente do Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebés, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.