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Jornal pan-africanista é reeditado em Lisboa após 110 anos

9 de março de 2021

"O Negro" é reapresentado esta terça-feira numa edição em papel para relembrar os três números de 1911. Jornal marcou o movimento de intelectuais pan-africanistas contra o racismo e o colonialismo em Portugal.

Portugal Zeitung O Negro
Investigadores no edifício número 47, na Rua Maria, nos Anjos, em Lisboa, onde funcionava o jornal “O Negro”Foto: João Carlos/ DW

Esta terça-feira, (09.03), é lançada em Lisboa, uma edição memorável do jornal "O Negro” que, em 1911, foi publicado por jovens negros que estudavam em Portugal. O jornal tinha como editor o são-tomense Ayres de Menezes.

Este órgão foi o primeiro periódico de uma geração de ativistas que, há 110 anos, se organizou em torno do pan-africanismo, da luta contra o racismo e da reivindicação do direito à autodeterminação para os territórios colonizados, nomeadamente em África.

A ideia partiu de um grupo de ativistas e investigadores, que desta forma traz à memória da jovem geração uma publicação que pretendia na altura combater a opressão e a tirania, apelava à construção de um partido africano e exigia da República portuguesa o fim da desigualdade racial.

A iniciativa lembrará os três únicos números desta publicação numa só edição em papel, .

Reedição é também uma homenagem

A investigadora Cristina Roldão diz que o jornal reflete uma época cheia de contradições, que fazem a ponte com algumas das contradições com as quais se confronta hoje a sociedade portuguesa. 

Investigadora Cristina Roldão diz que o jornal reflete uma época cheia de contradiçõesFoto: João Carlos/ DW

"Ao mesmo tempo que nós temos a instituição da Primeira República e a ideia da liberdade, igualdade e fraternidade, nós temos um cerco e uma corrida aos territórios africanos para os colonizar. A Primeira República restringe e avança na violência sobre os territórios e os povos africanos. E este jornal... O Ayres de Menezes e outros vão escrever exatamente sobre essa contradição. Que República é esta? Que igualdade é esta onde alguém - por causa da sua cor, por ter nascido noutro território - não tem autonomia, não tem autodeterminação sobre o seu próprio território?”, questiona.

Esta reedição, fruto de muita pesquisa, não visa apenas marcar uma efeméride. É também uma homenagem à continuidade do trabalho iniciado pelo nacionalista angolano Mário Pinto de Andrade, que deixou pistas para as gerações seguintes sobre o significado da resistência iniciada nos anos 1960.

"Nós chegamos a isto através de um trabalho do Mário Pinto de Andrade, a quem nós devemos muito. Ele faz uma análise das várias gerações antes da Casa dos Estudantes do Império”.

Estes foram sendo ativistas e críticos do colonialismo de 1930 até à instauração do Estado Novo, cuja postura praticamente abafou a reivindicação dos povos africanos. 

Contradições que levam à reflexão

Segundo a académica, o momento atual é também de grande contradição e obriga igualmente à reflexão não só na Europa. Cita o exemplo de países democráticos como os Estados Unidos - onde um polícia assassinou um cidadão afro-americano George Floyd.

"Como é que em Portugal nós temos o [luso-guineense] Bruno Candé que é assassinado debaixo de insultos racistas e tudo isto está dentro do nosso regime normal. Então, é muito importante nós termos reflexão sobre isso. Não são casos esporádicos. A democracia tem vindo a acomodar estas contradições e é preciso que ela deixe de o fazer”, apela Roldão, que desenvolveu um trabalho acerca de ativistas mulheres feministas negras, que atuaram no século passado.

Por seu lado, José Pereira e o investigador Pedro Varela, que também integram o projeto, publicaram recentemente um artigo na revista de História da Universidade de São Paulo sobre a geração de ativistas africanos e afrodescendentes, antirracistas, que viveram em Portugal entre 1911 e 1933, defensores de posições críticas relativamente ao colonialismo. Acabaria por abranger, durante a Primeira República e o início do Estado Novo.

José Pereira, um dos responsáveis pela reedição do jornal "O Negro", explica que a ideia surgiu do interesse do grupo em torno de trabalhos de investigação sobre o papel dos ativistas negros em Portugal, tendo como ponto de partida a Primeira República.

José Pereira é um dos responsáveis pela reedição do jornal "O Negro”Foto: João Carlos/ DW

"Foi um bocado desta confluência de interesses que surgiu esta ideia de conjugar esforços no sentido de publicar aquele que é o primeiro jornal de uma série de 11 títulos de imprensa surgidos entre 1911 e 1933. Foi precisamente uma das manifestações desse ativismo negro, antirracista que contestava o colonialismo, que surgiu durante esse período histórico", conta.

Resgatar o esquecimento

O objetivo, acrescenta José Pereira, é resgatar do esquecimento, sobretudo da invisibilidade e do silêncio, essa "manifestação de forte ativismo que ocorreu durante esse período". E, por aí, lançar a discussão acerca das reivindicações e das reflexões colocadas pelos ativistas negros daquela época.

"E também darmos, a nós e aos muitos ativistas antirracistas que hoje estão aí e que desenvolvem a sua atividade cívica e política, a possibilidade de termos uma ferramenta para levantarmos uma série de discussões que mais do que nunca têm atualidade".

A ideia foi avante também com o apoio da alemã, Raja Litwinoff e da editora Falas Africanas, que mobilizou financiamento na Alemanha para a paginação desta edição única e simbólica.

A distribuição, em formato pdf é gratuita, podendo esta edição comemorativa ser descarregada na página do Facebook "Jornal O Negro: 110 anos" ou adquirida em lojas como a Letra Livre, Bazofo & Dentu Zona, na Cova da Moura, e no Tchatuvelah, em Alcabideche.

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