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Seca e fome continuam a dizimar no sul de Angola

Borralho Ndomba
29 de outubro de 2024

A fome e a seca agravam-se no sul de Angola e os dados das autoridades contrastam com os da sociedade civil. Há relatos até de canibalismo motivado pela falta de alimento. A população pede ajuda urgente.

Falta de água nos Gambos, província da Huíla
Foto: Borralho Ndomba/DW

A situação da seca e da fome no sul de Angola continua a agravar-se, 14 anos após as primeiras denúncias, alerta o padre Jacinto Pio Wacussanga, da Associação Construindo Comunidades (ACC). A fome é gritante em todas as comunidades da região sul.

Nos Gambos, município da Huíla, uma conhecida terra de seca, o drama da fome está a dizimar famílias em situação de vulnerabilidade. Aldeias desabitadas e plantações secas, com poucos vestígios de folhas verdes, são evidências dos efeitos das alterações climáticas na região.

Famílias inteiras estão a deixar a área, principalmente dirigindo-se à Namíbia, onde a estiagem também é um facto, mas onde conseguem escapar da fome.

Tomás Benjamim, de 25 anos, tem irmãos e amigos na Namíbia que tomam conta de fazendas e gado em troca de comida. O jovem não imigrou porque conseguiu uma vaga como ajudante de pedreiro nas obras de construção da escola e do templo da missão católica dos Gambos, liderada pelo padre Pio Wacussanga.

Com uma remuneração de 25 mil kwanzas (25 euros), muito abaixo do salário mínimo nacional, Tomás enfrenta dificuldades para sustentar a sua família de dez membros, que inclui a sua mãe, avó e sobrinhos.

A população local recorre aos frutos silvestres, que já estão escassos. Tomás destaca: "Nesta época, já não há aquela fruta. A nossa única esperança está no padre Pio. Se o padre não conseguir apoio, também não conseguimos nos alimentar."

"Temos tido muitos casos de morte por causa da fome, principalmente entre os idosos e as crianças. Nós, os jovens, estamos a refugiar-nos na Namíbia. Lá, conseguimos encontrar um pouco de solução."

Nos Gambos, a seca é uma constante há mais de uma décadaFoto: Borralho Ndomba/DW

Alunos repartem merenda com os pais

A região foi afetada recentemente por uma praga de gafanhotos e queimadas anárquicas devastaram o pouco cultivo das comunidades. As famílias estão sem esperança, pois as dificuldades aumentam a cada dia. A camponesa Guilhermina Baptista alerta que a zona dos Gambos poderá registar muitas mortes devido à falta de comida.

"No ano passado, muitas pessoas morreram. Neste momento, ainda não reportámos mortes por fome aqui na nossa aldeia, mas, daqui a pouco, elas vão acontecer. As crianças passam o dia debaixo das árvores onde há frutos silvestres", conta.

Muitas crianças desistem das escolas por conta da fome. Dos 18.032 alunos matriculados no último ano letivo, 5.185 desistiram, segundo dados da administração do município dos Gambos.

Das 36 escolas do Ensino Primário existentes no município, apenas seis beneficiam do programa de merenda escolar. A refeição não é atribuída pelo Governo, mas pela empresa privada Grupo Carrinho, no âmbito da sua responsabilidade social. Devido à fome que aflige as famílias, os alunos frequentemente repartem a merenda com os pais, revela o professor Martinho Maurício.

O professor sublinha que "as condições de vida da população são críticas. Os pais acompanham os filhos de segunda a sexta-feira para comer um pouco da merenda escolar. Isso é alarmante, uma vez que o município depende da exploração de granito e da agricultura. Contudo, a agricultura depende muito da chuva, enquanto o granito é explorado diariamente".

Maurício alerta ainda para um contraste: "Ao entrar nos Gambos, observamos muitas pedreiras que extraem o que é precioso para o povo, mas não há retorno."

A fome é uma constante em toda a extensão do território dos Gambos. Crianças, idosos e mulheres com bebés ao colo são vistos a mendigar na cidade e nos mercados. No mercado da comuna do Chiange, sede do município dos Gambos, há mais pessoas a mendigar do que vendedores.

A autoridade tradicional, conhecida como Século Joaquim, considera a situação preocupante e relata que já recorreu à administração do município, mas nunca recebeu apoio.

"Como soba, a população vem à minha casa alertar que estão a morrer de fome. Quando os trago à administração municipal, esta não oferece nada. Esse é o problema que enfrento como autoridade tradicional aqui nos Gambos e não tenho como resolver a fome do povo", relata.

O padre Pio Wakussanga, da Associação Construindo Comunidades (ACC), tem trabalhado junto das comunidades locaisFoto: Borralho Ndomba/DW

Dados alarmantes

Um relatório recente das Nações Unidas aponta que 27 milhões de pessoas na África Austral enfrentam sérias dificuldades alimentares devido ao fenómeno El Niño, e a situação tende a agravar-se. O sul de Angola está entre as regiões mais afetadas.

Dados da administração municipal dos Gambos indicam que 29.179 famílias estão em situação de vulnerabilidade, com a comuna do Chiange registando o maior número de famílias vulneráveis: 17.216. A comuna da Chibemba conta 11.963 vítimas da fome.

Joaquim Chipandeca, diretor municipal das Infraestruturas, Equipamentos Urbanos, Saneamento e Ambiente dos Gambos, explica que o acesso à água é a maior preocupação da administração. No entanto, acredita que o problema da distribuição será resolvido.

"Infelizmente, o município é conhecido como a terra da seca e da fome, mas a administração tem trabalhado para inverter esta situação. Devido às questões climáticas, estamos numa zona que chove pouco, o que torna o acesso à água a nossa maior preocupação", recorda.

O padre Jacinto Pio, que coordena a ACC, afirma que cerca de 70 mil famílias estão afetadas pela fome e pela seca nos Gambos. A Missão Católica Santo António dos Gambos, gerida pelo padre Pio, serve como refúgio para as famílias vulneráveis, oferecendo diariamente alimentação a centenas de pessoas.

Em declarações à DW, o padre enfatiza que, 14 anos depois da primeira denúncia de seca, há mais recuos do que avanços nos programas de combate ao fenómeno.

"Não há nenhum programa de contingência para acudir às comunidades, nem para lidar com os efeitos da má nutrição. A má nutrição está fazendo vítimas. O Governo está a mexer em áreas de reserva estratégica de biomassa, cujo impacto será catastrófico para Angola daqui a 50 anos. Portanto, não há progresso. Há mais retrocessos do que avanços", denuncia.

A seca na Huíla tem levado a população a migrar para a NamíbiaFoto: Borralho Ndomba/DW

Estado de emergência

Jacinto Pio Wacussanga alerta que a região sul poderá registar um número elevado de mortes por fome se não forem criados planos de emergência para ajudar as famílias vulneráveis. Responsabiliza o Presidente da República, João Lourenço, por não decretar estado de emergência para as vítimas da seca em Angola.

"Se não houver um programa de emergência para ajudar as pessoas, vão se registar mortes. O problema está na cabeça. É o senhor Presidente da República quem deve tomar a decisão para desencadear um programa de assistência alimentar nutricional e um programa de emergência para socorrer as pessoas", exige o sacerdote.

Populares ouvidos pela DW relataram que uma família que imigrou para a Namíbia teria comido a carne de uma criança que morreu de fome durante a viagem. O relato do caso de canibalismo chegou à Missão Católica dos Gambos e o padre Pio está a investigar.

"Famílias que saíram daqui da Huíla para a República da Namíbia e a mãe cozinhou a criança. Se for verdade, esta mãe deve estar sob um nível elevadíssimo de stress e com alguns problemas mentais. A fome provoca isso. Realmente, a fome transtorna-nos mentalmente", avisa.

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