STP: Delfim Neves acusa "poder" do ataque ao quartel-general
Lusa
17 de dezembro de 2022
Ex-presidente do parlamento são-tomense Delfim Neves afirma que "poder tem as mãos metidas" no assalto ao quartel-general militar, a 25 de novembro, caso em que é arguido. Objetivo é forçar alteração constitucional, diz.
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"Não podemos ter dúvidas de dizer isto, porque seríamos cínicos ao dizer que esta operação não tem mãos metidas do atual poder", afirmou, em entrevista à Lusa, em Lisboa, Delfim Neves, que foi detido em 25 de novembro após ter sido alegadamente identificado como mandante do assalto ao quartel-general das Forças Armadas, em São Tomé, em que morreram quatro pessoas.
Delfim Neves apontou o "alinhamento dos discursos" do atual poder desde as legislativas de setembro, em que a Ação Democrática Independente (ADI), de Patrice Trovoada, venceu com maioria absoluta, e nas quais foi eleito como deputado pelo recém-criado movimento Basta.
Segundo Delfim Neves, que presidiu à Assembleia Nacional de São Tomé e Príncipe no mandato 2018-2022 no quadro da 'nova maioria' (Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe/Partido Social Democrata - MLSTP/PSD e coligação PCD/UDD/MDMF), os discursos do novo primeiro-ministro, Patrice Trovoada, da nova presidente do parlamento, Celmira Sacramento, e do Presidente da República, Carlos Vila Nova, vão no sentido de uma alteração da Constituição. "Para quê? Ninguém sabe", disse.
Questionado se poderá tratar-se de uma alteração para um regime presidencialista - como Patrice Trovoada admitiu à Lusa -, Delfim Neves afirmou que este modelo "coloca alguns riscos" e advertiu para o que considerou ser o poder total das autoridades.
Três dos quatro assaltantes morreram
Após o assalto, três dos quatro assaltantes morreram, tal como o ex-combatente Arlécio Costa, também alegadamente identificado como mandante do ataque, quando se encontravam sob custódia dos militares e após terem sido sujeitos a maus-tratos, como testemunham vídeos e fotografias que circularam nas redes sociais nos dias seguintes.
"Se tudo quanto aconteceu, da tortura, das mortes, e ninguém [dos militares] até hoje foi no mínimo detido, no mínimo interrogado, é porque estão protegidos, naturalmente. Se os militares matam de forma sangrenta e o poder protege, o que custa ir buscar 10 ou 12 deputados de outro lado? Não custa nada, porque o poder já deu sinais de que 'podes fazer que nada te acontece, nós vamos proteger-te'", comentou.
Delfim Neves referia-se assim aos votos da oposição que a ADI teria de conquistar para conseguir uma maioria qualificada de 36 deputados para proceder a uma alteração constitucional. Atualmente o parlamento são-tomense tem 30 deputados da ADI, 18 do MLSTP, cinco do 'movimento de Caué' e dois do Basta.
Para o deputado, "a suspeição [de envolvimento nos acontecimentos] que recai sobre o senhor primeiro-ministro é natural, porque foi a primeira pessoa, nas primeiras horas [após o ataque] a falar do assunto e dizer o nome das pessoas [detidas] e dizer quais são os passos seguintes".
O ex-presidente do parlamento são-tomense foi detido em sua casa pelos militares às primeiras horas da manhã de 25 de novembro, logo depois de o ataque ter sido considerado "neutralizado", e após ter sido alegadamente identificado pelos assaltantes como financiador.
Delfim Neves permaneceu durante 10 horas no quartel militar e ao final do dia foi levado, tal como os restantes arguidos, para as instalações da Polícia Judiciária após intervenção da comunidade internacional. Quatro dias depois, foi presente a tribunal, tendo sido libertado mediante termo de identidade e residência e apresentação periódica às autoridades.
Na entrevista à Lusa, reiterou que está "completamente inocente" neste caso e insiste que se trata de "uma tramoia, uma montagem" para o eliminar. "Se não estivesse lá o nome do Delfim Neves e do Arlécio Costa, que valor teria esta operação? Ninguém valorizava isto", disse, afirmando que os seus "opositores, sobretudo o atual poder", o veem como "uma ameaça política".
"O meu ADN político não se coaduna nem pactua com subversões daquilo que está na Constituição. Não se coaduna, muito menos, com política de mãos sujas de sangue", referiu. "Acredito que isto foi uma tramoia na perspetiva de tirar este obstáculo da autoestrada", disse, referindo-se a si próprio.
Delfim Neves nega qualquer envolvimento no ataque. "Não tenho dinheiro para esse tipo de operação, e ainda que tivesse, tenho muitas coisas para fazer com dinheiro", mencionou.
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Em Portugal para fazer exames médicos
Delfim Neves, que se mantém como deputado, deslocou-se a Portugal para fazer exames médicos, na sequência de uma cirurgia às cosras realizada no início do ano, e afirma que a sua situação se agravou por ter estado "sentado durante 76 horas" na Polícia Judiciária, enquanto aguardava para ser ouvido pela juíza de instrução criminal.
Questionado sobre a sua relação com Arlécio Costa, confirmou que este o apoiou na campanha para as presidenciais de 2021, mas garantiu que nunca foram amigos nem falaram sobre o assalto, e adiantou que, recentemente, estavam "de costas voltadas" por causa de negócios.
A Polícia Judiciária portuguesa está a apoiar as autoridades são-tomenses nas investigações, a pedido do Governo de Patrice Trovoada. As Nações Unidas enviaram um representante do Alto-Comissariado para os Direitos Humanos para a África central para averiguar a situação dos maus-tratos aos detidos sob jurisdição militar, e a Comunidade Económica dos Estados da África Central (CEEAC) também tem uma missão de informação no terreno.
Segundo o Ministério Público são-tomense, foram detidas 17 pessoas no âmbito das averiguações, das quais nove ficaram em prisão preventiva. O Ministério da Defesa confirmou esta sexta-feira (16.12) que os militares detidos se encontram sob custódia militar, mas disponíveis para as diligências das autoridades judiciárias.
São Tomé e Príncipe: Como a pandemia mudou a vida das pessoas
Na capital do país, São Tomé, profissionais dos mais diversos setores ralatam as intempéries causadas pela Covid-19, mas falam em esperança num futuro sem pandemia.
Foto: João Carlos/DW
Impacto negativo das restrições
Quem chega às ilhas de São Tomé e Príncipe, plantadas no meio do Oceano Atlântico, depara com um ambiente de quase total abstração sobre a existência da Covid-19. A maior parte da população não usa máscara facial. Mas a pandemia do novo coronavírus obrigou a muitas restrições e teve um forte impacto negativo na vida social e económica deste país da África Central.
Foto: João Carlos/DW
Normalidade em plena pandemia
Apesar dos vários avisos e informações oficiais recomendarem cuidados preventivos e proteção por causa do coronavírus e de suas variantes, muitos são-tomenses levam a sua vida quotidiana com normalidade, praticamente a ignorar que a Covid-19 constitui um problema de saúde pública. No entanto, há quem reconheça que a doença provocou perturbações no quotidiano da população.
Foto: João Carlos/DW
A vida está mais difícil
Taxista, 40 anos de idade, pai de quatro filhos, Euclides Gonçalves é quem sustenta a família. A vida que já não era está fácil ficou ainda mais difícil desde o início da pandemia de Covid-19. "Sentimos muita pressão com esta pandemia", afirma. "O negócio arrefeceu e é mais complicado ganhar dinheiro", diz o taxista, reconhecendo que "vivemos um momento de crise mundial".
Foto: João Carlos/DW
Subsídio do Estado é irrisório
O subsídio de cerca de 60 euros atribuído apenas uma vez pelo Governo são-tomense foi irrisório face à dimensão dos prejuízos que os taxistas sofrem depois do surto da pandemia. "O santomense nunca acreditou que houve Covid-19 em São Tomé e Príncipe", afirma Euclides, explicando a razão pela qual já não exige aos passageiros o uso de máscaras.
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Clientes também têm dificuldades
Fernando Afonso Vila Nova, motoqueiro de 62 anos de idade, também tem limitações para sustentar a família. Ainda com filhos na escola, consegue o sustento com muito sacrifício, já agravado pelo acidente de viação que lhe afetou as pernas e um braço. A crise pandémica agudizou a sua situação e de muitos colegas: "Há pouco movimento porque os clientes também passam por dificuldades".
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Nem barba, nem cabelo e tampouco bigode
A Barbearia Rita é uma das mais antigas da cidade de São Tomé. Edne Sacramento, cabeleireiro há 17 anos e pai de três filhos, testemunha em que medida a Covid-19 prejudicou a sua atividade. "Antes da pandemia, tínhamos muitos clientes", relata. Mas "depois da pandemia, muitos sentiam aquele receio de vir cá ao salão cortar cabelo, apesar de cumprirmos as regras todas".
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Escassez de mercadorias
Maria Helena da Mata, há mais de 30 anos no comércio, diz que é "muito forte" o impacto na sua atividade. O país depende totalmente do exterior: "Houve falta de transporte marítimo, o que provocou escassez de mercadorias". Além disso, a crise afetou a situação das famílias. "As pessoas não têm dinheiro, não têm poder de compra. Isso faz com que o comércio esteja também numa situação caótica".
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Encerramentos e incertezas
Os setores da restauração, viagens e eventos não ficaram ilesos. Elisabete Carvalho avalia a atual conjuntura com algum alívio porque fez investimentos próprios sem recorrer a créditos. Ainda assim, foi obrigada a fechar os serviços e isso acabou por afetar muitas famílias que empregava. "Neste momento, tudo é uma incerteza", refere.
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O peixe de cada dia
Nascido na localidade de Praia Gambôa, arredores de São Tomé, o pescador Cristovão da Trindade confirma que a sua atividade também sofreu com a redução da campanha e limitação à circulação das "palaiês" [vendedeiras de peixe], afetando o rendimento de toda a comunidade. Agora que diminuiu o número de casos de infetados, ele e os demais pescadores tentam recuperar o tempo perdido.
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Acostumar-se ao teletrabalho
O jurista Weiko Bastos diz que a pandemia pesou fundamentalmente na redução da receita e dos honorários. Levou à diminuição da quantidade e qualidade de clientes. Isso, aliado ao confinamento, atingiu igualmente o orçamento da sua família, forçada a fazer contenção de gastos. "Não estávamos preparados para o teletrabalho e não tinha Internet em casa. As dificuldades eram maiores", recorda.
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Estudar em casa
O professor e escritor, Lúcio Amado é um observador crítico da sociedade são-tomense. Considera que a principal preocupação da população é a sobrevivência, o que faz com que se não dê muita atenção à luta contra a Covid-19. No entanto, reconhece, a pandemia teve reflexos perversos no sistema de ensino. As turmas tinham números elevados de alunos que foram forçados a ficar em casa.
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Dançar conforme a música
Tem um disco novo que devia ter sido lançado em 2020, o que não aconteceu devido à Covid-19. "Tive que suspender todos os trabalhos", explica Kalú Mendes, produtor e um dos músicos de referência de São Tomé e Príncipe. '"Também as grandes editoras começaram a ter problemas financeiros", afirma. No entanto, continua a trabalhar e espera ter o disco no mercado em 2022.
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Resistir à turbulência
Outra referência das artes das ilhas, João Carlos Nezó resiste às intempéries no sul de São Tomé: "Aqui o mercado de arte é muito pequeno", dependente de turistas estrangeiros. Com a pandemia, deixou de vender. Ficou em primeiro lugar num concurso da Aliança Francesa, que lhe dava o passaporte para participar numa residência artística. "Não pude ir porque a pandemia durou dois anos", lamenta.
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Quebra brutal no turismo
Ligada a um empreendimento turístico ecológico no sul de São Tomé, Luísa Carvalho lamenta a quebra de turistas. "Todos os dias há cancelamentos de reservas. Antes da pandemia, tínhamos muita procura", garante a gerente. "De julho até então", adianta, "têm estado a aparecer alguns clientes curiosos", que fogem um pouco à situação, por exemplo, na Europa. Ms prevê: "Isto já não será como era antes".
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Resistência à vacinação
No início, havia resistência da maioria dos são-tomenses em aceitar a vacina contra a Covid-19, devido a rumores sobre a Astrazeneca. No entanto, com a campanha iniciada a 15 de março, aumentou a adesão da população, diz Solange Barros, coordenadora do Programa Nacional de Vacinação. "As vacinas são todas eficazes". Mas, dá conta, a adesão à segunda dose ficou muito aquém do esperado.
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À espera da terceira dose
Daniel Costa reconhece que "a pandemia afetou toda a gente". Para este antigo militar das Forças Armadas, as restrições impostas pelo confinamento e fracos salários agravaram o nível de pobreza da população. Sentiu-se algum alívio com as medidas de apoio do Governo aos mais carenciados. Diz que está pronto para tomar a terceira dose de qualquer vacina e aconselha as pessoas a se vacinarem.
Foto: João Carlos/DW
Manter a esperança e o otimismo
Apesar de algum receio, há uma mensagem de esperança entre os são-tomenses. Os nossos entrevistados acreditam que "as coisas poderão melhorar" nos próximos tempos, sobretudo para a atividade turística afetada sobremaneira. Vive-se uma "normalidade aparente", como diz Elisabete Carvalho, mas a expetativa está em 2022, porque, argumenta Weiko Bastos, "a economia não suporta mais confinamentos".