É o que defende o representante do secretário-geral da ONU em Moçambique. E sobre as violações de direitos humanos no norte do país, Mirko Manzoni entende que resultam por vezes de "frustração e impotência" do exército.
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O representante do secretário-geral das Nações Unidas em Moçambique, Mirko Manzoni, falava na terça-feira (17.11), em entrevista ao jornal suíço Le Temps. Manzoni foi embaixador da Suíça em Moçambique até 2019 e depois foi escolhido por António Guterres para acompanhar as negociações de paz entre Governo e a RENAMO, maior partido da oposição.
Opõe-se ao uso de mercenários na província de Cabo Delgado, mas afirma que a situação é complexa: "a realidade no terreno deve fazer-nos refletir".
"Quando se pede ajuda e ninguém mexe um dedo, é isso que acontece. Moçambique gasta fortunas com mercenários", primeiro com russos do grupo Wagner e agora com uma empresa sul-africana, detalhou Manzoni, para depois fazer o apelo à ajuda direta dos doadores.
Parceiros que não querem "sujar as mãos"
E Mirko Manzoni exorta: "Oiçamos o apelo de Moçambique: a ajuda militar deve ser fornecida através da cooperação", ou seja, "ajudar o exército moçambicano a cumprir as suas obrigações", em vez de ocupar o seu lugar.
Diz ter noção de que tal ajuda não é bem vista entre os parceiros, que não querem "sujar as mãos", mas "é uma ilusão querer desenvolver a província de Cabo Delgado sem primeiro haver segurança", referiu.
A petrolífera francesa Total financia um serviço de segurança para proteger as suas instalações de exploração de gás natural, em construção na região, "mas esse esforço é muito modesto".
"Moçambique precisaria de blindados, camiões de transporte de pessoal, 'drones' (aeronaves autónomas) de vigilância e lanchas rápidas para controlar as costas", detalhou.
As semelhanças com o Mali
O representante de António Guterres em Moçambique diz que a situação em Cabo Delgado lhe faz lembrar a ameaça 'jihadista' de 2012 no Mali, mas opõe-se a uma intervenção internacional no norte de Moçambique.
Isso seria "deitar mais lenha na fogueira" e beneficiaria a propaganda extremista.
Por outro lado, disse também que não se pode "dialogar com surdos", referindo-se aos terroristas.
No início dos ataques eram principalmente moçambicanos, mas agora são na maioria "'jihadistas' internacionais vindos da Somália, Iémen, Líbia, Uganda e República Democrática do Congo", com "armas muito sofisticadas", acrescentou, sem, no entanto, explicitar fontes ou provas.
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Abusos das FDS são resultado de frustração e impotência
Questionado sobre as violações de direitos humanos cometidas contra a população, algumas atribuídas aos militares moçambicanos, Manzoni referiu que, "paradoxalmente, essas atrocidades também devem ser vistas como um claro pedido de ajuda" das próprias forças armadas.
Cabo Delgado: O relato de um sobrevivente do terrorismo
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"Não estou de forma alguma a justificar os abusos, mas infelizmente são frequentemente o resultado da frustração e impotência das tropas moçambicanas neste conflito", disse.
Manzoni, referiu que os casos de violação de direitos humanos em Cabo Delgado resultam por vezes de "frustração e impotência" das tropas moçambicanas.
"Qualquer abuso deve ser denunciado, investigado e, na medida do possível, severamente punido", referiu, "de ambos os lados", ou seja, do lado dos terroristas e das tropas moçambicanas.
É o que Manzoni classifica como "um dever de justiça para com todas as vítimas".
Historial de violência
Diversos relatos e vídeos nas redes sociais têm mostrado ações de tortura durante o conflito de Cabo Delgado, tornando-se mais mediático o caso de uma mulher indefesa baleada pelas costas até morrer por homens trajados como militares moçambicanos, em setembro.
A violência armada em Cabo Delgado dura há três anos e está a provocar uma crise humanitária com cerca de 2.000 mortes e 435.000 pessoas deslocadas, sem habitação, nem alimentos suficientes - concentrando-se sobretudo na capital provincial, Pemba.
O desterro forçado dos deslocados em Cabo Delgado
São mais de 450 mil no norte de Moçambique. O terrorismo cortou-lhes as raízes e tomou-lhes o chão. Os deslocados internos procuram vingar noutras paragens. E Pemba tem sido lugar de eleição. Sobreviverão na nova terra?
Foto: Privat
A dor da perda e da impotência
Um olhar que diz mais do que mil palavras, a imagem poderia ser "sem legenda". Foi depois de um ataque à aldeia "Criação", Muidumbe, a primeira investida terrorista ao distrito, em novembro de 2019. Os insurgentes começaram os seus ataques em Cabo Delgado em outubro de 2017.
Foto: Privat
Histórias de vida reduzidas a cinzas
Desde então, a matança e destruição passaram a ser visitas assíduas da região. Como ninguém quer ser anfitrião, os aldeões fugiram. Em finais de outubro, Muidumbe e outros distritos sangraram de novo e a população fugiu. Muidumbe está praticamente nas mãos dos terroristas, tal como Mocímboa da Praia, desde agosto.
Foto: Privat
Quase todos os caminhos vão dar a Pemba
O único desejo destes residentes de Mueda é conseguir um canto no camião para chegar à capital provincial de Cabo Delgado. Mas a disputa entre pessoas e os seus próprios pertences ameaça deixar alguém para trás. Desde meados de outubro, Pemba recebeu cerca de 12 mil deslocados. Inicialmente, recebia à volta de mil deslocados por dia.
Foto: Privat
Quando o mato passa a ser melhor que o lar
Para muitos em Cabo Delgado, ter um teto deixou de ser sinónimo de segurança. Conseguir manter a vida, mesmo sem casa, passou agora a ser a meta. Os bichos passaram a ser mais cordiais que os irmãos terroristas, as estrelas melhores que o teto e os arbustos melhores que as paredes. Famílias procuram refúgio nas matas, onde caminham por dias dominados pelo medo, sem comida e sem norte.
Foto: Privat
Um abraço amigo em Pemba
Estes deslocados chegam de Quissanga. Mas também chegam à praia de Paquitequete, Pemba, deslocados vindos de vários lugares. Todos tentam escapar ao terror. Muitos fixam-se aqui, onde recebem apoio de ONGs, associações, indivíduos e do Governo. Há até quem abra as portas da sua casa para os receber, mesmo não os conhecendo.
Foto: Privat
Crise humanitária faz brotar solidariedade infinita
A falta de quase tudo faz despertar solidariedade que chega de todo o lado. Para quem está longe, uma angariação de fundos e bens materiais é a opção. Já cuidar dos deslocados na praia de Paquitequete, atendendo-os nas suas necessidades, é o que faz quem está no terreno. Na praia, há jovens que chegam de madrugada para dar amor a quem precisa.
Foto: Privat
Uma fuga rodeada de perigos
O medo é tanto que nem a sobrelotação parece intimidar os deslocados internos. No começo de novembro, mais de 40 pessoas morreram a tentar chegar a Pemba num naufrágio entre as ilhas do Ibo e Matemo.
Foto: Privat
Pemba a rebentar pelas costuras
O "boom" de deslocados é tão grande que o sistema de serviços básicos para a população, como água e saneamento, está no limite. Antes desta nova vaga de deslocados, a capital de Cabo Delgado tinha 204 mil habitantes. Agora, tem mais de 300 mil.
Foto: DW/E. Silvestre
Começar nova vida noutro chão
O Governo criou um comité de gestão para esta crise humanitária. Afirma que está a criar novas aldeias, centros de reassentamento, infrastruturas e a parcelar terras para acomodar os deslocados. Embora esteja garantida a segurança, as suas raízes estão noutro chão.
Foto: Privat
Que futuro?
Por enquanto não há resposta. Mas há deslocados que se vão "desenrascando" para sobreviver. Muitos dizem que não querem viver de mão estendida. Por exemplo, quem tem barco vai à pesca ou trasporta mercadorias. Outros entretêm-se a jogar futebol. Vão cuidando das suas vidas. Mas para os que não têm alternativas, que são a maioria, correrão riscos de entrar para o mundo do crime?