Trabalhadores angolanos da ex-RDA desmentem Governo
Maria João Pinto | Lusa
19 de abril de 2017
Associação que representa 300 ex-trabalhadores da antiga Alemanha Oriental que reivindicam pagamento de salários em atraso e indemnizações nega conclusão do processo anunciada pelo Ministério angolano do Trabalho.
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Na década de 80, à luz de um acordo de cooperação entre o Governo de Luanda e da extinta República Democrática Alemã (RDA), com o objetivo de receber formação profissional em diversas áreas, os trabalhadores angolanos partiram para a ex-RDA. No período em que trabalharam na então Alemanha de Leste, transferiram parte do seu vencimento mensal para Luanda. Quando regressassem, o montante seria devolvido. No entanto, dizem os ex-trabalhadores, isto não aconteceu e, desde então, reivindicam salários e compensações em atraso.
O processo de negociações dos ex-trabalhadores angolanos da extinta RDA com o Executivo de Luanda começou em 2004. Em 2011, após entendimento com o Governo angolano, chegou a ser previsto o pagamento de 300 milhões de dólares (281,5 milhões de euros) de salários e outras compensações em atraso, relativos a 19 anos de trabalho.
Agora, o Ministério da Administração Pública, Trabalho e Segurança Social de Angola (MAPTSS) anunciou que o processo, que custou quase 25 milhões de euros, foi encerrado em março, depois de anos de protestos dos ex-trabalhadores da RDA. O Executivo de Luanda afirma mesmo que foram totalmente cumpridos os acordos firmados em 2011 entre os ex-trabalhadores e o Governo.
No entanto, em entrevista à DW África, Miguel Cabango, da organização Afroextra, que representa 305 ex-trabalhadores angolanos da RDA ainda a residir na Alemanha, fala em mentiras do Executivo e do MAPESS - ministério da Administração Pública, Emprego e Segurança Social, atualmente MAPTSS.
Cabango rejeita ainda o pedido de desculpas pelos transtornos causados nos últimos anos por parte dos ex-trabalhadores angolanos ao Governo de Luanda, noticiado pelo Jornal de Angola. Segundo o representante, o pedido terá partido da Angogermany, uma organização que contará atualmente com 26 membros, depois de divergências sobre o pagamento de indemnizações aos trabalhadores terem levado 305 ex-trabalhadores angolanos da RDA a abandonar a associação inicial e a formar uma nova organização – a Afroextra.
DW África: Angola anunciou a regularização dos pagamentos aos trabalhadores da RDA. Confirma esta informação?
Miguel Cabango (MC): Não, essa informação é absolutamente errada. Se tudo estivesse já resolvido, não teríamos necessidade de organizar manifestações junto à embaixada [de Angola em Berlim]. Recebemos alguns pagamentos, mas o processo não foi concluído na totalidade. Em 2009, o Governo de Luanda disponibilizou um montante de 300 milhões de dólares para concluir o processo, mas o MAPESS, por sua vez, não pagou o que devia pagar. O MAPESS aumentou o número dos ex-trabalhadores que estavam na RDA, de 1.608 para 2 mil e pagou a cada um – tanto na Alemanha, como em Angola, em 2012, cerca de 1,25 milhões de kwanzas, quando estava previsto pagar cerca de 15 milhões. Isto mostra a má intenção do Governo, significa que não está comprometido com a resolução dos problemas do povo. Estão a divulgar uma mentira e nós estamos contra isto. Por isso, temos agendada para o final de maio uma nova manifestação diante da embaixada, em Berlim.
DW África: A que se refere então o Governo angolano quando diz que concluiu a regularização dos pagamentos?
20.04 Entrevista Miguel Cabango / ex-trabalhadores RDA - MP3-Mono
MC: O Governo concluiu alguns pagamentos. Em 2004, foram cerca de 316 mil kwanzas e houve outros pagamentos em 2006, de 800 mil e 560 mil kwanzas. Em 2009, segundo a Lei Geral do Trabalho, o Governo compromete-se a indemnizar os ex-trabalhadores pelo contrato que não foi concluído. Depois da indemnização, o Executivo compromete-se a inserir todos os trabalhadores na Segurança Social. Na verdade, é isto que o Governo quer fazer, mas sem indemnizar primeiro os trabalhadores. É isto que reivindicamos. A indemnização completa, conforme previsto, de uma só vez, e, posteriormente, a inserção na Segurança Social.
DW África: Ou seja, o Governo anunciou a conclusão do processo, mas, na realidade, isto não aconteceu?
MC: Exatamente. Não terminou a regularização definitivamente, conforme previsto. O Governo deu um pulo, antes de resolver a indemnização, escondendo os valores que teriam de ser transferidos para os beneficiários. Nós aceitamos que houve alguns pagamentos regularizados. Sempre que há uma manifestação, o Governo dá "uma partezinha". Quando alguém reclama, dá mais uma parte. Nós exigimos a indemnização completa, de uma só vez.
DW África: Segundo o Governo, o processo de regularização terá custado cerca de 25 milhões de euros, mas, nos acordos firmados em 2011, chegou a ser previsto o pagamento de 281 milhões de euros de salários e outras compensações em atraso. É uma grande diferença...
MC: Pois. Em agosto de 2014, o Governo anunciou que pagou mais de 4 milhões e deu o assunto por encerrado. Agora, anuncia que pagou 25 milhões e dá o assunto por encerrado. Onde é que vamos encontrar a verdade? É o próprio Governo que está a desmentir-se.
DW África: O Jornal de Angola diz que os ex-trabalhadores angolanos da RDA que ainda residem na Alemanha pediram desculpa ao Governo angolano pelos transtornos causados durante o processo de reivindicação. Como é que surge este pedido de desculpas?
MC: Por amor de Deus. Nós não vamos pedir desculpas a um Governo que não resolve os problemas. Nós somos os lesados e vamos pedir desculpas? Queremos desmentir isto. Não foi escrito por nós nem pelos ex-trabalhadores que representamos. Na verdade, há um conflito: há uma organização apoiada pelo Governo e pela embaixada, a Angogermany, e outra que está a ser considerada como indivíduos que criam distúrbios, que somos nós, a Afroextra. Eles pediram desculpas em nosso nome, mas, em 2016, quando estávamos a exigir transparência em todos os processos realizados em nosso nome, no Tribunal de Munique, a Angogermany rejeitou a existência dos ex-trabalhadores angolanos da RDA. Passaram a defender os interesses do Governo e não dos trabalhadores. Quem representa os ex-trabalhadores, quem organiza as marchas - que têm sido pacíficas -, é a direção atual que eu represento, da associação Afroextra. Somos 305 membros e não pedimos desculpa a ninguém. O Governo é que deve pedir-nos desculpa, porque este processo já dura há 25 anos, é uma vergonha autêntica.
Uma relação especial: a Alemanha Oriental e África
A República Democrática Alemã manteve relações estreitas com os países africanos de orientação socialista. Entre eles estavam Angola, Etiópia, Moçambique e Tanzânia. A cooperação terminou com a reunificação em 1990.
Foto: Ismael Miquidade
Formação de profissionais africanos
A República Democrática Alemã (RDA), extinta após a reunificação da Alemanha a 3 de Outubro de 1990, formou muitos trabalhadores vindos de países africanos socialistas. Estes angolanos participam num curso em Dresden, em 1983, no Instituto para Segurança no Trabalho. Angola estava em guerra nessa altura. O chamado "Bloco de Leste" apoiava o Governo marxista-leninista do MPLA.
Foto: Bundesarchiv/183-1983-0516-022 /U. Häßler
Ajuda ao desenvolvimento para aliados políticos
Depois do fim do colonianismo português em África, em 1975, a Alemanha Oriental (RDA) apoiou os partidos socialistas que foram conquistando o poder. A ideia era fazer desses novos Estados africanos aliados e parceiros económicos do Bloco de Leste. Aqui, o angolano Eduardo Trindade recebe formação de mecânico de máquinas agrícolas (1979).
Foto: Bundesarchiv/183-U0213-0014/P. Liebers
Formação para jornalistas africanos
Não havia só formação para profissões técnicas. A Alemanha Oriental também formava jornalistas africanos. Centenas de jornalistas, de quase todos os países de África, passaram pela Escola de Solidariedade da Associação de Jornalistas da RDA, em Berlim-Friedrichshagen. Na foto: jovens jornalistas de Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe durante o curso em dezembro de 1976.
Foto: Bundesarchiv/183-R1210-302
Cooperação no desporto
Esta foto foi tirada em setembro de 1989, em Leipzig, numa aula de atletismo da Escola Superior Alemã para Educação Física (DHfK), com treinadores de Angola, Nicarágua e Moçambique. Em Leipzig, a partir de 4 de setembro, os cidadãos começaram a exigir todas as segundas-feiras mais liberdade na RDA - primeiro eram centenas, depois dezenas de milhares. A 9 de novembro de 1989 caiu o Muro de Berlim.
Foto: Bundesarchiv/183-1989-0929-019/ W. Kluge
Estudantes nas universidades da RDA
Moisés José da Costa, de Angola, fez parte de um grupo de estudantes de 34 países que frequentou a Escola Superior Técnica de Karl-Marx-Stadt em 1986. A cidade passou a chamar-se Chemnitz em 1990. Muitas ruas da Alemanha Oriental, com nomes de políticos marxistas, também foram renomeadas. Hoje, muitos estrangeiros que viveram na RDA têm dificuldade em encontrar endereços antigos.
Foto: Bundesarchiv/183-1986-1112-002/W. Thieme
"Escola da Amizade"
1983: O Presidente de Moçambique, Samora Machel (dir.), e Margot Honecker, ministra da Educação da RDA (esq.), encontram-se com a direção da "Escola de Amizade", na localidade de Staßfurt. Em 1979, ambos os países decidiram que 899 crianças moçambicanas frequentariam essa escola na Alemanha Oriental durante quatro anos. Algumas dessas crianças tinham apenas 12 anos de idade.
Foto: Bundesarchiv/Bild 183-1983-0303-423/H. Link
Escola "Dr. Agostinho Neto"
Em outubro de 1981, durante uma visita do Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, à Alemanha, a 26ª Escola de ensino médio da RDA "Berlim-Pankow" recebeu o nome do seu antecessor. Passou a chamar-se Escola "Dr. Agostinho Neto". Jovens da Alemanha Oriental receberam o Presidente angolano com cartazes propagandísticos, como: "Apoiando a União Soviética pela paz e socialismo."
O Presidente angolano José Eduardo dos Santos (o quinto, a partir da esq.) visitou o Muro de Berlim na Porta de Brandemburgo. O muro começou a ser construído em 1961 para impedir que a população da RDA fugisse para Berlim Ocidental, onde se tinha livre-trânsito para o Ocidente. Oficialmente, o muro era chamado de "Muralha Antifascista". Cerca de 200 pessoas morreram ao tentar fugir.
Foto: Bundesarchiv
Congresso do SED com convidados africanos
O Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) gostava de exibir os seus convidados estrangeiros. No 10° Congresso do partido, em 1981, recebeu Ambrósio Lukoki, do MPLA (atrás, à direita), e Berhanu Bayeh (atrás, o segundo à esq.), que mais tarde se tornou chefe da diplomacia da ditadura marxista-leninista etíope do Derg, período em que milhares de pessoas foram mortas.
Foto: Bundesarchiv/183-Z0041-138/M. Siebahn
Visitas a congressos partidários africanos
O contrário também era comum. Konrad Naumann (na segunda fila, à dir.), membro do SED, participou do 3° Congresso do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) em Bissau, em novembro de 1977. O evento foi realizado sob o lema "Independência, Unidade e Desenvolvimento".
Foto: Bundesarchiv/Bild 183-S1118-026/Glaunsinger
Acampamentos de verão para crianças e adolescentes
Também durante o período de férias, a RDA tentava educar as crianças de acordo com os ideais comunistas. E convidavam-nas para acampamentos de verão. Aqui também vinham convidados estrangeiros. Na foto, dois membros da organização juvenil da Alemanha Oriental "Pioneiros" explicam a uma criança da República Popular do Congo uma matéria do jornal "Die Trommel".
Foto: Bundesarchiv/183-T0803-0302
Fim-de-semana em casa de família alemã
As crianças estrangeiras que, em 1982, participaram no acampamento dos "Pioneiros" também passaram um fim-de-semana com famílias alemãs para conhecer o dia-a-dia na Alemanha Oriental. Elas foram de comboio até à cidade de Schwedt, na fronteira com a Polónia. Sandra Maria Bernardo, de Angola, foi recebida pela sua "mãe-anfitriã" Ingeborg Scholz e a filha Petra.
Foto: Bundesarchiv/183-1982-0731-010 /K. Franke
Solidariedade militar
1973: Combatentes do MPLA marcham durante o Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, que teve lugar no estádio da Juventude Mundial, no leste de Berlim. A RDA solidarizou-se com a luta do MPLA contra o poder colonial português. Os outros dois movimentos de libertação de Angola, a UNITA e a FNLA, foram apoiados pela África do Sul e EUA.
Foto: Bundesarchiv/Bild183-M0814-0734/F. Gahlbeck
Hora do adeus
Depois de formados na RDA, namibianos despedem-se no aeroporto Berlim-Schönefeld. De 1981 a 1984, eles estiveram a receber formação na Alemanha Oriental. No entanto, não puderam regressar às suas casas porque a Namíbia só se tornou independente da África do Sul em 1990. Por isso, voaram para Angola, para trabalhar como técnicos de silvicultura, canalizadores ou mecânicos de automóveis.
Foto: Bundesarchiv/183-1984-0815-031/A. Kämper
A ajuda chega de avião
Na foto, uma aeronave da companhia aérea Interflug, pertencente à extinta RDA, no aeroporto de Luanda. A bordo: material escolar para crianças angolanas. Em 1978, além de Angola, o Comité de Solidariedade da Alemanha Oriental enviou donativos à Etiópia, Moçambique, Vietname, República Popular do Iémen e às organizações de libertação do Zimbabwe (ZANU), da Namíbia (SWAPO) e da África do Sul.
Foto: Bundesarchiv/183-T0517-0022/R. Mittelstädt
Tratores para aliados socialistas
Doação de máquinas agrícolas da fábrica de tratores Schönebeck (da RDA) para a Etiópia. Os tratores do tipo "ZT 300-C" eram comuns na Alemanha Oriental e foram exportados para 26 países. Incluindo Angola e Moçambique. (1979)
Foto: Bundesarchiv/183-U1110-0001/Schulz
Máquinas têxteis da RDA para a Etiópia
Fábrica têxtil na cidade de Kombolcha, na província etíope de Amhara (foto de novembro de 2005). Esta fábrica processa algodão para fazer lençóis e toalhas. Foi construída em 1984 com o apoio da RDA e da hoje extinta Checoslováquia. Quase todas as máquinas foram produzidas pelo consórcio TEXTIMA, na antiga cidade de Karl-Marx-Stadt, hoje Chemnitz.
Foto: picture-alliance/dpa
Construções pré-fabricadas da RDA em Zanzibar
Ainda hoje, é possível ver prédios, construídos a partir de elementos pré-fabricados, em Zanzibar, com os quais a Alemanha Oriental apoiou a Tanzânia socialista criada em 1964 sob o Presidente Julius Nyerere. Os materiais chegaram de navio e tiveram apenas de ser montados. "Michenzani" é o nome do projeto com mais de 1,5 km de comprimento.
Foto: cc-by-sa/Sigrun Lingel
RDA - Nostalgia em Maputo
Cerca de 15 mil moçambicanos trabalharam na Alemanha Oriental no final dos anos 80. A maioria voltou ao seu país de origem após a reunificação da Alemanha, a 3 de Outubro de 1990. Em casa, são chamados de "Madgermanes", uma palavra derivada de "Made in Germany". Até aos dias de hoje, eles reúnem-se com frequência no Jardim 28 de Maio, em Maputo, para reivindicar os seus direitos.