Especialista em Direito diz que a Justiça britânica agiu com "prudência" ao remeter o caso das dívidas ocultas para julgamento em foro arbitral, na Suíça, como pedia a Privinvest. Moçambique ficará agora em desvantagem.
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O Tribunal de Recurso de Inglaterra e País de Gales determinou que o caso das dívidas ocultas, que envolve várias empresas estrangeiras e que lesou o Estado moçambicano em mais de dois mil milhões de euros, não será julgado por um tribunal inglês.
A decisão resulta de um recurso apresentado pela Privinvest no qual a firma libanesa terá procurado provar que, nos contratos de fornecimento de equipamentos e serviços de proteção costeira a empresas moçambicanas, as partes convencionaram que seria o Tribunal Internacional de Arbitragem da Suíça o órgão competente para decidir sobre eventuais disputas.
Para o especialista em Direito Internacional André Thomashausen, com a decisão da Justiça britânica, o Estado moçambicano deverá entrar em desvantagem na guerra judicial contra a Privinvest, uma vez que os tribunais de arbitragem não privilegiam os Estados quando se trata de dirimir conflitos.
DW África: Que motivos terão determinado a decisão do tribunal inglês?
André Thomashausen (AT): O tribunal deu prioridade ao que está no contrato. Os tribunais costumam fazer isso, ou seja, fazer prevalecer o que as partes de um acordo concordaram. O acordo principal tem uma cláusula em que os litígios e diferendos devem ser resolvidos seguindo a Lei da Arbitragem da Suíça. Assim o tribunal considerou essa vontade das partes e não uma outra regra que se encontra num outro contrato em que se referia à jurisdição dos tribunais britânicos.
É uma decisão prudente, porque assim os tribunais britânicos lavam as mãos deste caso quente, desta batata quente. Também dão a consideração devida ao facto de que não foram os bancos britânicos nem as autoridades britânicas que construíram todo este império de dívidas, de pagamentos ilícitos e de possíveis crimes. Foi um grande banco suíço, o Credit Suisse, que depois arranjou um outro banco num consórcio, mas o banco principal é o banco suíço. A [responsabilidade] é da autoridade da fiscalização dos bancos na Suíça e é do Governo suíço, que autorizou a transferência de um empréstimo enorme de dois mil milhões de euros.
DW África: Moçambique ainda pode recorrer dessa decisão?
AT: Não vi o julgamento, mas creio que não, porque trata-se já de uma decisão de segunda instância, portanto está esgotada a hipótese de recurso. Normalmente não existe um segundo recurso.
DW África: Não sendo a arbitragem na sua essência um modelo favorável ao Estado, pode afirmar-se que a Privinvest entra em vantagem para esta guerra com o Estado moçambicano na Suíça?
AT: É possível que sim. A defesa da Privinvest foi sempre no sentido de que se tratou de um negócio, de uma transação comercial, na base de um plano elaborado pelo Governo moçambicano, para instalar capacidades de fiscalização marítima e de marinha de guerra. Moçambique é um Estado soberano e na altura deveria ter sabido bem o que estava a fazer. Moçambique deve apresentar provas que mostrem porque é que as entregas falharam. Aí há um grande perigo para Moçambique, porque a própria Privinvest deve ter as instruções que provinham do Estado sobre que pagamentos deveriam ser feitos e para quem, bem como foram dirigidas essas entregas.
A Privinvest argumenta que não tem culpa nenhuma, que nunca desviou nada e que simplesmente agiu na base das instruções que estava a receber da parte moçambicana. É aí que a coisa vai começar a ser muito interessante, porque quando conhecermos essas correspondências e esses pormenores, vamos ver que o grande culpado do desaparecimento de grande parte daquele dinheiro foi mesmo Moçambique e não os agentes comerciais.
Os agentes comerciais, normalmente, não agem por conta própria, agem na base das instruções que recebem. Encaixam o seu lucro, mas existe fiscalização. Esta tentativa de Moçambique de atirar as culpas ao empresário foi sempre um bocado arriscada.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)