Ucrânia: A invasão russa e o silêncio dos países africanos
António Cascais
1 de março de 2022
O "cordão umbilical" de muitos governos africanos com as elites russas, desde a antiga União Soviética, os impedem de condenar os ataques russos contra a Ucrânia, entende politólogo angolano Olívio N'Kilumbu.
Publicidade
O que explica o silêncio de muitos países africanos na condenação da invasão russa à Ucrânia? A DW África falou sobre o tema com o especialista angolano em relações internacionais, Olívio N'Kilumbu.
O analista recorda, primeiro, os laços que ligam a Rússia aos movimentos de libertação em Angola ou Moçambique, desde os tempos da ex-União Soviética, onde os partidos no poder em ambos os paises - MPLA e FRELIMO - receberam apoio militar durante a luta contra o colonialismo português e ajuda económica e financeira depois da independência, em 1975.
N'Kilumbu sublinha que "embora o Governo de Angola, de forma muito tímida, tenha feito um apelo diplomático ao cessar-fogo. Não houve um apelo contundente. África do Sul assumiu uma posição neutra, mas a CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) em conjunto condenou o ataque russo". Leia a entrevista:
DW África: O MPLA foi um aliado de Moscovo no tempo da ex-União Soviética. Tendo recebido apoio militar na luta contra o colonialismo português e ajuda económica depois da independência do país em 1975. Foi há 50 anos. As relações ainda vivem dessa ajuda ou houve alguma evolução?
ON: As elites são as mesmas. Em Angola, tivemos alteração políticas. Se o MPLA não governasse, era possível cortar esse cordão umbilical. Mas o MPLA mantém a relação de proximidade com as elites militares, económicas e politicas russas. A nível económico, temos empresas e bancos russos; a nível militar, temos instrutores russos no sistema de defesa (exército, força área e na marinha). De ponto de vista académico, a academia militar é praticamente toda russa. Não é uma relação qualquer."
DW África: Também surgiu outro tema nos últimos anos. A atuação de mercenários russos em cenários de guerra africanos, de grupos como Wagner – atuou no norte de Moçambique - e SewaSecurity. É um fator importante a presença russa na segurança africana?
ON: Penso que sim. Reforço essa relação de proximidade, até porque esses agentes russos foram instrutores ou colegas dos angolanos e moçambicanos. Os conflitos constituem um mercado propício aos mercenários. Ocupam espaços de influência, mais ainda quando os países têm dificuldades em combater. Não só em Moçambique, na região de Cabo Delgado, mas também na África Central. Exemplo do recente golpe de Estado no continente africano, onde houve uma presença expressiva de mercenários russos. Há um grande interesse de uma elite especifica russa tirar proveito do mercado aberto pelos conflitos africanos.
Golpes de Estado em África: Um mal endémico
Em menos de um ano, o continente africano viveu oito golpes e tentativas de golpe de Estado. A maior parte aconteceu na África Ocidental, região do continente mais fértil para as intentonas. Não há fator surpresa.
Foto: Radio Television Guineenne/AP Photo/picture alliance
Níger: Tentativa de golpe fracassada
A tentativa de golpe de Estado aconteceu a 31 de março de 2021, dois dias antes da tomada de posse do Presidente Mohamed Bazoum. Na capital, Niamey, foram detidos alguns membros do Exército por detrás da tentativa. O suposto líder do golpe é um oficial da Força Aérea encarregado da segurança na base aérea de Niamey. O Níger já sofreu 4 golpes de Estado: o último, em 2010, derrubou Mamadou Tandja.
Foto: Bernd von Jutrczenka/dpa/picture alliance
Chade: Uma sucessão com sabor a golpe de Estado
Pouco depois do marechal Idriss Déby ter vencido as presidenciais, morreu em combate contra rebeldes. A 21 de abril de 2021, o seu filho, o general Mahamat Déby, assumiu a liderança do país, sem eleições, nomeando 15 generais para o Conselho Militar de Transição, entre eles familiares seus. Idriss governou o Chade por mais de 30 anos com mão de ferro e o filho dá sinais de lhe seguir os passos.
Foto: Christophe Petit Tesson/REUTERS
Mali: Um golpe entre promessas de eleições
O coronel Assimi Goita foi quem derrubou Bah Ndaw da Presidência do Mali a 24 de maio de 2021. Justifica que assim procedeu porque tentava "sabotar" a transição no país. Mas Goita prometeu eleições para 2022 e falou em "compromisso infalível" das Forças Armadas na defesa da segurança do país. Pouco depois, o Tribunal Constitucional declarou o coronel Presidente da transição.
Foto: Xinhua/imago images
Tunísia: Um golpe de Estado sem recurso a armas
No dia 25 de julho de 2021, Kais Saied demitiu o primeiro ministro, seu rival, Hichem Mechichi, e suspendeu o Parlamento por 30 dias, o que foi considerado golpe de Estado pela oposição, que convocou manifestações em nome da democracia. Saied também levantou a imunidade dos parlamentares e garantiu que as decisões foram tomadas dentro da lei. Nas ruas de Tunes, teve o apoio da população.
Foto: Fethi Belaid/AFP/Getty Images
Guiné-Conacri: Um golpista da confiança do Presidente
O dia 5 de setembro de 2021 começou com tiros em Conacri, uma capital que foi dominada por militares. O Presidente Alpha Condé foi deposto e preso pelo coronel Mamady Doumbouya - que dissolveu a Constituição e as instituições. O golpista traiu Condé, que o tinha em grande estima e confiança. Doumboya tinha demasiado poder e não se entendia com a liderança da ala castrense.
Foto: Radio Television Guineenne via AP/picture alliance
Sudão: Golpe compromete transição governativa
A 25 de outubro de 2021, os golpistas começaram por prender o primeiro ministro, Abdalla Hamdok, e outros altos quadros do Governo para depois fazerem a clássica tomada da principal emissora. No comando estava o general Abdel Fattah al-Burhan, que dissolveu o Conselho Soberano. Desde então, o Sudão vive manifestações violentas, com a polícia a ser acusada de uso excessivo de força.
Foto: Mahmoud Hjaj/AA/picture alliance
Burkina Faso: Golpe de Estado festejado
A turbulência marcou o começo do ano, mas a intentona foi celebrada em grande nas ruas da capital, Ouagadougou. A 23 de janeiro de 2022, o tenente-coronel Paul Damiba liderou o golpe de Estado ao lado do Exército. Ao Presidente Roch Kaboré não restou outra alternativa se não demitir-se. Tal como os golpistas de outros países, comprometem-se a voltar à ordem constitucional após consultas.
Foto: Facebook/Präsidentschaft von Burkina Faso
Guiné-Bissau: Intentona ou "inventona"?
Tiros, alvoroço, mortos e feridos no Palácio do Governo marcaram o dia 1 de fevereiro de 2022 em Bissau. O Presidente Umaro Sissoco Embaló diz que os golpistas queriam matá-lo e ao primeiro ministro, Nuno Nabiam. Houve algumas detenções, mas até hoje não se conhece o líder golpista. No país, acredita-se que tudo não passou de um "teatro" orquestrado pelo próprio Presidente, amplamente contestado.