UE decide rever relações comerciais com Israel
21 de maio de 2025
Embora as expetativas de um grande avanço fossem modestas, a reunião de terça-feira (20.05) dos ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia (UE), em Bruxelas, apresentou o que os analistas dizem ser um pequeno, mas significativo desenvolvimento: a chefe dos negócios estrangeiros da UE, Kaja Kallas, anunciou uma revisão da parceria comercial do bloco com Israel.
Este é o primeiro passo formal em resposta aos crescentes apelos à adoção de medidas mais duras contra a atual crise humanitária em Gaza.
À medida que Israel intensifica a ofensiva militar que começou no início de maio na cidade de Rafah, no sul da Faixa de Gaza, e continua a controlar a entrada de ajuda em Gaza, aumenta a pressão sobre Bruxelas por parte de vários Estados-Membros da UE para que envie um sinal forte ao governo israelita.
Na terça-feira, Kallas anunciou que a Comissão Europeia iria rever o Acordo de Associação UE-Israel, um pacto de comércio livre que rege as relações políticas e económicas entre as duas partes.
Embora se tenha congratulado com a notícia de que Israel autorizou a entrada de alguma ajuda humanitária em Gaza, após um bloqueio de 11 semanas, Kallas afirmou que se tratava de uma "gota no oceano", uma vez que a situação era "catastrófica".
Israel acusa UE de "total incompreensão"
Israel rejeitou, entretanto, as críticas de Kallas.
"Rejeitamos completamente a direção tomada na declaração, que reflete uma total incompreensão da complexa realidade que Israel enfrenta", publicou o Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita no X, na terça-feira (20.05).
Dez países não apoiaram a revisão da UE, e o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel agradeceu a essas nações.
Ajuda ainda não é suficiente
As Nações Unidas disseram na terça-feira que tinham recebido autorização para enviar cerca de 100 camiões de ajuda para Gaza, numa altura em que a assistência humanitária começava a chegar ao território.
No entanto, as Nações Unidas já mencionaram anteriormente que são necessários 500 camiões de ajuda e bens comerciais por dia.
Em março, Israel quebrou um cessar-fogo temporário com o grupo militante Hamas, sediado em Gaza, e voltou a reforçar as restrições ao acesso humanitário.
Em abril, a União Europeia anunciou um pacote de apoio financeiro de três anos para os palestinianos em Gaza e na Cisjordânia, no valor de 1,6 mil milhões de euros.
Kallas sublinhou que este apoio deve ser canalizado. "É o dinheiro europeu que está a financiar esta ajuda e tem de chegar às pessoas", afirmou.
"Totalmente desproporcionadas"
A reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE em Bruxelas teve lugar pouco depois de os líderes da França, do Reino Unido e do Canadá terem emitido uma rara declaração conjunta condenando a última ofensiva de Israel em Gaza e classificando as suas restrições à ajuda como "totalmente desproporcionadas" e possivelmente em violação do direito humanitário internacional. Alertaram para "novas ações concretas” se o acesso humanitário não for restabelecido, mas não definiram quais seriam essas ações.
"Estamos a chegar a um ponto de viragem", afirmou Hugh Lovatt, membro sénior do Conselho Europeu de Relações Externas, em entrevista à DW. "A dimensão da destruição, as deslocações forçadas, o colapso das infraestruturas humanitárias - tudo isto ultrapassa os limites de qualquer autodefesa razoável".
Ao longo dos últimos 18 meses, Israel tem afirmado continuamente que a sua campanha militar em Gaza é uma resposta legítima aos ataques liderados pelo Hamas contra Israel em 7 de outubro de 2023, nos quais cerca de 1.200 pessoas foram mortas e mais de 200 foram feitas reféns, invocando o seu direito à autodefesa ao abrigo do direito internacional.
Espanha apela sanções
Alguns Estados-Membros da UE, nomeadamente a Espanha, a Irlanda, os Países Baixos e a França, apelaram a uma revisão formal das relações comerciais do bloco com Israel. Estas são regidas pelo Acordo de Associação UE-Israel, que inclui uma cláusula - o artigo 2.º - que permite a sua suspensão em caso de violações graves dos direitos humanos.
"Uma vez provadas as violações dos direitos humanos, o acordo poderá ser suspenso", afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Jean-Noel Barrot, em Paris, na terça-feira (20.05), acrescentando que tal decisão teria impacto no comércio com Israel.
Lovatt salientou que "Israel beneficiou durante muito tempo de um sentimento de excecionalidade no seio da UE e foi protegido por sensibilidades políticas". Este facto protegeu o país da plena aplicação do direito internacional e comunitário. "É aqui que vemos que a UE adotou dois pesos e duas medidas em relação a Israel, que não são contestados", acrescentou.
A invocação do artigo 2.º do Acordo de Associação UE-Israel não só é legalmente justificada, como já devia ter sido feita há muito tempo.
"A UE já utilizou instrumentos jurídicos semelhantes pelo menos 26 vezes no passado em resposta a violações dos direitos humanos por parte de outros países parceiros, o que não significa reinventar a roda", afirmou.
O eurodeputado citou o exemplo da imposição de sanções significativas ao setor financeiro russo após a anexação da Crimeia e a posterior invasão da Ucrânia. "Estas sanções vão muito além das que estão atualmente a ser consideradas contra Israel", disse.
UE está dividida
Desde outubro de 2023, Estados da UE como a Alemanha, a Áustria, a Hungria e a Chéquia apoiaram firmemente o direito de Israel à autodefesa e hesitaram em apoiar quaisquer medidas punitivas.
A Alemanha tem sublinhado repetidamente a sua responsabilidade histórica para com Israel. O Presidente alemão Frank-Walter Steinmeier visitou o país no início deste mês para assinalar os 60 anos de relações diplomáticas e reunir-se com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu - mesmo quando o líder israelita enfrenta uma investigação aberta pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por alegados crimes de guerra em Gaza.
A visita põe em evidência o difícil equilíbrio de muitos governos da UE, que mantêm laços estreitos com Israel enquanto o país enfrenta um crescente escrutínio internacional.
Outros Estados-Membros da UE, nomeadamente a Irlanda, a Bélgica e a Espanha e, mais recentemente, a França, têm manifestado mais claramente a sua frustração com as operações militares de Israel em Gaza e com a crise humanitária que ali se vive.
Na terça-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, José Manuel Albares, apelou à imposição de sanções contra Israel e instou a UE a agir de forma decisiva para evitar uma catástrofe humanitária.
Mas James Moran, antigo embaixador da UE no Médio Oriente e agora membro sénior do Centro de Estudos de Política Europeia (CEPS), disse que os desentendimentos internos sobre as ações de Israel em Gaza tinham efetivamente alienado a UE.
A UE está "politicamente paralisada", disse à DW. "Sem unanimidade, o máximo que pode fazer é financiar a ajuda humanitária e apoiar os esforços diplomáticos liderados por outros", sublinhou.
Pouca ação da UE
Com pouca ação à vista a nível da UE, vários países resolveram tratar do assunto com as suas próprias mãos. A Noruega, a Irlanda e a Espanha reconheceram formalmente o estatuto de Estado da Palestina no ano passado, e especula-se que a França e a Bélgica poderão em breve fazer o mesmo.
Isto envia uma mensagem clara, sublinhou Lovatt: se a UE não agir coletivamente, os Estados-Membros estão dispostos a agir sozinhos.
"Durante demasiado tempo, a UE apoiou-se no processo de Oslo como uma muleta política", afirmou. "Mas esse processo está efetivamente morto. Continuar a fingir o contrário só prejudica os interesses europeus", considerou.
O processo de Oslo teve início após a assinatura dos Acordos de Oslo, uma série de acordos de paz celebrados na década de 1990 entre Israel e a Organização de Libertação da Palestina (OLP). O objetivo era lançar as bases para uma solução baseada na existência de dois Estados, mas com o tempo o processo perdeu credibilidade devido ao impasse das negociações e à violência contínua.
Teste de credibilidade
À medida que a crise humanitária em Gaza se agrava, aumentam as expetativas de que Bruxelas transponha a sua retórica para a ação e utilize plenamente os instrumentos à sua disposição.
"A UE é um ator político muito importante, um ator económico e também um ator humanitário", disse Abdullah Al Rabeeah, diretor do Centro Saudita de Ajuda Humanitária e Socorro do Rei Salman.
"Temos de nos juntar à comunidade internacional para exercer a pressão necessária sobre Israel para que abra todos os corredores e permita que a ajuda humanitária chegue aos necessitados", acrescentou.
Moran, antigo embaixador da UE, rejeitou as repetidas afirmações de Israel de que a ajuda humanitária está a ser desviada para o Hamas. "Isso é, em grande parte, propaganda", afirmou. "O desvio pode acontecer em casos isolados, mas a questão mais importante é a utilização por Israel das restrições à ajuda como arma de guerra. A ONU já o disse", frisou.
Hugh Lovatt, especialista no conflito israelo-palestiniano, afirmou que "a credibilidade da Europa como ator global está a ser testada em Gaza". "Se a UE não consegue responder aqui, onde as suas próprias leis, valores e interesses estão em jogo, então onde é que pode?", questionou.