Iniciado há um ano, o processo das "dívidas ocultas", que lesaram o Estado moçambicano em mais de 2,2 mil milhões de dólares, apenas protegeu políticos e não serviu de lição para o combate à corrupção, lembram analistas.
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No início do processo das dívidas ocultas, a 23 de agosto de 2021, esperou-se que o combate à corrupção ganhasse tração em Moçambique. Mas um ano depois do arranque do julgamento do maior escândalo financeiro do país, essas expetativas saíram frustradas, comenta o jurista Elvino Dias.
"Se olharmos para as estatísticas, estas apontam que Moçambique é tido como um dos países mais corruptos do mundo, por isso mesmo não vejo este julgamento como algo que vai mudar o quadro de corrupção em que o país se encontra", lamenta.
No Índice de Perceção da Corrupção de 2021, da organização Transparência Internacional, Moçambique ficou na posição 147, abaixo de Angola e no mesmo patamar de Madagáscar e do Bangladesh. O país ganhou apenas um ponto em relação ao ano anterior.
Para Baltazar Fael, investigador do Centro de Integridade Pública (CIP), as instituições moçambicanas continuam a ser "fracas" no combate à corrupção. "E numa instituição que é fraca, facilmente entra a corrupção e é possível manipular as coisas de modo a que aqueles, que pretendem fazer, com essas instituições facilmente o façam", sublinha.
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Nyusi, Gebuza e FRELIMO "poupados"
O diretor do Centro para a Democracia e Desenvolvimento (CDD), Adriano Nuvunga, questiona a ausência no julgamento das dívidas ocultas de peças-chave para entender o escândalo, como o atual Presidente Filipe Nyusi e o antigo chefe de Estado Armando Guebuza.
Nyusi era, na altura dos acontecimentos, o responsável pela pasta da Defesa, área em que atuavam as empresas que pediram os empréstimos ocultos à revelia do Parlamento, e Guebuza era o líder do Governo.
Mas há mais pessoas que deviam ser chamadas ao banco dos réus, entende Nuvunga. "Incluindo o antigo governador do Banco de Moçambique - a assinatura dele foi chave para essa operação acontecer, mas está a ser protegido pelo Tribunal Administrativo. E Isaltina Lucas, que era tesoureira", enumera.
Veja imagens da audição de Ndambi Guebuza
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Também o advogado Elvino Dias lamenta a ausência de várias figuras do partido do poder, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), que foram citadas em Nova Iorque no julgamento de Jean Boustani, diretor executivo do grupo Privinvest, envolvido no escândalo.
"Fez-se referência ao partido FRELIMO, que recebeu 10 milhões de dólares. Porque não se fez menção desses dinheiros que fazem parte das dívidas ocultas? Para além do partido FRELIMO, temos quadros seniores do Banco de Moçambique que deviam estar na barra do tribunal", defende.
As justificações de Efigénio Baptista
Durante o julgamento, o juiz da causa Efigénio Baptista esclareceu as ausências do Presidente Filipe Nyusi e de Armando Guebuza como réus neste processo. "O Presidente Guebuza e a sua esposa, nas contas deles, não têm recebimento de nenhum valor da Privinvest. O Presidente Nyusi idem, não tem nada", justificou.
O jurista Elvino Dias acredita que este terá sido mais um julgamento político, para lavar a imagem de Moçambique no panorama internacional.
"O Fundo Monetário Internacional (FMI) retomou as relações de cooperação com Moçambique e, muito recentemente, o Banco Mundial firmou parcerias com Moçambique, o que significa que este julgamento era necessário para desanuviar esta tensão que o país estava a enfrentar com as instituições financeiras internacionais", argumenta.
O juiz Efigénio Baptista marcou a sentença do caso das dívidas ocultas para 30 de novembro de 2022.
Moçambique: Propriedades e instituições ligadas às "dívidas ocultas"
O processo denominado "dívidas ocultas" envolve não apenas pessoas de muitos quadrantes políticos e sociais, mas também empresas, propriedades e instituições.
Foto: Romeu da Silva/DW
O julgamento das "dívidas ocultas" decorre no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo
O processo decorre no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo desde 23 de Agosto de 2021. A sexta sessão revelou que arguidos e declarantes adquiriram residências luxuosas e criaram empresas de lavagem de dinheiro. A sociedade moçambicana ficou a conhecer a extensão da lesão que sofreu por causa das dividas ocultas.
Foto: Romeu da Silva/DW
Tudo começou no bairro de Sommerschield
Tudo começou no bairro de elite da Sommerschield, onde fica a sede do Serviço de Informações e Segurança do Estado (SISE). Não se trata do edifício na foto, já que é proibido fotografar o edifício do SISE. Mas foi nas suas instalações que foi desenvolvido o projeto de proteção da Zona Económica Exclusiva (ZEE), que acabou endividando o Estado em cerca de 2,2 mil milhões de dólares.
Foto: Romeu da Silva/DW
Lavagem de dinheiro
No julgamento, o Ministério Público (MP) acusou o réu António Carlos do Rosário de ser proprietário de vários apartamentos neste edifício chamado Deco Residence. O MP refere que do Rosário comprou, em 2013, três apartamentos, no valor de 500 mil dólares cada. O valor foi transferido pela IRS para a Txopela Investiments, de que era administrador.
Foto: Romeu da Silva/DW
Tribunal confisca apartamentos
Alexandre Chivale, advogado do réu António Carlos do Rosário, ocupava um apartamento aqui na Deco Assos. Foi obrigado a abandonar a unidade e a entregar a chave ao Tribunal de Maputo. A área residencial está a ser construída ao longo da marginal, uma zona que passou a ser muito concorrida.
Foto: Romeu da Silva/DW
Apartamento Xenon
António Carlos do Rosário também terá "metido a mão" neste imóvel. Na acusação consta que, em 2015, a Txopela transferiu 2,9 milhões de dólares para a Imobiliária ImoMoz para a compra de apartamentos neste edifício, que antes funcionava como cinema Xenon.
Foto: Romeu da Silva/DW
Alerta lançado pela INAMAR foi ignorado
A INAMAR é uma empresa que se dedica à inspeção naval. No processo da contratação das dívidas, a INAMAR avisou que os barcos da empresa pública EMATUM, que custaram 600 milhões de dólares, foram construídos à revelia das normas. Por causa das irregularidades, a INAMAR chumbou as embarcações. E alertou as autoridades relevantes, que ignoraram o relatório.
Foto: Romeu da Silva/DW
Casa de câmbios transformada em "lavandaria"
A Africâmbios transformou-se numa casa na lavagem de dinheiro. Alguns funcionários foram obrigados a abrir contas, usadas pelos seus superiores para a transferência de dinheiro da empresa Privinvest, igualmente envolvida no escândalo. O proprietário da Africâmbios, Taquir Wahaj, fugiu e é procurado pela justiça moçambicana.
Foto: Romeu da Silva/DW
Presidência e reuniões do comando conjunto
A presidência da República, perto da edifício da secreta moçambicana, acolheu algumas reuniões do Comando Conjunto e Operativo onde estiveram os ministros da Defesa, Filipe Nyusi, atual Presidente da República, Alberto Mondlane, ministro do Interior e elementos do SISE. Há muita pressão para que o antigo Presidente Guebuza e Nyusi sejam ouvidos como réus e não como declarantes no caso.
Foto: Romeu da Silva/DW
MINT fazia para do Comando Conjunto
O Ministério do Interior, assim como o Ministério da Defesa, eram considerados cruciais no projeto de Proteção da Zona Económica Exclusiva. O tribunal tem na lista de declarantes o antigo ministro Alberto Mondlane para prestar declarações e o papel que este Ministério teve na contratação das dívidas ocultas.