No Ruanda, na aldeia de Mbyo, a 40 quilómetros da capital, Kigali, tutsis que sobreviveram ao genocídio, há 30 anos, vivem agora com hutus reabilitados. Contam à DW que tem sido uma convivência difícil.
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Quando o genocídio contra os tutsi começou, a 7 de abril de 1994, Kazimungu Frederick e Nkundiye Tharcien, ambos hutu, mataram os seus vizinhos tutsi, com quem tinham vivido em paz durante muitos anos no Ruanda.
Foram ambos condenados por participação ativa no genocídio. Após cumprirem nove anos de prisão, foram libertados antecipadamente por terem pedido perdão às famílias das vítimas.
Agora, os dois homens, hoje com 56 e 74 anos, respetivamente, vivem lado a lado com sobreviventes do genocídio em Mbyo, uma aldeia situada a 40 quilómetros da capital, Kigali.
É uma das seis aldeias de reconciliação onde perpetradores e sobreviventes do genocídio vivem juntos e tentam reconciliar-se com o passado. Vivem aqui pelo menos 400 pessoas, tanto hutus como tutsis.
O grupo rebelde do Presidente Paul Kagame, a Frente Patriótica Ruandesa, liderada pelos tutsis, pôs fim ao genocídio ao fim de 100 dias, tomou o poder e, desde então, governa o Ruanda.
Ruanda: Recordar o genocídio
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Uma nova identidade
"Declarei-me culpado e pedi perdão aos sobreviventes cujos familiares matei e agora vivemos em paz, tanto sobreviventes como perpetradores. Já não nos identificamos por linhas étnicas", conta Nkundiye Tharcien à DW.
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"Ninguém me obrigou a reconciliar-me. Aqueles que vivem fora do Ruanda e que pensam que fomos forçados a reconciliar-nos com os tutsis querem manchar a imagem do país", diz.
"Enquanto estive na prisão, enviei uma carta a Anastasie [sobrevivente do genocídio] a contar como matei os membros da sua família e a pedir-lhe perdão", explicou Tharcien, acrescentando que "os autores que se recusaram até agora a admitir o seu papel no genocídio deviam confessar e talvez pudessem ser libertados".
Também Fredrick, agora pai de sete filhos, pediu perdão e foi libertado da prisão. Mas culpa o antigo governo por ter incitado civis como ele a matar os vizinhos tutsis.
"As autoridades disseram-nos que os tutsis eram nossos inimigos e que tinham colonizado os hutus durante muito tempo. Por isso, quando começaram as matanças, tínhamos de matar os tutsis. Quando olho para trás, arrependo-me e sei que não devia ter matado pessoas", confessa.
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Reconciliação difícil
Usengimuremyi Silas e Mukamusoni Anastasie, sobreviventes do genocídio e vizinhos dos dois homens que mataram membros das suas famílias, afirmam que se reconciliaram com os perpetradores graças aos esforços do governo para promover a reconciliação..
"Inicialmente, ficámos aterrorizados ao saber que os autores do genocídio iriam regressar às comunidades. Não tínhamos alternativa porque muitos não contaram toda a verdade sobre a sua participação nos assassínios. No entanto, precisávamos de alguma forma de encerrar esse capítulo", conta Silas.
Em 1994, quando tinha 20 anos, Anastasie viu tutsis indefesos perto da aldeia de Mbyo. Tharcien matou o primeiro marido de Anastasie, mas agora são vizinhos e ajudam-se mutuamente em momentos de necessidade. "Quando preciso de ajuda, Tharcien está sempre disponível", conta Anastasie à DW, acrescentando que demorou muito tempo "a pensar que podia interagir com um hutu".
No início, não via com bons olhos a ideia de os perpetradores regressarem às comunidades. Mas agora tem de viver com eles na aldeia de reconciliação de Mbyo, que alguns ruandeses citam como um exemplo de como as pessoas podem coexistir pacificamente 30 anos após o genocídio.
O genocídio no Ruanda
O genocídio no Ruanda, 25 anos atrás, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo a França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: picture-alliance/dpa
O pontapé do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então Presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o Presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do Presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiraram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação Radio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura", incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura desportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. E permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo, onde representam até hoje uma ameaça para o Ruanda.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste congolês.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do Governo. Os rebeldes assumiram o controlo da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um Governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o Presidente do Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebés, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.
Foto: Timothy Kisambira
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Lidar com o passado
Embora a história de reconciliação do Ruanda pareça estar a resultar, os ruandeses continuam a debater-se com o legado do genocídio. Phil Clark, professor na Universidade de Londres, disse à DW que o Ruanda fez enormes progressos na reconciliação pós-genocídio.
No entanto, considera que se tem dado "demasiada importância a estes modelos de aldeias de reconciliação", onde o governo quer levar visitantes estrangeiros para mostrar os progressos do país em matéria de reconciliação.
"A história mais importante é a de como centenas de milhares de perpetradores condenados regressaram às suas comunidades de origem e puderam reconstruir as suas vidas e contribuir para o desenvolvimento dessas comunidades", sublinha Clark.
O modelo das aldeias de reconciliação é observado com interesse por muitos, apesar das críticas de que é uma imposição artificial. Em Mbyo, no entanto, a realidade quotidiana de convivência pacífica sugere que a reconciliação pode ser genuína e transformadora.