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HistóriaMoçambique

Unango: O ataque que parou a ajuda da RDA a Moçambique

4 de dezembro de 2020

Moçambique foi o principal beneficiário da ajuda ao desenvolvimento da Alemanha Oriental. Mas um ataque a 6 de dezembro de 1984 em Unango, na província do Niassa, travou um dos maiores projetos agrícolas em África.

Niassa in Mosambik
Unango na província do Niassa no norte de MoçambiqueFoto: DW/G. Sousa

Como "país irmão" socialista, Moçambique foi o principal beneficiário da ajuda ao desenvolvimento da República Democrática Alemã (RDA). No início da década de 1980, o Governo da Alemanha Oriental iniciou um mega-projeto para modernizar a agricultura em Moçambique. Foram planeadas explorações agrícolas de 120.000 hectares em vários pontos do país. Mas um ataque desmoronou o projeto.

O ataque teve lugar a 6 de dezembro de 1984 na província nortenha do Niassa. Peritos da RDA - mais de uma dezena - trabalhavam na aldeia de Unango, ajudando a cultivar 1.500 hectares. Viviam na capital provincial, Lichinga, e percorriam todos os dias 60 km até aos campos em Unango, num mini-autocarro ou numa carrinha. Durante uma destas viagens, foram atacados por homens armados. Foi o pior ataque a funcionários da ajuda ao desenvolvimento da RDA em Moçambique. Oito cidadãos da RDA, um trabalhador jugoslavo e cinco moçambicanos morreram. Até hoje, não se sabe ao certo quem levou a cabo o ataque.

Manfred Grunewald foi um dos chamados "cooperantes" enviados pela RDA a Unango. Ele estava em Maputo quando recebeu a notícia do ataque, estava prestes a voar para casa.

DW África: O que aconteceu exatamente naquela manhã de dezembro, quando esta coluna de peritos da RDA acompanhados pelo Exército moçambicano se deslocou de Lichinga, o local da residência dos peritos, em direção a Unango, o local de trabalho?

Manfred Grunewald (MG): Três meses antes do ataque, as nossas viagens ao local de produção agrícola passaram a ser escoltadas porque, ao contrário do que acontecia no passado, apareceram no norte pessoas da RENAMO [Resistência Nacional Moçambicana] que atacavam a população. A RENAMO não visava alvos militares estratégicos, mas atacava a população de forma muito intensa - aldeias inteiras ficaram vazias. Foi o que aconteceu neste percurso, em que duas aldeias foram atingidas. A nossa escolta era constituída por militares do Exército e também "antigos combatententes", militares que ajudaram a libertar o país a partir do norte com Samora Machel [o primeiro Presidente de Moçambique]. Tinham estatuto militar, mas claro que tinham muito pouca formação. 

Erich Honecker, secretário-geral do Partido Socialista Unificado da Alemanha (PSUA) e Presidente do Conselho de Estado da RDA, recebe Samora Moisés Machel, Presidente de Moçambique, em Berlim (19 de setembro de 1980)Foto: Bundesarchiv/Bild 183-M09 19-0116 F. Gahlbeck

DW África: O que aconteceu exatamente?

MG: A estrada em que seguíamos era uma estrada betuminosa ainda do tempo dos portugueses que vai para o norte, em direção a Metangula, ou seja, em direção ao Lago Niassa ou à Tanzânia. Nós usávamos esta estrada todos os dias. Primeiro, íamos em mini-autocarros, quando ainda tínhamos gasolina. Mais tarde, já sem gasolina suficiente e tendo de usar gasóleo, só nos restava a carrinha. Sentávamo-nos na carrinha e íamos todos os dias para Unango. Iam muitos moçambicanos connosco e eram feitas colunas, que seguiam para Unango, com escolta, na ida e na volta. E nessa manhã, já eu me encontrava em Maputo, provavelmente eles estivessem à espera que a coluna passasse. Só a meio caminho, em Bacarilla, é que os guardas se juntaram à coluna. No trajeto até aí, de Lichinga, não houve problemas. Mas 20 km depois, ou seja, 10 km antes de chegar a Unango, houve um forte ataque com metralhadoras contra pessoas completamente desarmadas.

Os guardas, que tinham pouca formação, deveriam proteger-nos. Mas um soldado sabe que, quando começa a ser atacado, tem de se retirar, para se proteger. Mais tarde, isso foi interpretado nos relatórios do MfS [Ministério da Segurança do Estado, o serviço secreto da RDA] como "comportamento capitulatório" dos militares. Não vejo as coisas dessa forma. Cria-se uma ideia completamente errada do que aconteceu quando as coisas são ditadas para dossiers dos serviços secretos a 1.800 quilómetros do local em Maputo. Quantas avaliações superficiais foram feitas na altura?! 

DW África: Ou seja, nenhum dos guardas ficou ferido. Só morreram os peritos da RDA?

MG: Não, não é bem assim. Sete alemães foram mortos no local, houve um ferido ligeiro e outra pessoa ficou gravemente ferida na cabeça. Havia também um cooperante jugoslavo e cinco moçambicanos, incluindo dois militares, que morreram. Não é verdade que os militares tenham desaparecido ou que não tenham disparado. Pelo contrário. Foram mortos porque resistiram.

Nós europeus - os jugoslavos ou nós cooperantes alemães - não tínhamos armas, claro. Nunca um cidadão da RDA andou com uma arma em Moçambique, pelo menos não onde eu estava. E, mesmo os moçambicanos que foram mortos, incluindo um estudante de doutoramento que tinha acabado de chegar dos EUA e que estava no meu departamento há apenas três semanas, foram alvejados, tal como o motorista com quem organizávamos a maioria das ações de venda de vegetais, milho, lenha, carvão vegetal, etc. Ele era quem tinha mais medo da RENAMO e foi o primeiro a ser baleado. Os nomes deles estão, como os dos outros, num pequeno monumento que erguemos 25 anos mais tarde perto de Lichinga, no local do ataque, em memória dos mortos.

Monumento no local do ataque em Unango com colegas e familiares das vítimas (foto de 2009)Foto: Manfred Grunewald

DW África: Ambos os feridos sobreviveram?

MG: O ferido grave foi levado para Maputo num pequeno avião e foi operado. Sucumbiu aos ferimentos dez dias mais tarde. No seu caso, suspeitava-se que foi atingido por uma bala dum dum [bala expansiva]. Isto significa que foram utilizados projéteis que hoje em dia não são autorizados na guerra e que naquela altura também já não eram permitidos. Esse especialista morreu e, mais tarde, o corpo dele foi transferido para a RDA. A pessoa que foi ferida por uma bala na perna viajou connosco para casa. Sobreviveu e pôde continuar a desempenhar a sua profissão. O problema é que quase todos ficaram traumatizados.

DW África: Portanto, no total, houve oito peritos da RDA que morreram, um perito jugoslavo e cinco moçambicanos. Estes outros mortos raramente são mencionados nas reportagens nos média aqui na Alemanha. O que aconteceu nos dias seguintes? O projeto continuou ou todos tiveram de regressar?

MG: Receamos que até tenha havido mais mortos, mas não conseguimos descobrir se isso é verdade. Este ataque terrorista que resultou na morte de tantas pessoas também teve como resultado o encerramento deste projeto de um dia para o outro. Havia atiradores furtivos em Unango que nem sequer permitiam que as máquinas e outro equipamento fossem retirados do local. Mais tarde, o Exército teve de ir para lá e proteger as máquinas que lá estavam desde a época da RDA, para que pudessem ser transferidas para outra localidade. Alguns trabalhadores ainda se conseguiram mudar para outra exploração. Ao todo, havia mais de 500 postos de trabalho em Unango. Isso significa, grosso modo, que mais de 2.000 pessoas viviam do que ali fazíamos. Não só receberam dinheiro, como também aprenderam connosco disciplina. Aprenderam a fazer uma boa distribuição quando há constrangimentos. Também aprenderam o trabalho no escritório, no trator, na oficina, em todo o lado. Tudo isto desmoronou de um momento para o outro, porque se suspeitava da presença de atiradores furtivos, algo que afugentava qualquer pessoa que lá quisesse trabalhar.

DW África: Então, o Governo em Berlim decidiu retirar todo o pessoal da RDA deste projeto?

MG: Todo o desenvolvimento agrícola que foi iniciado com a RDA entrou em colapso.

DW África: Não só em Unango?

MG: Não só em Unango. Mas o projeto Unango era o mais desenvolvido e o mais bem sucedido. Foi o que me disseram os peritos moçambicanos quando fiz uma visita há dez anos, quando erguemos o monumento. E é provavelmente por isso que Unango tenha sido um alvo. Por vezes aparecíamos nos jornais, tanto na Alemanha como em Moçambique. E isso foi mal visto pelos adversários. Mas, até hoje, não sabemos quem eram os verdadeiros atiradores.

DW África: Então nem sequer sabe ao certo se foi um ataque da RENAMO?

MG: Não temos a certeza disso. Há dez anos, começámos a fazer um pequeno filme para a MDR [Mitteldeutscher Rundfunk, uma emissora pública alemã] porque não abordávamos esta questão há duas décadas. Durante 20 anos, só falávamos sobre o que aconteceu entre nós, do grupo de Lichinga-Unango, que manteve o contacto. Em conjunto, fizemos também um trabalho psicológico, porque, de outra forma, não teríamos sido capazes de falar sobre aqueles dias e horas difíceis da nossa vida. Houve também uma mudança política com o fim da RDA [em 1989]. Depois, cada um teve de lutar pelo seu posto de trabalho e por tudo. 

"Os mortos têm netos e eles querem saber o que aconteceu!"

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DW África: Depois do seu regresso, recebeu ajuda para lidar com o trauma, ou os familiares das vítimas?

MG: Tanto quanto sei, as viúvas só tiveram direito a alguns dias de baixa quando regressaram. Os funerais foram pagos, tal como os anúncios dos falecimentos nos jornais locais. Isso foi permitido. Também foi prestada ajuda a uma viúva que tinha de ir para outro local, porque precisava de uma mudança na sua vida. Houve apoio. Houve também pensões de sobrevivência para os filhos órfãos e pensões de viuvez - eram coisas que estavam previstas nas leis da RDA. Mas não houve nenhum apoio especial, nem antes nem depois do fim da RDA.

O ataque nem sequer foi investigado. O Estado não fez nada. Nem a RDA, nem a República Federal da Alemanha ou o Ministério Público tentaram esclarecer este massacre, este ataque terrorista.

Sou um "filho da RDA". Recebi uma boa educação, apesar dos meus pais terem tido oito filhos. Todos recebemos uma educação muito boa e tive a sorte de poder viajar para o estrangeiro. Essa era, na verdade, a nossa grande ambição. É claro que estávamos interessados neste tratado [de cooperação e amizade entre a RDA e Moçambique], mas estávamos especialmente interessados na possibilidade de ir para o estrangeiro. Lá conseguimos mostrar e aplicar o que aprendemos em cursos de formação de agricultura tropical. E falámos português desde o primeiro dia, porque tínhamos feito cursos perto de Leipzig, onde tínhamos sido preparados.

DW África: Quando voltaram à RDA depois destes terríveis acontecimentos e ninguém se mostrou interessado, não se sentiram sozinhos?

MG: O que mais me desapontou, na verdade, foi que a sociedade tenha aproveitado pouco ou nada do que lá se fez. Bem, os amigos e familiares ou mesmo colegas de trabalho estavam sempre interessados.

Ao longo dos anos, mais de 1.000 peritos estiveram em Moçambique e ajudaram em diversas áreas especializadas. O grupo de agricultores demonstrou que é possível produzir alguma coisa mesmo naquelas condições, na estação seca e chuvosa, apesar das caraterísticas do solo e dos condicionalismos naturais do norte de Moçambique, a uma altitude de 1.000 metros, em Lichinga. Os moçambicanos não precisam de pedir comida à Europa.

Monumento em Unango em memórias das vítimas do ataqueFoto: Manfred Grunewald

DW África: O que desejaria dos dois governos, do alemão e do moçambicano, para que este ataque de Unango seja finalmente esclarecido?

MG: Antes de mais, gostaria que a Alemanha não se ficasse por procedimentos técnico-jurídicos, mas pensasse também em reconhecer publicamente os feitos dos peritos naquela época. Em segundo lugar, será que é possível resolver esta questão? Quem esteve por detrás do ataque ao nosso grupo? Num curto ataque, foram todos alvejados e deixados para trás - aquelas pessoas pagaram com as suas vidas o seu empenho por boa causa.

Mas não há ninguém no nosso grupo que sinta ódio ou antipatia pelo povo moçambicano. Pelo contrário, sabemos que existiam elementos que queriam perturbar o desenvolvimento. Quando há guerra e terror, a humanidade não se consegue desenvolver normalmente. Mas aquela era uma oportunidade: no Niassa, seja com socialismo, seja com capitalismo, poderíamos ter produzido alimentos em quantidade suficiente para colocar no mercado. Já tínhamos duas lojas de venda de legumes, milho e carvão vegetal. Portanto, estávamos a construir algo que não deveria ter sido destruído. É isso que imputo aos elementos moçambicanos que provocaram essa destruição. Há dez anos atrás houve um filme da MDR [emissora pública alemã], em que estivemos envolvidos. Na altura, um representante da RENAMO de Lichinga disse: "Acontece muita coisa no contexto da guerra. Mas não fomos nós que fizemos este ataque."

Moçambique não pode recuar para essa posição e dizer apenas que há uma amnistia, que já não vai investigar, que já não está interessado. Éramos alemães, mas temos direito a que haja uma investigação em Moçambique, mesmo que estas pessoas já tenham morrido há muito tempo. As crianças tornaram-se adultos. Os mortos têm agora netos e eles querem saber o que aconteceu naquela altura! 

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