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"Água é direito e não mercadoria"

Renata Galf
21 de março de 2018

Em entrevista à DW, Gilberto Cervinski, que é coordenador do Fórum Alternativo Mundial da Água e dirigente do Movimento dos Atingidos por Barragens, afirma que o principal ponto em debate é o controle sobre o recurso.

Weltwassertag 22.03.2018
Foto: Getty Images/AFP/N. Seelam

Está acontecendo em Brasília a 8ª edição do Fórum Mundial da Água (FMA). O evento, que vai até esta quinta-feira (23/3), reúne governantes, empresários, pesquisadores e sociedade civil.

Realizado a cada três anos, o FMA é uma iniciativa do Conselho Mundial da Água, uma organização com sede na França e que envolve mais de 300 entidades de mais de 50 países. Fundado em 1996, o conselho procura influenciar os tomadores de decisão de alto nível quanto a políticas públicas referentes à água.

E em oposição a ele, mais de 30 entidades da sociedade civil realizam, também em Brasília, o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama). Elas defendem que água não pode ser fonte de lucro. 

Em entrevista à DW, Gilberto Cervinski, que é engenheiro agrônomo, coordenador do Fórum Alternativo Mundial da Água e dirigente do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), explica as diferenças de posicionamento entre os dois eventos.

Leia aqui a posição do FMA: "Reserva de água precisa ser adaptada às mudanças climáticas"

Foto: Joka Madruga

DW: Qual o tema central defendido pelo Fórum Alternativo Mundial da Água?

Gilberto Cervinski: O debate central é o que está em disputa no mundo, o controle da água, que se materializa na proposta de transformar a água numa grande mercadoria internacional. Isso a partir das privatizações e da organização da água de acordo com lógica do sistema financeiro internacional. A disputa é o estabelecimento da propriedade privada sobre a água. Defendemos que a água é um direito, não uma mercadoria.

O FAMA surgiu em oposição ao Fórum Mundial da Água. Qual a crítica em relação ao FMA?

O FMA é um instrumento dos organismos internacionais, principalmente do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), ele foi criado em 1996 com esse caráter. Ele é dominado pelas transnacionais e pelo capital financeiro internacional e apoiado por governos privatistas. Nós o chamamos de fórum das transnacionais.

O objetivo deles já está definido desde 1992, com a Declaração de Dublin sobre Água e Desenvolvimento Sustentável, que é de privatizar a água, transformá-la numa mercadoria para gerar lucro e especulação financeira com tarifas elevadas. Evidentemente, eles não revelam isso de forma clara. Usam um viés ambientalista e de escassez, tentando contabilizar o problema da água como se fosse culpa do povo e da natureza. É uma estratégia para manipular a opinião pública.

Quando se fala em mudanças climáticas, um dos pontos centrais é o acesso à água. Tais mudanças são o motivo das crises hídricas ou há outros fatores?

Nós temos uma avaliação crítica quanto à expressão crise hídrica, o problema não é a seca, é a cerca. O exemplo concreto é que, no FMA, eles falam em compartilhar a água, mas estão proibindo a água. A crise que chamam de hídrica tem relação com a escassez de água, mas ela tem vários vieses. Quem são os maiores desmatadores no mundo? Não é o povo, são as grandes empresas e o agronegócio, as grandes corporações. Um exemplo recente é Correntina, na Bahia, em que os rios secaram devido à irrigação. Junto a projetos de irrigação de grandes grupos econômicos na Bahia surge também uma demanda por projetos de desmatamento e de envenenamento e que causam problemas ambientais, como a redução da absorção e armazenamento de água.

Outro exemplo é a Samarco, que causou um grande desastre e poluiu um rio inteiro. E quem é o dono dela? A Vale e a BHP Billiton, gigantes da mineração, que, por sua vez, têm bancos internacionais como detentores. Exatamente as corporações e grandes banqueiros internacionais que querem privatizar a água são causadores do problema ambiental e da escassez. Não somos a favor de que se culpabilize o povo pela crise hídrica, 67% da água consumida no Brasil vai para megaprojetos de irrigação, outra grande parte para mineração. Focar o debate em dizer que o povo deixa a torneira aberta é desviar a atenção.

O Fama é contra privatização da água. Isso se refere à água como bem ou também à concessão de serviços de tratamento de água e esgoto?

No fundo o que se disputa é o lucro. Para isso é preciso estabelecer o controle sob determinado produto, para transformá-lo em uma grande commodity. A propriedade sobre a água se realiza de várias formas. Você pode privatizar a empresa inteira e ela deixa de ser estatal. Você pode fazer uma concessão por um período de 30 anos. Mas o que significa isso? No Chile, as concessões são perpétuas, qual a diferença do ponto de vista da legalidade?

Ela vai no mesmo sentido, de que, enquanto a empresa tem a concessão, ela é a dona. E mesmo o Estado podendo retirar essa concessão, isso não acontece, pois suas instituições estão capturadas por essas corporações. As concessões são uma forma de privatização, as empresas ganham direito de explorar a água economicamente.

Como acontece essa transformação?

No Brasil já há legislações que estão caminhando para isso desde a Política Nacional de Recursos Hídricos criada em 1997 por Fernando Henrique Cardoso, que diz que a água tem valor econômico, um desdobramento da declaração de Dublin e que segue a lógica de transformar a água em mercadoria.

Já em 2017, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em conjunto com organizações brasileiras, como a Agência Nacional das Águas (ANA), publicou um documento com título Cobranças pelo uso de recursos hídricos no Brasil. Esse documento segue várias lógicas, uma delas é a privatização de todas empresas de saneamento – hoje mais de 90% são estaduais ou estatais – e isso principalmente em regiões mais lucrativas, as que têm mais prejuízo querem deixar para o Estado. O segundo viés é a entrega dos aquíferos com as outorgas, e a terceira estratégia é a privatização dos rios. Isso tudo está em disputa neste momento no Brasil.

E o que o Fama defende?

Defendemos que a água não é uma mercadoria, o povo tem que ser o dono. Ela deve ser fornecida pelo custo real de produção. Hoje há empresas estatais que dão aparência de que o estado controla a água, como a Sabesp, que é 50% privatizada, com ações na bolsa de Nova York e que dá prioridade aos acionistas e investidores. Defendemos empresas 100% públicas e com controle social, aí não haveria corrupção.

Devemos abandonar essa lógica de gestão para o mercado, em que o lucro é todo transferido aos acionistas e não sobra para investir. Muitas estatais também têm essa lógica, repassando o lucro ao governo para pagamento da dívida pública, e assim o dinheiro também cai no sistema financeiro. É preciso reinvestir em infraestrutura, em reservatórios, na qualidade da água, caso contrário o que se vê é sucateamento e grande perda de água. Na nossa avaliação, a tarifa seria muito mais barata se não tivesse todo esse esquema. É preciso criar empresas públicas livres.

A água subterrânea requer menos tratamento, pois geralmente não está poluída. Qual a situação brasileira?

O Brasil tem cerca de 30% das águas subterrâneas do mundo, Alter do Chão e Guarani são os dois maiores aquíferos do mundo. Como essas corporações, como Nestlé, Coca-Cola, Ambev, Pepsico, já praticamente destruíram fontes em outras partes do mundo, seja por contaminação, seja por desmatamento, a indústria de água engarrafada e de bebidas tem grande interesse nesses aquíferos.

Defendemos que eles não podem ser privatizados ou concedidos para essas empresas explorarem. A Coca-Cola está fazendo propaganda de que forneceria para os vizinhos de sua fábrica água de graça, enquanto, na verdade, há relatos sobre locais onde ela tirou tanta água que o povo ficou sem. A gestão dos aquíferos tem que ser de absoluto controle soberano do país e com controle social.

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