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"É a guerra russa na Ucrânia que eleva o preço de alimentos"

8 de junho de 2023

Em SP, ministra alemã diz "compreender" que Ucrânia não encabece preocupações de brasileiros que sofrem com alta de preços, mas que inflação está ligada ao conflito. Fala foi distorcida por contas pró-Rússia nas redes.

Annalena Baerbock  Hubertus Heil em Brasília
Os ministros Hubertus Heil (Trabalho) e Annalena Baerbock (Exterior) em BrasíliaFoto: Kira Hofmann/photothek/IMAGO

A ministra do Exterior da Alemanha, Annalena Baerbock, disse compreender que a população da América Latina tenha percepções diferentes sobre os riscos causados pela invasão da Ucrânia pela Rússia e que o conflito não esteja no topo das preocupações de muitos brasileiros que atualmente sofrem com alta do preço dos alimentos.

Em palestra na Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo na terça-feira (06/06), Baerbock abordou qual é a posição do governo alemão sobre o tema: que segurança e desenvolvimento não são opostos, mas questões dependentes uma da outra. De acordo com Baerbock, a alta dos preços, também na América Latina, está diretamente ligada à guerra lançada pela Rússia contra a Ucrânia.

"Gostaria de dizer claramente: compreendo perfeitamente que vocês aqui na América Latina percebam a ameaça desta guerra de maneira diferente de nós na Europa. Já ouvi em todo o mundo: em primeiro lugar, 'Onde você estava quando precisávamos de você?'. Mas também 'Onde fica mesmo a Ucrânia'. Compreendo perfeitamente que uma mãe do Itaquera [bairro de SP] ou de Campinas diga: 'Para mim, o preço do arroz e do feijão no supermercado nesta semana é mais importante do que o que acontece em um país a 11 mil quilômetros de distância'", disse Baerbock. (Leia íntegra do discurso, em alemão)

Na sequência, a ministra, filiada ao Partido Verde da Alemanha, de centro-esquerda, afirmou que, do ponto de vista do governo alemão, a alta dos preços que castiga a população, não no Brasil, mas também na Alemanha, está ligada às ações bélicas da Rússia.

"A guerra na Ucrânia não só nos pegou de surpresa como europeus – que sempre acreditaram que poderíamos conviver juntos em paz com a Rússia, como vocês fazem aqui em seu continente junto com seus países vizinhos – mas é também a guerra da Rússia contra a Ucrânia que está elevando os preços dos alimentos, os preços do arroz e do feijão em todo o mundo", continuou.

A ministra concluiu sua fala sobre o tema da Ucrânia resumindo qual era sua intenção ao abordar o tema, indicando que gostaria que os países da América Latina entendessem a posição alemã e adotassem uma posição mais ativa contra as ações da Rússia na Ucrânia.

"Segurança e desenvolvimento não são opostos, são mutuamente dependentes. E se ignorarmos uma violação tão brutal da carta das Nações Unidas, a ordem internacional baseada em regras, então não apenas o agressor prevalecerá, mas o livre comércio também não terá mais chance. Porque, como no futebol: se algumas pessoas não seguirem as regras, se simplesmente não aceitarem as regras do jogo, não haverá mais um jogo justo", prosseguiu Baerbock.

"É por isso que estou aqui hoje – em minhas conversas com o governo, em lugares muito diferentes – pedindo a vocês que façam tudo o que pudermos para garantir que finalmente haja paz na Ucrânia novamente", concluiu a ministra no tema da Ucrânia.

No momento, ao contrário da Alemanha, países latino-americanos, como o Brasil, vêm evitando impor sanções à Rússia ou fornecer material bélico para os ucranianos. Por outro lado, o Brasil e vizinhos votaram a favor de resoluções nas Nações Unidas que condenaram a invasão da Ucrânia e a anexação ilegal de território pelos russos.

No mesmo discurso em São Paulo, a ministra também abordou temas como a presença de empresas alemãs no Brasil, fez elogios à posição firme do governo Lula contra a tentativa de golpe de 8 de janeiro, mencionou os desafios criados pela Inteligência Artificial, o acordo Mercosul-UE e preservação da Amazônia. Baerbock também não escondeu sua satisfação com a recente mudança de governo no Brasil e a reversão de políticas antiambientais implementadas nos últimos anos. "O mundo estava com saudade do Brasil", disse Baerbock, em português.

Fala sobre alta de preços foi distorcida por contas pró-Rússia nas redes sociais

Apesar do tom contemporizador da ministra Baerbock sobre o contexto brasileiro em relação à Ucrânia em seu discurso em São Paulo, contas nas redes sociais que veiculam propaganda russa distorceram a fala para passar a falsa ideia de que o conteúdo tenha sido uma crítica impertinente ou deboche aos brasileiros.

Os comentários mentirosos rapidamente se espalharam, especialmente no Twitter, provocando agitação entre muitos usuários brasileiros, que passaram então a dirigir críticas e ofensas à ministra alemã.

Um recorte do vídeo acompanhado de mensagens que induziam os usuários a entender a fala na palestra em São Paulo como um deboche ou crítica começou a aparecer na madrugada de quarta-feira no Twitter.

Um dos primeiros tuites mostrava um pequeno trecho do discurso com legendas em russo. Em seguida, começam a aparecer versões com legendas em inglês, divulgadas por contas que também veiculam mensagens contra o filantropo George Soros, reproduzem paranoia QAnon e que elogiam o comentarista de extrema direita americano Tucker Carlson, que tem posições críticas ao governo ucraniano. As contas em inglês chamaram Baerbock de "promotora da guerra" e "agente da CIA". Depois, apareceu a primeira versão com legendas em espanhol.

Os primeiros tuites distorcidos não conseguiram viralizar. Mas isso mudou quando finalmente surgiu uma versão com legendas em português, no final da manhã de quarta-feira, publicada por uma conta chamada "GeopoliticaBR", criada em novembro de 2022, repleta de vídeos de tropas russas combatendo na Ucrânia e elogios aos mercenários do Grupo Wagner.

O tuite em português seguiu a fórmula das mensagens que já haviam sido publicadas em inglês, recortando um trecho da fala de Baerbock, sem o contexto integral do seu raciocínio.

Ainda assim, até mesmo esse pequeno trecho recortado indicava que a fala da ministra foi no sentido de compreender o contexto brasileiro – o que foi notado por alguns usuários. Mas o principal truque usado por essa conta foi publicar no cabeçalho do vídeo uma mensagem distorcida para induzir usuários a endossar ou lançar ataques à ministra.

No trecho recortado do vídeo, Baerbock afirmou que "entendo perfeitamente que uma mãe de Itaquera ou de Campinas diga: ‘Para mim, o preço do arroz com feijão no supermercado nesta semana é mais importante do que o que acontece em um país a 11 mil quilômetros de distância'".

No entanto, a mensagem publicada pela conta pró-Rússia, resume falsamente no topo do vídeo a fala como "'Brasileiros se preocupam mais com preço do feijão do que com a Ucrânia', critica ministra da Alemanha (sic) ". A inserção enganosa do termo "critica", a ausência do raciocínio completo da fala, e o resumo mentiroso no cabeçalho prepararam o terreno para que o tuite viralizasse.

Em menos de 24 horas, a publicação em português gerou 3,5 milhões de visualizações e mais de 6.500 retuites comentados. Alguns usuários que reproduziram o conteúdo não parecem ter percebido que ele se originou numa conta que reproduz propaganda russa, enquanto alguns emitiram indicação de nem mesmo ter assistido o trecho recortado até o fim, sendo induzidos pelo falso resumo da fala no topo do tuite.

Alguns jornalistas e usuários apontaram que o tuite era distorcido e que a conta que veiculou o resumo enganoso parecia suspeita. Mas nenhuma dessas publicações conseguiu até o momento o mesmo alcance.

Estela Aranha, coordenadora de direitos digitais do Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Lula, que participou ao lado de Baerbock do evento Democracia e digitalização: desafios da era digital, da FGV em São Paulo, também tentou denunciar o recorte manipulador da fala da ministra que foi difundido nas redes.

"Eu participei do evento em que a ministra das Relações Exteriores da Alemanha abriu com uma fala cujo trecho está circulando recortado e descontextualizado nas redes sociais, numa manipulação para que ela seja compreendida de forma completamente equivocada e injusta", escreveu Aranha no Twitter.

"[A ministra disse] que compreende que a discussão da guerra da Ucrânia não é central para o dia a dia dos brasileiros (e é normal que seja assim) e por isso ela quer aprofundar a discussão, mostrar como a guerra traz insegurança, instabilidade e desafios econômicos para os países europeus", conclui a coordenadora.

Visita ao Brasil

Baerbock e o ministro alemão do Trabalho, Hubertus Heil, chegaram ao Brasil na última segunda-feira, com agenda em Brasília e São Paulo. Na pauta, além da discussão sobre o ponto de vista alemão sobre a Ucrânia, estavam o recrutamento de profissionais de enfermagem brasileiros para trabalhar na Alemanha e questões de proteção da Amazônia.

Em Brasília, Baerbock se encontrou com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. A Alemanha é um dos principais financiadores do Fundo Amazônia, um mecanismo bilionário para fomentar programas de proteção da floresta. O fundo ficou paralisado sob o governo Bolsonaro, quando as relações Brasil-Alemanha ficaram estremecidas, mas foi retomado após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência. Após a vitória de Lula, a Alemanha anunciou um novo aporte de R$ 200 milhões ao fundo.

Baerbock durante encontro com Marina Silva em BrasíliaFoto: Kira Hofmann/photothek/IMAGO

O chanceler federal Olaf Scholz, e o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier também realizaram em janeiro visitas ao Brasil, não escondendo a satisfação com a vitória de Lula nas eleições e demonstrando forte expectativa com uma retomada de relações amistosas entre os dois países após o fim do governo Bolsonaro.

Antes de embarcar para o Brasil no último domingo, Baerbock afirmou: "O novo governo do presidente Lula quer trazer a voz forte do Brasil para resolver os desafios mais urgentes do mundo. Estamos unidos pela firme convicção de que só pode haver prosperidade se houver liberdade e paz – mesmo que tenhamos perspectivas diferentes, como foi o caso recentemente com a guerra de agressão russa contra a Ucrânia".