Caso de mulher que, apesar de ter nascido no Rio e ter pais brasileiros, perdeu o passaporte e foi entregue aos EUA chamou a atenção para a questão da dupla cidadania, um território jurídico nebuloso.
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A resposta é sim. Apesar de ter nascido no Rio de Janeiro e ser filha de pais brasileiros, Cláudia Cristina Hoerig não é mais considerada brasileira e foi entregue pelo Brasil aos Estados Unidos em 17 de janeiro passado, para ser julgada pelo homicídio do ex-marido, o americano Karl Hoerig.
A notícia alarmou muitos brasileiros que obtiveram nacionalidades de outros países. No entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), Cláudia se tornou cidadã dos Estados Unidos ao se naturalizar no país voluntariamente e, por isso, perdeu a nacionalidade brasileira.
A Constituição brasileira de 1988 prevê que brasileiros natos que tenham adquirido outra nacionalidade podem perder a nacionalidade brasileira, independentemente de terem cometido crimes no exterior, como foi o caso de Claudia.
A perda de nacionalidade, no entanto, não se dá de forma automática. Para que isso aconteça com brasileiros natos, é preciso que o Ministério da Justiça brasileiro instaure um processo de perda de nacionalidade.
Mas isso não acontece com frequência, em parte devido à falta de um sistema de troca de informações entre órgãos consulares de outros países e o Brasil quanto a brasileiros que obtenham outras cidadanias.
No caso de Cláudia Hoerig, o Ministério da Justiça tomou conhecimento da dupla cidadania porque os EUA pediram ao Brasil sua extradição para que ela fosse julgada pela Justiça americana.
Outra possibilidade é que o próprio brasileiro solicite perder sua cidadania brasileira. Para tanto, é preciso enviar um requerimento ao Ministério da Justiça expondo a vontade de perder a nacionalidade e comprovar a aquisição da outra cidadania.
Constituição
Como a perda da nacionalidade pressupõe a abertura de um processo no Ministério da Justiça, o que acontece é que muitos brasileiros que, em tese, poderiam perder a nacionalidade brasileira simplesmente não a perdem porque não há instauração do processo.
Há duas exceções legais que permitem ao brasileiro ter mais de uma nacionalidade. Uma delas é quando a outra cidadania é um direito originário, isso é, devido a laços sanguíneos com seus pais ou antepassados.
Esse é o caso de muitos brasileiros descendentes de portugueses, italianos e alemães e que têm o direito à segunda nacionalidade reconhecida na lei dos respectivos países. Desde que nasceu, a pessoa já tinha direito – por parentesco – a ter outra cidadania.
A outra exceção envolve brasileiros que vivem em um país no qual a aquisição da cidadania é condição para permanência ou para o exercício de direitos civis. Países em que, por exemplo, sem se naturalizar, o brasileiro não poderia morar ou trabalhar.
"A ideia da Constituição é prever uma situação em que a aquisição de uma segunda nacionalidade fosse quase que contra a vontade, que a pessoa fosse quase obrigada a se naturalizar”, diz o professor de Direito Constitucional da USP Pedro Dallari.
No entanto, explica Dallari, a Constituição é vaga quanto a quais direitos civis justificariam a aquisição de uma segunda nacionalidade.
Deixa de ser brasileiro
O defensor público federal na área de migração e refúgio João Chaves explica que, juridicamente, definir se a pessoa optou voluntariamente pela naturalização não é simples.
"É uma questão que depende muito da situação caso a caso”, diz. "Se a pessoa fez isso para não perder direitos, isso deve ser considerado pelo Brasil para não dar como perdida a nacionalidade brasileira.”
A interpretação mais tradicional de direitos civis, segundo Chaves, envolve tanto acesso ao mercado de trabalho como os chamados direitos de liberdade – que incluem, por exemplo, liberdade de opinião, de locomoção e de livre manifestação. Já a interpretação mais moderna da teoria dos direitos humanos inclui também direitos fundamentais como direito à saúde, educação e assistência social, ressalta o defensor público.
Tanto Dallari quanto Chaves relativizam direitos políticos - o que abrangeria a possibilidade de votar e ser votado - como um dos direitos que justificariam o brasileiro ter adquirido outra nacionalidade.
“Caso contrário, a pessoa sempre poderá alegar que se naturalizou para poder exercer direitos civis no país. A nacionalidade de outro país sempre gerará algum direito neste outro país”, justifica Dallari.
O caso Alemanha
Apesar de não impor a naturalização aos estrangeiros que queiram trabalhar ou morar em seu território, a Alemanha prevê em sua Constituição determinados direitos civis exclusivos ao cidadão alemão.
Por isso, segundo a advogada com escritório na Alemanha Laís Brandão Machado Malkmus, "essa regra deve ser vista como sendo não uma obrigação legal, mas uma situação em que o brasileiro na Alemanha é tratado diferente de como é tratado um alemão e por isso se sente obrigado a se tornar alemão para exercer os mesmos direitos civis”.
Seguindo esse entendimento, os brasileiros residentes na Alemanha cairiam na segunda exceção à perda de nacionalidade prevista no texto constitucional brasileiro, em que a aquisição da cidadania do outro país passa a ser condição para permanência ou para o exercício de direitos civis.
Pela lei alemã, estrangeiros que – entre outras condições – morem há pelo menos oito anos na Alemanha (há exceções que podem encurtar esse tempo) passam a ter o direito à nacionalidade do país. Uma dessas condições é abdicar de sua nacionalidade originária.
No entanto, tal obrigação não se aplica mais aos brasileiros, porque a Alemanha incluiu o Brasil na lista de exceções a esta regra.
Segundo o Ministério do Interior da Alemanha, a regra aplicada em relação ao Brasil é de que "brasileiros que vivem na Alemanha e se naturalizam aqui, em princípio, não são liberados pelo Brasil de sua nacionalidade brasileira".
De acordo com Laís Brandão, desde 2002, os órgãos consulares brasileiros na Alemanha passaram a negar a perda da nacionalidade aos brasileiros que faziam tal solicitação ao adquirir a cidadania alemã.
Desde que o Brasil passou a fazer parte da lista da Alemanha de países que não permitem a revogação de cidadania original, o brasileiro que se naturaliza no país não precisa mais solicitar a perda de sua nacionalidade brasileira ao se naturalizar alemão.
Como obter a cidadania alemã
Você é descendente de alemães ou mora na Alemanha e quer saber se tem direito a passaporte alemão? Veja o que informam as representações diplomáticas e o governo alemão.
Foto: picture-alliance/dpa/R. B. Fishman
Princípio do "ius sanguinis"
A nacionalidade alemã é transmitida pela filiação. Em geral, o local de nascimento não é relevante. Basta que o pai ou a mãe tenha passaporte alemão. Em caso de os pais não serem casados e apenas o pai ter passaporte alemão, o filho tem de ser reconhecido como legítimo antes de completar 23 anos.
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Quado o pai alemão...
...era casado com a mãe da criança quando ela nasceu. Se, quando o filho nasceu, ele não era casado com a mãe da criança nascida depois de 30/06/1993, deve ter sido feito um reconhecimento de paternidade segundo a legislação alemã.
Foto: colourbox/S. Darsa
Se a mãe alemã...
... era casada com o pai da criança (nascida a partir de 01/01/1975) ou que, quando o filho nasceu, era casada com o pai da criança nascida entre 01/04/1953 e 31/12/1974. Nesse caso, deve ter feita uma declaração a uma autoridade ou representação alemã de 01/01/1975 a 31/12/1977.
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Nova regulamentação
Em caso de nascimento fora da Alemanha, não mais se adquire a nacionalidade alemã automaticamente através do nascimento quando o pai alemão ou a mãe alemã nasceu fora da Alemanha depois de 31/12/1999 e mora fora da Alemanha. Exceto se o nascimento do filho é declarado pelo pai alemão ou pela mãe alemã à representação alemã competente no prazo de um ano (declaração de nascimento).
Foto: picture-alliance/dpa/J. Woitas
Naturalização facilitada
Em 2012, foram criadas condições privilegiadas de naturalização para quem nasceu antes de 01/01/1975 como filho de mãe alemã casada com pai estrangeiro, se no nascimento do filho a mãe tinha nacionalidade alemã ou a havia perdido por ter se casado com um estrangeiro segundo lei em vigor na época, ou havia perdido a nacionalidade alemã antes do casamento por expatriação entre 1933 e 1945. Ou...
Foto: Colourbox/I. Belousa
... ainda se
... pessoas que nasceram antes de 01/07/1993 com pai alemão e mãe estrangeira, sem serem casados, e se o pai, no dia do nascimento do filho, possuía a nacionalidade alemã ou teria tido o direito à naturalização, e desde que o reconhecimento ou a confirmação da paternidade tenha acontecido efetivamente antes de o filho completar 23 anos.
Foto: imago/Mint Images
Mas, atenção...
... mesmo quando se tem antepassados alemães, é preciso confirmar se eles não perderam a nacionalidade alemã. De 01/01/1871 a 31/12/1913 não se podia morar dez anos fora da Alemanha sem inscrição em um consulado alemão. Em consequência, também a esposa e os filhos menores de idade (na época, 21 anos) também perdiam automaticamente a nacionalidade alemã se morassem no exterior.
Foto: Fotolia/Bilderstoeckchen
Em dia com serviço militar
Um alemão nascido entre 1871 e 1885 com residência permanente fora da Alemanha, que tinha obrigação de prestar serviço militar, perdia a nacionalidade em 01/01/1916 se não tivesse apresentado, entre 01/01/1914 e 01/01/1916, sua decisão definitiva de prestar o serviço militar.
Foto: Getty Images
Aquisição de outra nacionalidade
Um alemão perde a nacionalidade ao adquirir outra (exceto da UE ou Suíça), caso a aquisição ocorra com base num requerimento de naturalização. Ele não perde a alemã se tiver recebido, antes da aquisição da nacionalidade estrangeira, uma autorização para ficar com a alemã (esta autorização só vale por dois anos).
Foto: Getty Images
Exoneração, renúncia ou adoção
Um alemão é exonerado da nacionalidade alemã por requerimento próprio, se ele tenha solicitado uma nacionalidade estrangeira e recebido a confirmação de que esta lhe será concedida. Um alemão pode renunciar à nacionalidade alemã se possuir várias nacionalidades.Ou se acontecer uma adoção, segundo a legislação alemã, de um menor de idade alemão por um estrangeiro desde 01/01/1977.
Foto: picture-alliance/dpa
Renaturalização é possível
Antigos cidadãos alemães cuja nacionalidade alemã foi retirada entre 30/01/1933 e 08/05/1945 por motivos políticos, raciais ou religiosos podem requerer a aquisição da nacionalidade alemã. O mesmo também se aplica aos seus descendentes que, se não fosse a expatriação da época, teriam a nacionalidade alemã.
Foto: picture-alliance / dpa
Certificado de nacionalidade alemã
Para esclarecer se você é cidadão alemão, você pode solicitar o certificado de nacionalidade alemã emitido pela Agência Federal de Administração (BVA). Ele é uma prova juridicamente válida da sua nacionalidade alemã. O processo está sujeito a taxas e demora em torno de dois anos. O requerimento deve ser feito nas representações alemãs competentes.
Foto: DW/A. Krüger
Como traçar a ascendência?
As seguintes instituições podem ajudar na pesquisa do navio, da data e do local da entrada do seu antepassado no Brasil (elas também emitem certificados de entrada no país): Arquivo Nacional, Memorial do Imigrante, Arquivo Público do Espírito Santo ou Staatsarchiv Hamburg.
Foto: picture-alliance/dpa
Pelo nascimento na Alemanha
Filhos de pais estrangeiros nascidos na Alemanha após 01/01/2000 podem receber também a cidadania alemã. A condição é que pelo menos um deles já resida há mais de oito anos na Alemanha e tenha visto permanente. Entre 18 e 23 anos, os jovens têm que optar por uma nacionalidade.
Foto: DW
Dupla cidadania
Em princípio, é preciso abdicar da outra nacionalidade ao se tornar cidadão alemão. Mas há exceções. A dupla cidadania é aceita em casos de países que não liberam os cidadãos de sua nacionalidade, como o Brasil, ou quando, por exemplo, o outro Estado impõe condições inaceitáveis, como taxas exorbitantes para a liberação da nacionalidade.
Foto: Fotolia/babimu
Naturalização por tempo na Alemanha
Quem mora no país pode se naturalizar se: tem visto permanente para o país; mora de forma permanente e legal no país há pelo menos oito anos (dependendo do caso, pode ser menos); garantir o sustento próprio e dos dependentes; entender o alemão oral e por escrito (Nível B1 do quadro europeu de referência). Mais critérios na próxima foto
Foto: picture-alliance/dpa
E também...
...se conhece a ordem jurídica e social da Alemanha, bem como as condições de vida no país; nunca foi condenado por um delito grave; se comprometer a respeitar a Constituição alemã; está disposto a renunciar à sua nacionalidade original.
Foto: imago/Sven Simon
Como pedir a cidadania?
O pedido de naturalização pode ser feito por pessoas maiores de 16 anos junto ao departamento de migração da cidade onde mora. Ele custa 255 euros por pessoa. Para filhos menores de idade cujo pedido é entregue junto ao dos pais, o preço é 51 euros.
Foto: DW/S. Pabst
Sites de consulta
Para mais informações sobre como obter o passaporte alemão, consulte as representações da Alemanha no Brasil (https://brasil.diplo.de/br-pt/servicos/nacionalidade/1010092)