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"É preciso afastar Bolsonaro já para parar a matança"

18 de outubro de 2021

Após 70 anos de ação política, Chico Whitaker diz não poder ignorar o que ocorre no Brasil sob Bolsonaro, cuja "missão é destruir". A esperança do ativista é que o presidente seja afastado por crimes na pandemia.

Jair Bolsonaro
"A cabeça de Bolsonaro é doentia, não tem limites", diz Chico WhitakerFoto: Mateus Bonomi/AA/picture alliance

A um mês de completar 90 anos, o ativista político Francisco Whitaker, precursor da luta que permitiu a apresentação de projetos de lei por meio de iniciativa popular – como a Lei da Ficha Limpa, que teve 1,6 milhão de assinaturas –, procura desesperadamente por uma porta aberta para que se possa retirar Jair Bolsonaro da presidência do Brasil.

Descrente do impeachment, apontando ser difícil que este passe na Câmara, e de uma cassação da chapa de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Chico Whitaker vê como único caminho possível a responsabilização criminal do presidente por crimes comuns e omissões da administração federal no combate à pandemia de covid-19.

Já foram enviadas ao menos quatro representações de entidades da sociedade civil à Procuradoria-Geral da República (PGR), pedindo que Bolsonaro seja julgado por crimes diversos que cometeu. Se a PGR acatar os pedidos e denunciar Bolsonaro, o presidente só poderia ser processado com aval da Câmara dos Deputados, sendo afastado do cargo imediatamente por 180 dias. O ativismo político por mais de sete décadas, porém, faz com que Whitaker mantenha os pés no chão.

"O impeachment é sonho de uma noite de verão. O afastamento [de Bolsonaro] passa pela mesma maioria na Câmara, mas se por um acaso o procurador-geral denunciá-lo ao STF vai ser já um diferencial muito grande. É difícil, mas é mais uma porta. No fundo, agora, precisamos procurar essas portas, porque estamos bloqueados", afirmou à DW Brasil.

Chico Whitaker: "É triste nesta idade ver o que está acontecendo [no Brasil], e não me sobra muito tempo para ver a virada"Foto: Marc Braibant/AFP/Getty Images

Afastado de qualquer atividade político-partidária desde o início dos anos 2000, Whitaker diz que vai continuar militando na sociedade civil "até morrer". O exílio que viveu por 15 anos, no período da ditadura, após pertencer ao governo de João Goulart, a experiência da Constituinte e tantas outras lutas o alimentaram, sustenta.

"Desde que Bolsonaro foi empossado, que sua missão é destruir", diz. "É um pouco triste nesta idade ver o que está acontecendo [no Brasil], e não me sobra muito tempo para ver a virada. Mas a gente continua trabalhando. Estou nessa porque não dá para parar e dizer: olha, não dá mais."

DW Brasil: Após décadas de ativismo contra a corrupção eleitoral e por transparência na política, qual sua avaliação sobre os movimentos do Congresso para se alterar o sistema político brasileiro e retroceder em várias legislações?

Francisco Whitaker: Esse Congresso foi composto na mesma onda de eleição do Bolsonaro. Ele conseguiu uma quantidade expressiva de aliados no Congresso e construiu uma maioria que, objetivamente, bloqueia tudo o que seja contrário a ele, como é o caso do impeachment, diante da impossibilidade de haver 342 votos para aprovação. De outro lado, está na estratégia de Bolsonaro, desde que empossado, que sua missão é destruir.

Tudo o que foi avanço civilizatório no Brasil após a ditadura, com introdução de mecanismos de controle da sociedade sobre a vida política e econômica em geral, está sendo progressivamente destruído por iniciativa de Bolsonaro, através de medidas provisórias e leis. E todas passaram pelo crivo do Congresso, que é o que é. Tudo o que foi feito de positivo e construído após a ditadura, o objetivo é destruir.

A palavra boiada foi muito expressiva – houve uma reunião do governo gravada e divulgada em que um dos ministros [Ricardo Salles] falou que precisava aproveitar a sociedade preocupada com a pandemia para passar a boiada. A boiada, no caso, é a desregulamentação de tudo quanto é controle social.

Há quatro meses é que começou a haver maior resistência. Mas Bolsonaro adotou uma estratégia de multiplicar frentes. A cada dia, a cada semana, ele lança uma nova. O que os seus asseclas vão inventando, o Bolsonaro vai assinando. E deixa a oposição totalmente zonza. E a sociedade, em si – e esse é um outro enorme problema – tem uma tendência de naturalizar as coisas. E está se acostumando, agora, até ao morticínio. Bolsonaro age para criar o caos. Desde o começo negou a virulência da covid-19, depois a necessidade de vacina, agora nega a importância de máscara. Tudo o que seja para estancar o vírus ele tenta interromper.

Grande parte dos deputados não é constituída por gente que foi para lá trabalhar pelo bem comum, mas sim de oportunistas que estão lá para ganhar dinheiro. Estão tirando tudo o que podem. Reforma eleitoral, fundo eleitoral, tudo isso é aprovado por essa maioria destruidora. O quadro é bastante preocupante. Até onde irá isso? Até onde ele poderá chegar? A cabeça de Bolsonaro é doentia, não tem limites. Sobra para a militância da sociedade civil tentar fazer alguma coisa.

Mas o poder de reação social não está muito limitado?

Muito limitado. Porque ultimamente é: a Câmara decidiu, está decidido. O que a gente pode fazer objetivamente? Encher as ruas não dá para encher. Com a pandemia, pior ainda. Estamos vivendo uma situação em que é difícil a ação. E qual ação possível se não protestar? Seria resistir às mudanças. O Senado tem tido um pouco esse papel. Como a sua composição é um pouco diferente da da Câmara, tem mais gente com capacidade de resistência – e a própria CPI da Covid tem demonstrado isso. O Senado tem segurado alguma coisa. Agora a gente tem que torcer para que, quando aprovem na Câmara, não aprovem no Senado.

O novo Código Eleitoral com quase mil artigos, por exemplo, aprovado na Câmara sem muita transparência, não foi votado pelo Senado, ou seja, não poderá vigorar em 2022.

São os pequenos respiros que estão nos sobrando. O Senado é um deles. Veja, a Procuradoria-Geral da República (PGR) é uma instituição importantíssima na defesa da sociedade, porque é independente, não é Executivo, nem Legislativo, nem Judiciário. O procurador-geral é o fiscal dos interesses difusos da sociedade. Tradicionalmente, em outros tempos, o procurador sempre foi muito ativo e enfrentava. Inclusive, pode agir de ofício. Nisso nós estamos totalmente bloqueados. Agora estamos tentando abrir essa porta na estratégia da sociedade civil, que ainda não foi cassada. Existem representações importantes na PGR em torno dos crimes de Bolsonaro cometidos na pandemia. A CPI [da Covid] está mostrando a quantidade de crimes. O que tentamos agora é esperar inclusive que a CPI venha com mais denúncias de crimes. É um modo diferente de afastar Bolsonaro, que não pelo impeachment: afastá-lo pela quantidade inominável de crimes.

Sua expectativa então é que haja um afastamento de Bolsonaro da Presidência não pelo impeachment, mas pela responsabilização de crimes, entre eles crimes contra a humanidade e de responsabilidade?

Mais do que isso: se a Câmara autorizar o Supremo Tribunal Federal a julgar Bolsonaro por esses crimes ele é imediatamente afastado. Nossa esperança, agora, é usar esse instrumento. A dificuldade qual é: fazer com que as lideranças políticas esqueçam 2022 e tratem de tirar Bolsonaro já. Temos que parar a matança. Com ele lá, continua a agir. Foi para a ONU e, nessa altura dos acontecimentos, voltou a falar do chamado tratamento precoce contra a covid-19. O que é isso, meu Deus? Ele é totalmente fora do tempo e das coisas. Nossa esperança é acordar setores da sociedade civil, que não têm preocupação eleitoral, e acordar as lideranças políticas pela necessidade de usar o processo criminal para afastar Bolsonaro imediatamente. Já temos 600 mil mortos.

Se o impeachment não passa, pelo cenário de hoje, e há os interesses eleitorais das lideranças políticas, por que acreditar que seria possível um afastamento para investigar Bolsonaro, a partir de pedido do STF?

O impeachment é sonho de uma noite de verão. O afastamento [de Bolsonaro] passa pela mesma maioria na Câmara, mas se por um acaso o procurador-geral denunciá-lo ao STF vai ser já um diferencial muito grande. E isso vai criar brechas dentro da maioria. E aí a sociedade vai ter pelo que pressionar, pressionar a Câmara a afastar o Bolsonaro por 180 dias. E difícil, mas é mais uma porta. No fundo, agora, precisamos procurar essas portas, porque estamos bloqueados.

Durante toda a sua vida você atuou politicamente, sobretudo como representante da sociedade civil. Qual é sua sensação, aos 90 anos, vendo boa parte dessas lutas sendo desconstruídas no Brasil atual?

É de muita tristeza, mas ao mesmo tempo é uma alfinetada para a gente não parar. Eu tenho, literalmente, 70 anos de ação política. Vou chegar aos 90 mês que vem e comecei tudo isso aos 18 anos, quando entrei na universidade e comecei a acordar para a questão política. Tive até que pagar o preço do exílio: estive por 15 anos fora do Brasil, exilado. Era diretor de planejamento de reforma agrária no governo João Goulart, então estava num setor muito "quente". Acabei me tornando uma persona non grata na ditadura. Fiquei 15 anos fora, parte na França e parte no Chile. No Chile, vivi toda a experiência de [Salvador] Allende, estava lá na hora do golpe. Ou seja, para mim foi tudo muito duro e difícil.

Ao longo desse processo, sempre se abrem portas e possibilidades, a gente se junta a outras pessoas, ganha coragem e vai dando as contribuições que podemos dar. Minha vida foi marcada por uma militância permanente. Sou arquiteto, minha mulher é psicóloga. Até o Chile, exercíamos as nossas profissões. Na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), eu trabalhava com desenvolvimento regional. Quando houve o golpe do Chile, foi tão violento e sangrento que tomamos a decisão de deixar a profissão e trabalhar na ação política. Não dava para continuar vivendo como se tudo fosse normal.

A ação política apareceu para nós como primordial e prioritária, e por causa da desigualdade social abissal no Brasil. Tive a oportunidade, desde então, de participar de muitas atividades, nas quais aprendi muito. Na França trabalhei em um projeto da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), "Por uma sociedade superando as dominações”. Esse projeto me abriu perspectivas muito grandes. Quando voltei ao Brasil fui trabalhar diretamente com Dom Paulo Evaristo Arns. A participação popular na Constituinte foi um trabalho muito bonito. Virei vereador e aprendi pra burro na Câmara Municipal [de SP] o que é efetivamente o Legislativo, que é composto fundamentalmente por oportunistas e não por pessoas voltadas ao bem comum.

Cada etapa da minha vida foi um aprendizado e até certo ponto uma vitória. A primeira delas foi contra a compra de votos, outra doença brasileira. Depois a outra, mais conhecida, a lei de iniciativa popular. Ou seja, tudo isso foi me alimentando. Agora, estamos numa etapa negativa. Nos dois últimos anos, depois da vitória de Bolsonaro, enfrentamos um desafio cavalar. É um pouco triste nesta idade ver o que está acontecendo, e não me sobra muito tempo para ver a virada. Mas a gente continua trabalhando. Eu estou nessa porque não dá para parar e dizer: olha, não dá mais.

Você acompanhou a Lei da Ficha Limpa florescer no Brasil. Vê riscos de retrocessos também nessa legislação?

Eles estão tentando, se não derrubar, pelo menos amenizar tudo quanto é lei que aumenta o controle social. Para nós foi muito impressionante na Constituinte, mas era outro momento. Houve o plenário pró-participação popular, que tinha frase muito significativa: Constituinte sem povo, não cria nada de novo. Foi uma fase de grande entusiasmo construtivo no Brasil. Uma das ideias que surgiu nessa luta foi permitir que o povo apresentasse emendas ao texto da Constituição. Foram apresentadas 120 emendas populares. A primeira iniciativa popular foi contra a compra de votos, dez anos depois da Constituinte, e exigiam a assinatura de 1% do eleitorado. Vinte anos depois, fazíamos a segunda iniciativa popular, a Lei da Ficha Limpa, com 1,5 milhão de assinaturas. São coisas que passaram na Câmara com um enorme trabalho junto aos parlamentares. É um aprendizado lento, com perdas e ganhos. Agora o momento é de retrocesso muito grande. É mais do que um retrocesso, porque a cabeça do Bolsonaro é doentia.

Em 2006 você se desfiliou do PT. Atualmente você está ligado a algum partido ou o seu ativismo político não tem cor partidária?

Saí do PT em 2005, no auge de todas as complicações que surgiram com o mensalão. Antes eu já tinha deixado a vida partidária. Cumpri dois mandatos na Câmara Municipal de São Paulo [como vereador, pelo PT]. Cheguei à conclusão de que nenhum parlamentar deveria ficar por mais de dois mandatos no Legislativo. No primeiro ele aprende, no segundo ele faz as coisas sem se preocupar com a reeleição. Depois de 2005 me afastei também do partido. A vida partidária está muito distorcida por causa da burocratização geral da militância. Não pretendo entrar em partido nenhum. Vou continuar, até morrer, na sociedade civil.

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