Para salvar vidas, Alemanha admite necessidade de negociar com os novos governantes do Afeganistão. A boa notícia é que, ao que tudo indica, os talibãs têm motivos para cooperar.
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Em princípio, os governos ocidentais dizem que não negociam com terroristas. Muitas vezes, porém, a realidade é bem diferente. Há muitos exemplos de como representantes governamentais se sentaram à mesa de negociações com membros de organizações responsáveis por ataques terroristas – ainda que relutantes. Foi assim, por exemplo, ao lidarem com o Exército Republicano Irlandês (IRA) ou a Organização para a Libertação da Palestina (OLP).
No caso do Afeganistão, a questão da negociação é tão delicada quanto polêmica, já que os militantes islâmicos talibãs praticamente tomaram como refém quase toda uma população. Trata-se de um argumento de negociação poderoso: quem quiser ajudar o povo afegão, terá que passar pelo Talibã.
Em setembro de 1996, após a conquista de Cabul, os talibãs estabeleceram o "Emirado Islâmico do Afeganistão". Seu reinado de terror durou cinco anos – até a invasão das tropas internacionais em 2001. Agora, eles estão de volta ao poder.
No que concerne a comunidade internacional, a questão é evitar o pior nesse país dilacerado pela guerra. Isso inclui violações graves dos direitos humanos, movimentos maciços de refugiados, numerosas mortes pela fome, e a transformação do Afeganistão, mais uma vez, num polo para organizações terroristas – como a Al-Qaeda ou o assim chamado "Estado Islâmico" (EI). Observadores também temem pelo futuro do país, que por sua localização entre o centro e o sul da Ásia, tem importância geoestratégica.
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Merkel acredita em possível cooperação
Há meses, mediadores internacionais vêm mantendo negociações com líderes do Talibã em Doha, capital do Catar. Agora os países ocidentais canalizam seus esforços para a evacuação de mais afegãos necessitados de proteção.
A chanceler federal da Alemanha, Angela Merkel, aparentemente está contando com a boa disposição dos governantes de Cabul em cooperar. "Nosso objetivo deve ser preservar o máximo possível do que alcançamos em termos de mudança no Afeganistão, nos últimos 20 anos", disse recentemente no Bundestag (câmara baixa do parlamento alemão) acrescentando: "O Talibã agora é uma realidade no Afeganistão."
Merkel sobre o Afeganistão: "Erramos ao avaliar a situação"
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O ministro alemão do Exterior, Heiko Maas, também considera as negociações inevitáveis: não há "absolutamente nenhuma maneira de contorná-las", disse em Doha. A fim de avaliar a situação na região, ele já havia visitado quatro países que fazem fronteira com o Afeganistão. No entanto, Maas deixou claro que, pelo menos por enquanto, um encontro direto com os líderes do Talibã está fora de questão.
Ao que tudo indica, o governo alemão quer evitar tudo que possa parecer um reconhecimento oficial dos novos dirigentes. Em Doha, o ex-embaixador alemão no Afeganistão, Markus Potzel, é quem faz o contato com a delegação dos fundamentalistas islâmicos.
Sem expectativas exageradas
Tanto em Doha quanto em Cabul, o Talibã está tentando mudar sua imagem e se apresentar como um governo moderado e legítimo que a população não precisa temer. Seus líderes inclusive aceitaram ser entrevistados por jornalistas do sexo feminino. Por outro lado, houve relatos de violência em diversas províncias, e meninas têm sido impedidas de frequentar a escola e mulheres, de trabalhar.
Um breve resumo da história do Talibã
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No entanto, negociações com o Talibã são praticamente obrigatórias "para retirar do Afeganistão os colaboradores remanescentes e os indivíduos mais vulneráveis", comentou Joachim Krause, diretor do Instituto de Política de Segurança da Universidade de Kiel, em e-mail à DW.
Ele alertou ainda contra expectativas excessivamente altas, afirmando que só faz sentido negociar a evacuação de ex-colaboradores locais e suas famílias. Qualquer outra coisa, como tentar evitar um êxodo geral ou o retorno de grupos terroristas, tem poucas chances de sucesso.
"Como o Talibã poderia impedir um movimento de fuga descontrolado ou mesmo o retorno de grupos terroristas estrangeiros? Eles controlam, afinal, apenas parte do país. E não queremos que eles evitem uma onda de refugiados simplesmente atirando em quem tenta fugir", advertiu Krause.
O especialista em política de segurança também vê os alemães numa posição frágil para negociações: tendo fracassado em retirar todas as suas forças do país, a Alemanha "já se tornou suscetível à chantagem". "Quer gostemos ou não, temos que concordar com as condições estabelecidas pelo Talibã para ajudar essas pessoas a partirem."
Isso pode envolver exigências de dinheiro, ou talvez também de gêneros alimentícios ou medicamentos. Uma avaliação inicial das operações de resgate alemãs mostra que, no fim de agosto, apenas 138 colaboradores locais haviam sido retirados do Afeganistão. O Ministério do Exterior calcula que cerca de 50 mil ainda aguardam a evacuação.
Interesse próprio impulsiona negociações
O sucesso das negociações depende da disposição dos talibãs de honrarem os acordos negociados. Nesse aspecto, o cofundador e codiretor do grupo de estudos independente Rede de Analistas do Afeganistão (AAN, na sigla em inglês), Thomas Ruttig, é um pouco mais otimista, pois crê que os islamistas precisam abraçar o progresso por interesse próprio.
"O Talibã necessita de todo tipo de ajuda econômica, não importa de onde venha, já que, depois de 40 anos de guerra, a infraestrutura do país está completamente destruída." Seria contraproducente para os talibãs começar a chantagear governos estrangeiros, pois "isso colocaria em risco a chance de enfim trazer dinheiro para o país", argumenta Ruttig.
A Alemanha e outros países pararam de enviar ajuda para o desenvolvimento. Além disso, as contas afegãs no exterior foram congeladas e os pagamentos ao país ficaram mais difíceis. As remessas de dinheiro do exterior foram canceladas. Casas de câmbio e agências de transferência, como a Western Union, estão fechadas. O país, que há muito tem dificuldade em sustentar seus 39 milhões de cidadãos, está agora à beira da ruína.
Como o Talibã se financia?
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Corte com o terrorismo islâmico?
O Talibã, que deseja conquistar os corações e mentes da população, está ciente de que o Afeganistão dificilmente sobreviverá sem ajuda externa. Justamente por isso, o fundador da AAN parte do princípio que os fundamentalistas não permitirão que o país se torne novamente um polo do terrorismo islâmico.
"Pois assim estariam sujeitos a retaliação e a mais sanções, e não podem se dar a esse luxo. Acredito que os talibãs são bastante experientes: eles não devem ser subestimados como um bando de barbudos medievais, como costuma acontecer."
Para os próximos meses, ele defende o enfoque nas questões humanitárias, além de um monitoramento da situação, para ver se o Talibã se tornará mais repressivo: é preciso estar bem claro que o grupo deve aderir aos padrões internacionais.
Ao mesmo tempo, porém, Ruttig avalia que as lideranças ocidentais não devem assumir uma atitude de superioridade: "Depois do que o Ocidente fez ou tolerou no Afeganistão, incluindo supostos crimes de guerra e violações dos direitos humanos, temos que nos abster de tal comportamento." Por outro, acrescenta, não há muito tempo para um sucesso nas negociações, pois a situação no país piora a cada dia.
A intervenção dos EUA no Afeganistão
Há 20 anos, após o 11 de Setembro, os EUA enviavam seus primeiros soldados ao país. Reveja os principais acontecimentos desde então: da operação Liberdade Duradoura à retomada do país pelos fundamentalistas do Talibã.
Foto: Evan Vucci/AP Photo/picture alliance
Operação Liberdade Duradoura
Em outubro de 2001, menos de um mês após aos ataques de 11 de Setembro, o presidente George W. Bush lança no Afeganistão a operação Liberdade Duradoura, depois que o regime Talibã se recusa a entregar Osama bin Laden. Em semanas, os americanos derrubam o Talibã, que ocupava o poder desde 1996. Cerca de mil soldados são enviados ao país em novembro, aumentando para 10 mil um ano depois.
Foto: picture-alliance/DoD/Newscom/US Army Photo
Talibã se reagrupa
A invasão do Iraque em 2003 se torna a maior preocupação dos EUA e desvia a atenção do Afeganistão. O Talibã e outros grupos islamistas se reagrupam em seus redutos no sul e leste do Afeganistão. Em 2008, Bush concorda em enviar soldados adicionais ao país em meio a pedidos por uma estratégia efetiva contra o Talibã. Em meados de 2008, há 48.500 soldados americanos no país.
Foto: picture alliance/Photoshot
Obama é eleito
Em sua campanha, Barack Obama promete encerrar as guerras no Iraque e no Afeganistão. Mas nos primeiros meses de sua presidência, em 2009, há um aumento no número de soldados no Afeganistão para cerca de 68 mil. Em dezembro, o número cresce ainda mais, para 100 mil, com o objetivo de conter o Talibã e fortalecer instituições afegãs.
Foto: AP
Morte de Bin Laden
Osama bin Laden, líder da Al Qaeda que esteve por trás dos ataques de 11 de Setembro, é morto em maio de 2011 em seu esconderijo, durante uma operação de forças especiais americanas no Paquistão.
Foto: picture-alliance/dpa
Acordo com Afeganistão
O Afeganistão assina em setembro de 2014 um acordo bilateral de segurança com os EUA e texto similar com a Otan: 12.500 soldados estrangeiros, dos quais 9.800 norte-americanos, permaneceriam no país em 2015. Mas a situação de segurança piora. Em meio à ressurgência do Talibã, Obama diminui a velocidade de retirada em 2016, afirmando que 8.400 soldados permaneceriam no Afeganistão.
Foto: Reuters
Bombardeio de hospital em Kunduz
Em outubro de 2015, no auge do combate entre insurgentes islâmicos e o Exército afegão, apoiado por forças da Otan, um ataque aéreo dos EUA atinge um hospital dirigido pela organização Médicos Sem Fronteiras na província de Kunduz. O ataque deixa 42 mortos, inclusive 24 pacientes e 14 membros da ONG.
Foto: Getty Images/AFP
"Mãe de todas as bombas"
Em abril de 2017, forças americanas atingem posições do "Estado Islâmico" (EI) no Afeganistão com a maior bomba não nuclear já usada pelo país em combate, matando 96 jihadistas. Em julho, é morto o novo líder do EI no país.
Foto: Reuters/U.S. Department of Defense
"Estamos diante de um impasse"
Em fevereiro de 2017, um relatório do governo dos EUA mostra que as perdas entre as forças de segurança afegãs subiram 35% em 2016 em relação ao ano anterior. Pouco depois, o general americano à frente das forças da Otan, John Nicholson (esq., ao lado do secretário da Defesa John Mattis), alerta que precisa de mais milhares de soldados: “Acredito que estamos diante de um impasse."
Foto: Reuters/J. Ernst
Trump anuncia nova estratégia
Em 21 de agosto de 2017, o presidente Donald Trump anuncia nova estratégia para o Afeganistão, fazendo da caça a terroristas a principal prioridade. Trump não especifica um aumento do número de soldados como esperado, mas diz que os objetivos incluem "obliterar" o Estado Islâmico, "esmagar" a Al Qaeda e impedir o Talibã de dominar o Afeganistão.
Foto: picture-alliance/Pool via CNP/MediaPunch/M. Wilson
EUA negociam com rebeldes
Em julho de 2018, sob o governo do presidente Donald Trump, os EUA entram em negociação com o Talibã, sem envolver o governo afegão eleito ou os parceiros da Otan.
Foto: picture-alliance/dpa/AP Photo/Qatar Ministry of Foreign Affairs
Trump cancela encontro com Talibã
Em setembro de 2019, o presidente Trump cancela na última hora uma reunião marcada em sigilo com líderes do Talibã e do Afeganistão, após o grupo islamista assumir a autoria de um ataque em Cabul que matou um soldado americano e outras 11 pessoas.
Foto: Getty Images/M. Wilson
EUA e Talibã assinam acordo de paz
Em fevereiro de 2020, sob o regime Trump, os governos dos EUA e do Afeganistão anunciam a retirada completa das tropas americanas e de outros países da Otan. O pacto assinado pelo negociador especial dos EUA para a paz, Zalmay Khalilzad, e pelo líder político talibã mulá Abdul Ghani Baradar, prevê que o número de militares estrangeiros seria reduzido gradualmente, ao longo de 14 meses.
Foto: AFP/G. Cacace
Biden anuncia retirada total das tropas
Em 14 de abril de 2021, o presidente Joe Biden comunica à população americana que a guerra mais longa do país terá fim, com as tropas dos EUA e da Otan se retirando inteiramente do Afeganistão até 11 de setembro, 20º aniversário dos ataques terroristas em Nova York.
Foto: Andrew Harnik/AFP/Getty Images
EUA e Otan iniciam retirada
EUA e Otan iniciam formalmente, em 1º de maio de 2021, a retirada de todas as suas tropas do Afeganistão. A previsão era retirar até 11 de setembro entre 2.500 e 3.500 soldados americanos e cerca de outros 7 mil soldados da Otan. Estima-se que os EUA tenham gasto mais de 2 trilhões de dólares no país, em 20 anos, de acordo com o projeto Costs of War da Universidade Brown.
Foto: Michael Kappeler/dpa/picture alliance
Americanos entregam base ao governo afegão
Em 2 de julho de 2021, tropas dos EUA partem da base aérea de Bagram, ponto focal da guerra, e entregam o local ao governo afegão. Permanecem no país asiático alguns poucos soldados, numa pequena base na capital Cabul.
Foto: Rahmat Gul/AP/picture alliance
Talibã toma capitais regionais
Aproveitando o vácuo deixado pela retirada das tropas de paz internacionais do Afeganistão, guerrilheiros do Talibã tomam, no inicio de agosto de 2021, capitais regionais como Sheberghan, Kunduz e Zaranj, num duro golpe para o governo afegão, que lutava para defender as cidades mais importantes da ofensiva do grupo extremista.
Foto: Abdullah Sahil/AP Photo/picture alliance
EUA retiram seus cidadãos do Afeganistão
Em meados de agosto, Estados Unidos e outros países começam a retirar seus cidadãos do Afeganistão, enquanto forças militares americanas se esforçam para proteger e manter funcionando o aeroporto de Cabul. Com todos os voos comerciais cancelados, milhares de afegãos invadem a pista do aeroporto desesperados, tentando embarcar em qualquer aeronave que fosse decolar.
Foto: Wakil Kohsar/AFP
Talibã ocupa palácio presidencial
O Talibã toma a capital Cabul, em 15 de agosto de 2021, dissolvendo o governo e estendendo seu controle sobre todo o Afeganistão. A capital era um dos últimos redutos ainda sob a autoridade do presidente Ashraf Ghani. Assim como ocorreu com dezenas de outras cidades, ele é tomada sem resistência efetiva das tropas governamentais. Ghani foge do país.
Foto: Zabi Karim/AP/picture alliance
Biden defende retirada das tropas
Um dia depois da tomada de Cabul, o presidente dos EUA, Joe Biden, defende a decisão de pôr fim à presença americana no Afeganistão e condena líderes e políticos afegãos que abandonaram o país, abrindo caminho para a tomada de poder pelo Talibã. Biden culpa ainda o ex-presidente Donald Trump, por ter fortalecido o grupo rebeldes e deixado os talibãs em sua melhor situação militar desde 2001.