Sebastião Salgado: "Está acontecendo um desastre no Brasil"
Guilherme Becker de Frankfurt
18 de outubro de 2019
Agraciado com um dos prêmios literários mais importantes da Alemanha na Feira do Livro de Frankfurt, fotógrafo brasileiro afirma que homenagem tem significado especial num momento em que o Brasil vive "situação difícil".
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Em meio aos corredores e estandes coloridos da Feira do Livro de Frankfurt, destaque para as imagens em preto e branco de um brasileiro. Laureado com o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão deste ano, uma das mais renomadas distinções literárias da Alemanha, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, 75 anos, falou a jornalistas durante o evento nesta sexta-feira (18/10), refletindo sobre seu trabalho e manifestando preocupação com a situação do Brasil sob o presidente Jair Bolsonaro.
A organização do prêmio ressaltou que a homenagem a Salgado deve-se não só a seu trabalho focado em imagens do cotidiano de pessoas menos favorecidas – como imigrantes, refugiados e moradores de regiões em que o meio ambiente está ameaçado, caso dos povos indígenas na Amazônia –, mas também pelo fato de tomar ações práticas, como a fundação do Instituto Terra.
Por meio do instituto, Salgado e a mulher, Lélia, já fizeram o plantio de mais de 2,5 milhões de mudas de árvores em uma área de cerca de 700 hectares que pertencia aos pais dele, na região do Vale do Rio Doce, entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
Salgado receberá o prêmio numa cerimônia na igreja Paulskirche, em Frankfurt, neste domingo, quando se encerra a Feira do Livro.
"Para mim, foi uma grande surpresa [receber o prêmio]. É muito especial. Estou orgulhoso, porque o prêmio leva 'paz' em seu nome. E precisamos de tanta paz. A situação no meu país está tão difícil. Tão difícil para os indígenas. Por isso, significa muito para mim receber este prêmio", disse Salgado, em inglês.
Ao anunciar o prêmio para Salgado, a Federação do Comércio Livreiro afirmou que, com suas fotografias, ele promove a "justiça e paz sociais" e confere urgência ao "debate mundial sobre a proteção da natureza e do clima".
Seu mais recente projeto chama-se Amazônia. Com imagens de povo indígenas e animais da região, o projeto deve ser lançado em livros e exposições no Brasil e no exterior a partir de 2021.
"É um desastre o que está acontecendo no Brasil, não apenas nas florestas, mas sim em toda a sociedade. Governos de direita e de esquerda respeitam as instituições. Mas quando há o extremo, como a extrema direita, isso não é respeitado. Estamos destruindo instituições que levaram anos para ser construídas", afirmou o fotógrafo, referindo-se a órgãos como a Funai e o Ibama.
Sebastião Salgado: "É preciso parar destruição da Amazônia"
04:09
Em seguida, ele criticou o projeto de flexibilização para o porte de armas de fogo no país, uma das principais políticas defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro, e também a redução dos incentivos à cultura.
"O Brasil se tornou um país violento. Se cada um tiver uma arma na mão, vai ficar ainda pior", disse. "A cultura também tem sido um desastre. Investimentos têm sido cortados. Esse governo é um desastre, mas, ao mesmo tempo, vem perdendo poder. Temos esperança de que ele não chegue ao fim [do mandato]. No entanto, se chegar, temos que lutar para que não seja reeleito", disse.
Questionado sobre o que poderia ser feito para apaziguar o conflito envolvendo terras indígenas e o agronegócio, Salgado foi direto: "Pressionar. Temos que pressionar o máximo possível. E pedir ajuda, inclusive da Alemanha. Temos que fazer essa pressão, e isso pode funcionar", complementou.
A responsabilidade da fotografia
Ao comentar seu trabalho realizado ao longo das últimas décadas, focado em questões humanitárias como o genocídio em Ruanda e crises de refugiados, Salgado fez questão de salientar que procura enxergar a dignidade acima da estética. Em todos os continentes.
"Não há diferença de beleza. Há beleza em todos os continentes, não apenas estética, mas sim de dignidade. E a dignidade está em todo o lugar. Vocês, que vivem na França, na Alemanha, vivem na exceção. Eu venho de um país subdesenvolvido, e é preciso mostrar a realidade do mundo. As pessoas precisam ter direitos iguais", afirmou.
O fotógrafo afirmou que o trabalho documental exige concentração e saúde. Devido à cobertura da guerra civil que culminou no genocídio em Ruanda – no qual estima-se que 800 mil pessoas tenham morrido em apenas quatro meses, entre abril e julho de 1994 –, adoeceu por causa do estresse das cenas que presenciou.
"Tive muitos pesadelos. Fiquei doente por isso. Mas era preciso ir. É preciso ir quando isso é o seu trabalho e a sua responsabilidade", disse.
Depois disso, decidiu parar por um tempo. E comentou que seguiu para o mesmo local em que a seleção alemã de futebol ficou hospedada no Brasil, na Copa do Mundo de 2014, em uma praia localizada a 45 minutos de Porto Seguro, no sul da Bahia.
"Junto com a Lélia, fiquei lá três meses e me recuperei. Mas é claro que isso [o trabalho] me afeta. Para mim, a real inteligência humana é a capacidade de adaptação. Quando você vai contar histórias, o primeiro, o segundo e o terceiro dias são difíceis. Mas, a partir do décimo, aquilo se torna o seu escritório, com seus amigos, com as pessoas com quem você trabalha e cria relações. Isso se torna a sua vida", enfatizou.
Neste sábado, das 11h às 12h, Sebastião Salgado autografará livros no pavilhão 3.0 da Feira do Livro de Frankfurt.
Próxima de Mainz, onde Gutenberg inventou a impressão, Frankfurt sediou a mais importante feira do livro da Europa até o fim do século 17. O evento foi reaberto em 1949, tornando-se o maior do mundo no gênero.
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Tradição
Próxima de Mainz, onde Gutenberg inventou a impressão, Frankfurt remonta a uma longa tradição como cidade do livro. Até o fim do século 17, sediou a mais importante feira do livro na Europa. A feira voltou a ocorrer em 1949, tornando-se a maior do mundo no gênero. Não só novos livros, mas também eventos paralelos se ocupam com o mundo literário, e todo ano um país recebe espaço especial.
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O recomeço em 1949
Na primeira Feira do Livro de Frankfurt após a Segunda Guerra Mundial, em 1949, estandes provisórios ofereciam uma visão do mercado de livros na Alemanha. Havia uma grande demanda por cultura e literatura não censuradas de outros países. Além do evento em Frankfurt, na Alemanha Ocidental, a divisão entre as duas Alemanhas levou à criação de uma outra feira, em Leipzig, na Alemanha Oriental.
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Primeiro cartaz
Após a Segunda Guerra, a Feira do Livro de Frankfurt foi lançada por livrarias e pela Associação Alemã de Editores e Livreiros. Sua primeira edição foi de 18 a 23 de setembro de 1949. Catorze mil visitantes vieram à Paulskirche, antiga igreja que virou centro de eventos em Frankfurt, onde foram apresentados 8.500 títulos de livros de 205 expositores.
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Mudança para o centro de exposições
Com o passar do tempo, cada vez mais editoras do exterior queriam espaço e, em 1951, a Feira do Livro de Frankfurt se mudou para um parque de exposições. Quem também ganhou com isso foi o comércio livreiro alemão e a atribuição de um Prêmio da Paz, o que atraiu ainda mais público internacional. Em 1953, pela primeira vez havia mais editores estrangeiros do que alemães expondo na feira.
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Admiração pelo futebol
Os fundadores da Feira de Frankfurt tinham um objetivo político. Após a ditadura nazista e o êxodo de muitos editores e escritores para o exílio, a Alemanha deveria ser apresentada ao mundo como uma nação cultural. Depois da vitória alemã na Copa do Mundo de Futebol de 1954, o entusiasmo contagiou a feira. Os funcionários no estande da editora Burda até usaram camisetas da seleção alemã.
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Data virou tradição
A data da feira, em outubro, rapidamente virou tradição em Frankfurt. Já a Feira do Livro de Leipzig sempre acontecia alguns meses antes, para que editoras, livreiros, agentes e escritores pudessem participar de ambas. Muitos emigrados – tanto editores quanto escritores – voltaram a pisar em solo alemão por causa da Feira do Livro. Em 1957, 1.300 editoras apresentaram suas novas publicações.
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Comércio de licenças
As novas publicações das editoras alemãs espelhavam também a jovem República Federal da Alemanha. Na Feira de Frankfurt são apresentados não só literatura estética e livros ilustrados de alta qualidade, mas a partir de meados dos anos 1960 também edições populares e livros acessíveis. Ao longo do tempo, Frankfurt virou ponto de negociação de licenças internacionais, e o livro tornou-se mercadoria.
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Protestos estudantis
Os anos selvagens de protestos estudantis na Alemanha também deixaram sua marca na feira do livro. 1968 entrou para a história de Frankfurt como a "Feira da Polícia". Após manifestantes mostrarem sua indignação com o Prêmio da Paz ao então presidente senegalês, a polícia bloqueou a entrada do parque de exposições. Os protestos contra editoras de direita também atrapalharam o andamento da feira.
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Escândalos literários
Vez ou outra, escândalos sobre publicações de livros politicamente explosivos ou indiscretos causaram grande ressonância mediática. Por exemplo, os "Versos satânicos", do escritor britânico e indiano Salman Rushdie, em 1989. Também a proibição da história de amor "Esra", de Maxim Biller, que sua amante na época conseguiu a duras negociações, causou polêmica até 2008.
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Prêmio da Paz
O Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão é entregue durante a feira a uma pessoa "que contribuiu de forma notável para a paz, através da literatura, ciência e arte". Iniciado por escritores e editores, ele foi atribuído pela primeira vez em 1950. Desde 1951, é concedido pela Associação do Comércio Livreiro Alemão. Na foto, a editora e escritora Marion von Dönhoff recebe o prêmio em 1971.
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Não só livros
Nos cinco dias da feira, o foco não são apenas livros e seu comércio. Em uma série de eventos paralelos, acontecem encontros com autores, tradutores e editores. Há sessões de debates, leituras em público e as mais variadas programações para crianças, jovens e público em geral.
Foto: DW
Países convidados
Desde 1988, a feira dá a nações selecionadas a oportunidade de apresentar seu mundo literário. A Itália foi o primeiro país convidado. O Brasil esteve em foco em 1994 e em 2013. Em 2019, o país convidado foi a Noruega. Nos próximos anos, serão Canadá, Espanha, Eslovênia e, em 2023, a Itália.
Foto: picture-alliance/dpa/F. Rumpenhorst
Diversidade literária
A ideia da Feira do Livro de Frankfurt de dar espaço a países convidados e dedicar atenção especial ao seu cenário literário foi imitada em todo o mundo. Hoje, o comércio de direitos de tradução é um componente central da Feira do Livro. Mais de 390 mil títulos de livros, audiolivros, e-books e produtos digitais são apresentados a cada ano em Frankfurt.