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HistóriaEuropa

1939: Morria Sigmund Freud

Soraia VilelaPublicado 23 de setembro de 2015Última atualização 23 de setembro de 2019

Em 23 de setembro de 1939, morreu o "pai da psicanálise". Dos mal-estares detectados na civilização às infindáveis interpretações do sonho, o nome de Sigmund Freud continua presente no imaginário ocidental.

Sigmund Freud
Foto: Imago/Leemage

Falecido no dia 23 de setembro de 1939, Sigmund Freud deixou uma herança incalculável para as próximas gerações. Não há praticamente um campo das ciências humanas que tenha permanecido incólume às suas teorias, desde o "olhar inconsciente" da análise cinematográfica até os elogios a seu estilo literário, como o registrado pela escritora austríaca Elfriede Jelinek, ao afirmar que Freud foi um dos "escritores mais significativos do idioma alemão".

"Capítulo do Holocausto"

Sua posição como "pensador do século 20" por excelência, apesar das inúmeras revisões e "correções" das últimas décadas, parece incontestável. Isso pôde ser percebido na polêmica em torno do Livro Negro da Psicanálise (Le Livre Noir de la Psychanalyse), atacado por seus críticos como sendo uma tentativa de domesticar a prática psicanalítica e uma forma barata de se opor ao pensamento sociopolítico e, por isso, incômodo de Freud.

O debate prova que a herança freudiana pode ser considerada peça de museu, mas jamais como um arquivo morto. No "livro negro" em questão, a teoria psicanalítica é responsabilizada por "danos irreparáveis" e "milhares de vítimas" em função de posições relacionadas ao autismo, homossexualismo e dependência de drogas. Ou seja, Freud pode ser atacado por muitos, mas quase nunca é ignorado.

O tão polêmico volume teve mais de 20 mil exemplares vendidos na França em poucas semanas e foi amplamente discutido no país – diferentemente do que ocorreu na Áustria, onde Freud viveu por mais de 70 anos, tendo sido obrigado a fugir do regime nazista. "Isso acontece talvez em função de um cuidado exagerado, pois Freud é lembrado no país como um capítulo do Holocausto", observa a jornalista Julieta Rudich, em texto publicado pelo diário espanhol El País.

Importância cultural

Há de se lembrar que a essência do legado de Freud fica longe do divã que o imortalizou. É possível que o próprio, se estivesse vivo, apontasse falhas nas teorias que desenvolveu. "Ele não via na terapia sua grande obra, mas na importância cultural da psicanálise", observou o psicólogo Wolfgang Mertens.

É certamente nos pontos de interseção da psicanálise com a literatura, a filosofia, o cinema, a sociologia, a antropologia e outros saberes que se torna nítida a necessidade de lembrar Freud. O que talvez explique por que seu nome – com ou sem "livros negros" – continua ocupando um "lugar de honra" na França de Jacques Lacan. O país onde, afinal, grande parte dos pensadores contemporâneos – de Foucault a Deleuze e Derrida – se apoiaram no saber freudiano. Mesmo que para, às vezes, desconstruí-lo.

"Neopositivistas"

As correntes que pretendem hoje apagar qualquer rastro utilizável do pensamento freudiano são vistas por seus críticos como representantes de uma onda de "neopositivismo" – marionetes de um retrocesso político, que se opõe a tudo o que questiona e leva, de alguma forma, à afirmação do sujeito como tal. Ignorando que o discurso psicanalítico, independente de qualquer validade clínica terapêutica, continua sendo uma das importantes formas de pensar a cultura e refletir sobre a história.

O famoso divã de FreudFoto: picture-alliance/Arco Images/Kiedrowski, R.

Um rápido olhar pelo que marcou a literatura e as artes plásticas no século 20 já elimina, porém, qualquer tentativa de desqualificar o legado deixado por Freud. Descoberto pelos surrealistas – que se alimentaram livremente do inconsciente – suas teorias impulsionaram a produção de escritores como Thomas Mann, Alfred Döblin ou Robert Musil, entre muitos, muitos outros. Alguns defendem que não há praticamente nenhum autor significativo no decorrer do século 20 que tenha ignorado as teorias de Freud.

Ferramenta civilizatória

A literatura moderna teria tido certamente outro rosto sem a influência do pensamento freudiano. E a forma de se posicionar frente aos problemas de identidade do sujeito teria tido outros contornos, sem os fundamentos criados pela psicanálise e a referência plural que esta se tornou.

Thomas Mann, por exemplo, via a psicanálise como uma ferramenta de esclarecimento e civilização. "O fato de Stefan Zweig ter discursado à beira da cova de Freud mostra o grau pessoal da relação entre literatura e psicanálise", escreve Thomas Anz na revista Literaturkritik.

O mal-estar que persiste

Last but not least, a atualidade do pensamento de Freud está na pertinência em se falar do mal-estar que persiste não apenas na civilização ocidental, como observa Elisabeth von Thadden, em texto publicado pelo semanário Die Zeit: "A frase de Freud de que o ego não seria senhor em sua própria casa não se transformou à toa em lenda. E assim não é por acaso que este Freud dá à época o presente que esta merece: uma técnica sutil de observação, que deve contribuir para reunir o disperso e libertar o homem da auto-ilusão. Tornando sua própria história mais plausível e fazendo com que ele se torne mais forte".

Para evitar que as teorias de Freud venham lentamente a esmaecer décadas após sua morte no exílio londrino, em 1939, são bem-vindas reflexões como as do pensador palestino-americano Edward W. Said no ensaio Freud e os não europeus: "Freud, no sentido filosófico, foi um inversor e remapeador de geografias e genealogias aceitas ou estabelecidas. Ele assim se presta de maneira especial a releituras em contextos diferentes, já que seu trabalho é, todo ele, sobre como a história da vida se presta, pela memória, pesquisa e reflexão, a uma estruturação e reestruturação sem fim, tanto no sentido individual como no coletivo".