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ArteBrasil

A "armadilha psicodélica" de Jaider Esbell

4 de novembro de 2021

Artista plástico que morreu nesta semana foi expoente e formulador da Arte Indígena Contemporânea. Pertencente ao povo Macuxi, Jaider Esbell vivia o momento de maior visibilidade de sua trajetória, aos 41 anos.

Jaider Esbell ao lado de seus quadros
Diálogo "intermundos" guiou a produção e as ações de Jaider EsbellFoto: Malu Dias/Fotoarena/Imago Images

O artista plástico indígena Jaider Esbell, morto aos 41 anos na última terça-feira (02/11), vivia um momento ímpar. Sua obra "Entidades", que representa duas serpentes cósmicas com 24 metros de extensão cada, no lago do Parque Ibirapuera, era o destaque da 34ª Bienal de São Paulo. Na capital paulista, ele também assina a curadoria da exposição Moquém_Surarî: Arte Indígena Contemporânea no Museu de Arte Moderna (MAM-SP). Há exatos dez dias, em 24 de outubro, o renomado museu parisiense Centre Georges Pompidou adquiriu duas obras do artista. A descoberta de sua modernidade ancestral pelo grande público estava apenas começando.

Enquanto finalizava a preparação dos trabalhos que iria expor em São Paulo, Esbell concedeu uma entrevista de quase uma hora à DW Brasil. A conversa tinha como foco suas impressões sobre a presença crescente da Arte Indígena Contemporânea nas galerias. O conceito se refere ao movimento artístico construído por artistas indígenas de sua geração, a primeira a conquistar reconhecimento pelo circuito oficial das artes. Mais do que fazer parte, Esbell se tornou um formulador do fenômeno que ele próprio ajudou a construir.

"Arte Indígena Contemporânea é uma reivindicação especialmente minha, ela tem uma autoria: Jaider Esbell. Digo sem pena, sem vergonha, que custou até meus colegas entenderem", afirmou, na conversa do dia 24 de agosto. Quando a academia tentou nomear o conjunto das produções de artistas como Esbell, Denilson Baniwa e Daiara Tukano, apenas acrescentou o termo "indígena" à categoria "arte contemporânea".

"Arte é criação"

Em uma luta quase solitária, Esbell publicou artigos em diferentes espaços para fazer sua discordância chegar à academia. Ele defendia o uso de seu conceito por entender que a definição da academia associava a produção dos artistas indígenas à arte contemporânea, definida em bases eurocêntricas. O grito ecoou entre os acadêmicos, que o convidaram para conversar.

"Eu tive a impressão que os antropólogos e pesquisadores da arte estavam querendo dizer que nós não fazíamos arte, que não sabíamos o que é isso e que viemos a conhecer a partir deles, dos europeus, quando isso não é verdade. Arte, para nós, é criação, é transformação pura", explicou.

Inevitavelmente, a fala do artista remonta à cena criada com a instalação de "Entidades" em São Paulo. Em diferentes culturas indígenas, a figura da serpente está associada justamente à criação de novos mundos e à transformação. No Ibirapuera, as bocas abertas dos seres encantados gigantes se voltam para o monumento em homenagem a Pedro Álvares Cabral, tido como "descobridor" do Brasil pela história oficial.

"Entidades" representa duas serpentes cósmicas com 24 metros no lago do IbirapueraFoto: Sebastiao Moreira/Agencia EFE/imago images

"Armadilha psicodélica"

Tanto em sua obra, como no discurso, Esbell parecia carregar a missão artística de nos levar à provocação. Essa postura se evidencia em sua definição sobre o movimento da Arte Indígena Contemporânea: "É nada mais, nada menos, que uma armadilha psicodélica". Pelas cores e traços do artista e seus pares, as cosmovisões e mensagens políticas dos povos indígenas driblam caminhos fechados para alcançar mentes e corações.

"Nosso povo acabou se viciando na política partidária, então nossas tradições foram todas substituídas por outras coisas que a gente não sabe o que é", criticou, na entrevista à DW. "A única possibilidade que a gente tinha de acessar esse mundo capitalista era por meio da extrema subjetividade, no mundo da camuflagem, da estratégia de linguagem."

O diálogo "intermundos" era o assunto que guiava toda a produção e ação de Jaider Esbell. Pertencente ao povo Macuxi, o artista nasceu e cresceu na terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Desde criança, viu seu povo ameaçado por invasores. Ainda na escola, onde sofria preconceito por ser indígena, ele começou a descobrir sua vocação por conectar realidades separadas.

Também nesse campo, o artista não limitou sua expressão à via artística. Conforme os laços com acadêmicos se estreitaram, Esbell passou a orientar mestrandos e doutorandos. Nesse processo, conquistou espaço para novas formulações. O mergulho no estudo das potências criadas pela troca intermundos culminou na noção de txaísmo, mais um conceito forjado pelo artista. A expressão remonta ao termo "txai", vocativo empregado entre indígenas ligado à noção de parceria.

"É uma formulação que eu lanço para entender, criar reflexão sobre essas outras possíveis experiências de relações entre indígenas e não indígenas no campo da parceria, da confiança, da tentativa de criação de uma outra relação de mundo, aquilo que o Ailton Krenak chama de 'alianças afetivas'", explicou.

"Modo único de pensar a imagem"

A destreza manifestada por Esbell na criação dessas pontes mereceu destaque pelo curador Paulo Miyada, do Pompidou, quando o museu francês anunciou a aquisição das obras do artista. Uma delas, a pintura "Na Terra Sem Males" (2021), que Miyada considera expressiva dessa capacidade.

"É uma obra bastante icônica da capacidade do Jaider de combinar muitos mundos. Essa relação pictórica que, cada vez que você olha, percebe um símbolo novo, uma narrativa nova, um outro modo espacial. É um modo muito único de pensar a imagem e a representação", declarou o curador na ocasião.

"Na Terra Sem Males" (2021), do artista indígena brasileiro Jaider EsbellFoto: Filipe Berndt

A urgência ecológica era um dos principais elementos motivadores da busca de Esbell por um entendimento entre visões de mundo antagônicas. Incomodava ao artista que o egoísmo predominasse na "canoa furada" da humanidade. "Quando todo mundo perceber, a canoa afunda e não deu tempo nem de discutir quem chegou primeiro ou quem chegou depois", criticou.

O artista sabia que a missão de aproximar mundos era uma tarefa de longo prazo, para além de uma vida. "O trabalho da arte não é dar solução, mas reunir todas essas coisas complexas e dizer: resolvam-se, trabalhem-se, amem-se ou se destruam de uma vez", afirmou, antes de explicar sua vinda ao mundo, com humor.

"As vovós estão muito cansadas disso tudo, então pegam os netos mais loucos e jogam no mundo. Elas dizem: vão lá, meninos, vejam se fazem alguma coisa porque não tá legal", falou Esbell.

A causa da morte de Jaider Esbell não foi apresentada oficialmente. Ele estava em São Paulo e foi encontrado sem vida no apartamento onde ficava na cidade. Seu corpo será velado no Palácio da Cultura, em Boa Vista (RR), nesta quinta-feira (04/11).

A exposição Moquém_Surarî: Arte Indígena Contemporânea, com a curadoria de Esbell, fica em cartaz até o próximo dia 28 de novembro. Já a 34ª Bienal de São Paulo vai até o dia 5 de dezembro.

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