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A atual versão brasileira de "atirar no mensageiro"

Philipp Lichterbeck
Philipp Lichterbeck
17 de outubro de 2022

A tentativa de criminalizar institutos de pesquisa se encaixa no quadro mais amplo do bolsonarismo de prejudicar a produção de conhecimento – em sua essência, um movimento anticientífico.

Porcentagem de votos em Bolsonaro no primeiro turno divergiu de forma surpreendente das pesquisas, o que impulsionou projeto de lei para criminalizar institutosFoto: ANDRE COELHO/AFP/Getty Images

É uma fórmula milenar a de que os portadores de más notícias vivem perigosamente. Num escrito do filósofo grego Plutarco, lê-se que o mensageiro que anunciou ao rei armênio Tigranes a chegada do exército romano teve sua cabeça cortada. Ninguém ousou trazer mais notícias. "Sem qualquer informação, Tigranes ficou sentado, ouvindo apenas aqueles que o lisonjeavam enquanto a guerra era travada à sua volta."

Mais tarde, na peça Henrique 4º, Shakespeare escreve que, quando Cleópatra descobre que Antônio se casou com outra, ela ameaça arrancar os olhos do mensageiro. O mensageiro responde: "Graciosa senhora, eu que trago a notícia, não arranjei o casamento."

Em inglês, tal comportamento se transformou na expressão metafórica "atirar no mensageiro".

Uma versão dela está sendo apresentada atualmente no Brasil. Parlamentares bolsonaristas, incluindo o influente presidente da Câmara,Arthur Lira, ameaçam os institutos de pesquisa com uma lei que prevê penas para resultados "errados". Eles alegam, sem provas, que os institutos manipulam as estatísticas para prejudicar Bolsonaro.

O projeto de lei se baseia na premissa absurda de que os eleitores não mudarão sua intenção de voto nos 15 dias que antecedem a eleição. E que, portanto, deveria virar crime, com penas de quatro a dez anos de prisão, publicar pesquisas com números que diferem do resultado final.

A iniciativa nasceu porque a porcentagem de votos no presidente Bolsonaro no primeiro turno divergiu de forma surpreendente das previsões dos institutos. É um fato que houve discrepância e foi constrangedor para os pesquisadores. Mas atribuir as discrepâncias a manipulação é malicioso, porque, cientificamente, elas não podem ser descartadas. Afinal, trata-se do comportamento de humanos, e não de robôs.

É sabido que eleitores de todo o mundo mudam de ideia pouco antes da eleição. No Brasil, muitos eleitores de Ciro Gomes e Simone Tebet se voltaram para Bolsonaro no último minuto. Além disso, uma das táticas da nova extrema direita é mentir para os institutos ou nem sequer participar de pesquisas de intenção de voto para distorcer o resultado.

Ataques à ciência

Mas a questão vai muito além disso. A tentativa de criminalizar os institutos de pesquisa se encaixa no quadro mais amplo do bolsonarismo, que é em sua essência um movimento anti-iluminista e anticientífico. Um movimento que acredita em Deus, no diabo e em tudo o que lhe vier à cabeça, menos no conhecimento adquirido por meio da ciência.

Foi assim quando Bolsonaro acusou o renomado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) de falsificar dados sobre queimadas na Amazônia e despediu o diretor (e físico) do Inpe Ricardo Galvão. Foi assim na pandemia, quando o presidente defendeu o uso de um remédio contra a malária e desaconselhou a vacinação contra covid-19. Foi assim quando o governo cancelou o censo de 2021 ou quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que os dados sobre insegurança alimentar da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan) estavam errados.

A hostilidade ao conhecimento científico culminou em cortes nos orçamentos para universidades e pesquisa, acarretando uma verdadeira fuga de cérebros para universidades estrangeiras.

Um governo que cria suas próprias realidades

No entanto, não se trata apenas de dificultar a produção de conhecimento, mas de apagar as distinções entre verdade, boato e mentira, com o objetivo de criar confusão.

É isso que acontece quando, por exemplo, a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e fundamentalista cristã Damares Alves divulga histórias de horror sobre uma ilha onde crianças estariam sendo abusadas sexualmente. De onde ela tirou as informações? De conversas que ouviu "nas ruas", disse.

É o nível de um governo para o qual a verdade sempre foi algo relativo, que não tem valor em si mesmo. Por isso, atrapalhou o trabalho de instituições comprometidas com métodos científicos – mesmo que, como no caso dos institutos de pesquisa eleitoral, não estejam 100% certas.

Pode-se dizer, em geral, que nunca é uma boa ideia fechar-se à verdade e ao conhecimento. Pior ainda é punir quem produz informações que não lhe agradam. Não é, portanto, surpreendente que o rei Tigranes acima mencionado tenha perdido a guerra contra os romanos no ano 68 antes de Cristo.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

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Cartas do Rio

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio de Janeiro, em 2012. Na coluna Cartas do Rio, ele faz reflexões sobre os rumos da sociedade brasileira.