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Berlinale

20 de fevereiro de 2011

Verdadeiro jardim de veredas que se bifurcam, o 61º Festival de Cinema de Berlim chega ao fim, após abarcar desde os clichês do "mainstream" até o experimentalismo mais militante. Augusto Valente faz um balanço pessoal.

Filas para os incautos sem entradas nas sessões concorridasFoto: dapd

Qualquer rota que se percorra por entre 385 filmes no espaço de dez dias tem, inevitavelmente, algo de acidental. Salvo, claro, para quem esteja perseguindo uma meta profissional inabalável: acompanhar aquela seção, cobrir as produções daquela nacionalidade etc. Para os demais mortais sequiosos de descobertas, um festival internacional de cinema como o de Berlim é um verdadeiro "jardim das veredas que se bifurcam".

O traçado das escolhas e exclusões é, de início, errático, ditado por certas informações, sólidas ou esparsas, predileções pessoais de diretor, ator ou temática, intuições. Mas à medida que o evento progride, tão importante quanto os comentários da imprensa torna-se a rede de dicas entre os espectadores: "Você tem que assistir aquele","nem perca seu tempo com esse", "esse aí é candidato forte".

Assim, formam-se consensos e ortodoxias, e está aberto o caminho para certos patinhos feios alcançarem uma espécie de estrelato interno instantâneo.

Cinemas lotados

'Submarine' cativa por suas personagensFoto: Berlinale.de

Mesmo compreendendo esse mecanismo, a sede de cinema dos frequentadores da Berlinale tem algo de miraculoso. Senão, como explicar a enorme afluência à quinta apresentação de Submarine, o longa de estreia do comediante inglês Richard Ayoade, no penúltimo dia do festival, um gélido sábado, às 11 horas da manhã?

A maravilha é ainda maior, considerando-se que a sala de 500 lugares é apenas uma das dezenas "recrutadas" em Berlim para o Festival Internacional de Cinema, boa parte das quais provavelmente também lotadas naquele momento, e no decorrer de todo o dia.

Em tempo: o público madrugador tinha razão. Baseado num romance de Joe Dunthorne, Submarine é uma obra deliciosa, ostentando um roteiro preciso e inventivo, atuações cativantes, equilíbrio entre ironia e carinho pelas fraquezas humanas, e, de quebra, domínio tranquilo de uma ampla palheta de recursos estilísticos.

Direitos humanos em tons diversos

Fiel à sua tradição política, a Berlinale transcorreu de 10 a 20 de fevereiro de 2011 sob o signo da luta pelos direitos humanos. Um de seus jurados, o diretor iraniano Jafar Panahi, primou pela ausência, pois encontra-se preso em seu país por motivos políticos.

Logo no segundo dia do festival, diversos participantes, entre eles o brasileiro José Padilha (Tropa de elite 2), expressaram em passeata sua solidariedade com Panahi. A queda de 30 anos de ditadura no Egito, pouco mais tarde, também ressoou na mostra cinematográfica, diluindo um tanto as fronteiras entre ficção, festival e o grande mundo lá fora.

O vencedor do Urso de Ouro, Jodaeiye Nader az Simin (Nader e Simin – Uma Separação) aborda a problemática dos direitos humanos de uma forma extremamente sutil. Ao acompanhar as tentativas do casal protagonista de se divorciar, o também iraniano Asghar Farhadi vai esboçando o retrato cada vez mais labiríntico de um país dilacerado entre o velho e o novo, o secular e o religioso, a fuga e a resistência, sufocado pela burocracia e a arbitrariedade dos funcionários públicos. Melodrama contido, sua trama psicologicamente inteligente acaba funcionando como alegoria de toda uma sociedade – em especial, graças à atuação magistral de seu elenco.

Na Macedônia, na Tchetchênia...

A metáfora também foi a forma preferida por Milcho Manchevski para falar da arbitrariedade dos órgãos públicos na Macedônia. Majki (Mães) é um tríptico que transita da ficção ao documentário. No curta inicial, duas garotas carentes de atenção denunciam à polícia um tarado exibicionista que jamais viram. No segundo, uma equipe de filmagem fictícia viaja até os confins rurais do país, à busca de mitos nacionais. A parte final documenta a absurda investigação de uma série real de crimes sexuais num lugarejo. Segundo o diretor, um dos leitmotive que unem os três filmes díspares é a natureza da verdade, "pelo menos, a verdade como ela é na Macedônia".

Vidas desoladas em 'Barzakh'Foto: Berlinale 2011

Em contrapartida, o documentário Barzakh aborda as violações dos direitos humanos na Tchetchênia de forma direta e contundente. Cerca de 6 mil pessoas estão desaparecidas há anos no país, presumivelmente sequestradas pelas forças russas de repressão aos separatistas. De 2006 a 2009, o lituano Mantas Kvedaravicius acompanhou um sobrevivente da prisão, um ativista dos direitos civis e famílias de desaparecidos, as quais vivem no limbo da incerteza.

Paisagens destruídas pela guerra, cruas imagens de desespero pessoal e de um dia-a-dia desolado, inimagináveis relatos de torturas (os algozes colecionavam, em colares, as orelhas cortadas dos presos), registros de embates burocráticos inúteis: tudo isso lembra, mais uma vez, a infinita capacidade humana de inventar a desgraça do próximo.

Único alívio são as inserções de tomadas subaquáticas, representando tanto o lago onde, deduz-se, os corpos dos desaparecidos se encontram, quanto Barzakh, um local mítico. Nas palavras do poeta Ibn al-Arabi: "Fronteira entre o vivo e o morto, que separa esses dois mundos, mas não é nem um, nem outro".

High tech, low tech

Em 2011, o cinema 3D fez sua estreia na Berlinale em três produções, com médio estardalhaço e, no fim das contas, sem grande repercussão. Uma advertência de que a tecnologia é vital, porém apenas um dos elementos que compõem a sétima arte.

Equipe de Herzog na Caverna de Chauvet-Pont-d'ArcFoto: Internationale Filmfestspiele Berlin

Pois o que dita a qualidade de PINA é, definitivamente, a genialidade da obra da coreógrafa Pina Bausch, assim como o respeito com que Wim Wenders a enfocou. Em Cave of forgotten dreams (Caverna de sonhos esquecidos) a nova técnica é bem empregada, mas as inacreditáveis pinturas da Caverna de Chauvet-Pont-d'Arc, frescas e contemporâneas após 32 mil anos, são o verdadeiro foco de interesse – fora quando o diretor Werner Herzog insiste em desviar a atenção para si mesmo.

Por fim, não seria a técnica estereoscópica a resgatar do tédio a excepcionalmente morna animação em silhuetas Les contes de la nuit, de Michel Ocelot. A razão de sua inclusão na mostra competitiva foi, aliás, um dos grandes enigmas desta Berlinale.

Niilismo preto-e-branco e ética YouTube

Não só em 2D, como estático, implacavelmente minucioso e em preto-e-branco, foi o vencedor do Grande Prêmio do Júri do festival: A torinói ló (O cavalo de Turim), de Béla Tarr. O cineasta húngaro acompanha o proverbial cavalo que, em 1889, Friedrich Nietzsche abraçou em lágrimas, ao vê-lo ser espancado por um cocheiro. Em seguida, o filósofo passaria seus últimos dez anos de vida mergulhado na demência.

Enquadramentos rigorosos em 'O cavalo de Turim'Foto: Berlinale.de

Como numa peça de Samuel Beckett, confinados a um rude casebre, o cocheiro e sua irmã repetem dia após dia suas rotinas de sobrevivência: vestir-se, tomar uma palinka, pegar água no poço, comer batatas, dormir. No entanto, o mundo à sua volta está desaparecendo inexoravelmente: é como se o vento que varreu a mente do pensador niilista, a noite que o envolveu, tomassem conta de tudo. Com uma impopular duração de 146 minutos, essa elegia do apocalipse é cinema de autor como nos bons e velhos tempos, pousado sobre a irredutível consequência de seu roteiro e a beleza austera de suas imagens.

No extremo oposto da escala tecnológica encontra-se algo como The queen has no crown (A rainha não tem coroa), de Tomer Heymann, que combina décadas de filmes de família em gerações sucessivas de aparelhagem não-profissional, do Super-8 às atuais câmeras digitais. Porém, não é tanto a estética lo-fi que torna essa produção israelense difícil de tragar, mas antes o narcisismo do realizador.

Onipresente e penetrante, a câmera de mão de Heymann o expõe e a seus amantes, as crianças da família, os irmãos que abandonam Israel pelos EUA, para dor da mãe convalescente de câncer. Há, é claro, o avô que escapou dos nazistas, a opção sionista, o conflito árabe-israelense, os atentados. Álibis insuficientes: o resultado é mesmo um registro voyeurístico de relações abusivas, com despudor e falta de critério dignos dos adolescentes descerebrados que povoam o YouTube e similares. Antes um problema de ética, enfim.

Terrenos originais

O franco-canadense En terrains connus (Em terrenos conhecidos), por sua vez, alcança um raro equilíbrio entre fins expressivos e meios técnicos. Seus quatro protagonistas são: um rapaz que vive com o pai cardíaco e é incapaz de sequer abrir um vidro de molho de tomate, quanto mais de manter um relacionamento adulto; a irmã casada, imergindo numa crise existencial tão ameaçadora quanto invisível; e seu marido bonachão.

Cada um vai tocando a vida gentilmente absurda, em direção à catástrofe ou a coisa nenhuma. Até que um dia, deus ex machina, surge um homem vindo do futuro: "Não de muito longe, não. Daqui a uns meses. Lá para setembro".

O pai, o irmão, o cunhado: frieza carinhosa 'En terrains connus'Foto: Berlinale.de

Só mesmo o diretor Stéphane Lafleur sabe a receita dessa joia de understatement e humor. Câmera e montagem – observadoras discretas, quase minimalistas – transformam em coprotagonistas a paisagem glacial do Québec e o distanciamento das relações familiares. E recordam que o cinema pode passar muito bem sem o boom bang! e os já estereotipados efeitos digitais do mainstream.

Delicado e sarcástico, munido de um script de laconismo hilariante e de um bravo elenco, encabeçado por Francis La Haye e Fanny Mallette, Lafleur cria uma normalidade surrealista, em que o calor humano arde sob uma espessa camada de gelo e quilos de roupas. Essa joia enterrada na neve – favorita confessa do articulista – mereceu o Prêmio do Júri Ecumênico na seção Forum da 61ª Berlinale.

Autor: Augusto Valente
Revisão: Soraia Vilela

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