Vila Sahy, em São Sebastião, é o bairro mais atingido por temporal que deixou mais de 50 mortos. Sobreviventes tentam salvar o que resistiu. Muitos vieram de outros estados em busca de melhores condições de vida.
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Há quase uma semana, Lediana espera notícias do filho, Caio, de 20 anos, e da nora, Michele, de 22. O casal está desaparecido desde o último domingo (19/02) na Vila Sahy, em São Sebastião, litoral norte paulista. O bairro foi o mais destruído após as chuvas recordes que caíram naquela madrugada.
"Ele morava aqui há dois meses, mudou com minha nora depois que se casaram", conta Lediana, aos prantos, enquanto aguarda atualização das buscas nos escombros misturados à lama.
A poucos metros dali, morro acima, homens e mulheres reviram as encostas. Algumas casas soterradas estavam ocupadas por turistas que buscavam descanso no Carnaval.
Era o caso dos tios e primos de Thauany Santos, de São Paulo. "Perdi cinco pessoas próximas da família na tragédia", lamenta.
Do alto de uma das lajes que resistiram à enxurrada e aos deslizamentos de terra, a DW acompanhou nesta quinta-feira o momento em que uma oficial dos bombeiros alertou sua equipe sobre o corpo que acabara de localizar.
Segundo a Defesa Civil do estado, 54 mortes foram confirmadas até a manhã desta sexta-feira em decorrência do temporal no litoral paulista – 53 em São Sebastião e uma em Ubatuba. As buscas, que contam com 600 agentes, seguem atrás de mais de 30 desaparecidos.
"Como vamos construir tudo de novo?"
Quem sobreviveu na Vila Sahy tenta salvar o que pode. Roupas, móveis, eletrodomésticos, bicicletas, fotos de família e berços são carregados pelas vias ainda cobertas de lama para um lugar mais seguro.
"Arrumaram um lugar para a gente colocar nossas coisas. Eu estou dormindo num colégio", diz Jorge da Silva, de 61 anos, enquanto retira os pertences da casa onde morou nos últimos 30 anos.
Nascido em Ilhéus, na Bahia, Silva se mudou para São Sebastião atrás de trabalho. Quando chegou, na década de 1990, havia três casas na área.
"A gente lutou tanto para construir o que é da gente, e em meia hora acabou tudo. Como vamos construir tudo de novo? Começar tudo do zero? Sem ter onde [construir]?", lamenta, emocionado.
Em todo o município litorâneo, 1.845 pessoas tiveram de deixar suas residências e estão abrigadas em escolas, creches, igrejas e ONGs.
Geografia do desastre
Localizada a cerca de 50 quilômetros do centro de São Sebastião, a Vila Sahy avançou pelas encostas da Serra do Mar à medida que novos moradores foram chegando nas últimas décadas. Muitos vieram dos estados da Bahia, Maranhão e Piauí em busca de melhores condições de vida.
Alertada pelo Ministério Público em 2021 sobre a tragédia iminente por conta das moradias precárias que se espalhavam no local sem supervisão ou planejamento do poder público, a prefeitura congelou o núcleo e prometeu regularizar a situação.
"A gente estava com esperança de que finalmente seria tudo regularizado, mas não deu tempo", conta Ana Paula Dias, que trocou Iuiú, na Bahia, pelo litoral paulista.
Dona de uma mercearia na parte mais plana do bairro, Dias não esquece o que viveu naquela madrugada. "Foi muito choro, muito desespero, muito pedido de socorro, muita gente gritava que lá em cima tinha muita gente morta, que tinham caído muitas casas. Na Vila Sahy, a população é muito boa, são pessoas que vêm do interior, que já sofreram muito", diz.
Muitos deles trabalhavam perto dali. Do outro lado da rodovia Rio-Santos, mais perto da praia, as casas de alto padrão da Barra do Sahy empregavam parte da mão de obra disponível na vila – e resistiram praticamente ilesas à tempestade.
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Doações e acolhida
As salas do Instituto Verdescola, o prédio mais imponente da Vila Sahy, se transformaram em abrigo. A ONG também abriga uma espécie de hospital temporário, onde feridos que escaparam dos deslizamentos receberam os primeiros atendimentos.
"Minha esposa conseguiu correr a tempo depois que a parede da nossa casa desabou com a água. Nosso filho tem 6 anos, é autista. Eu estava no trabalho quando tudo aconteceu. Meu vizinho sobreviveu porque uma árvore derrubou a parede do quarto dele e empurrou o colchão onde ele dormia para fora. Daí ele acordou e correu", conta um sobrevivente que prefere que seu nome não apareça na reportagem.
Do lado de fora do instituto, com entrada controlada pelo Exército, doações chegam de todos os cantos, e voluntários organizam a entrega de mantimentos em bairros vizinhos também afetados, como Boiçucanga. Caminhões-pipa também tentam trafegar pelas ruas estreitas, tomadas por viaturas e escavadeiras, para encher as caixas d'água das casas que estão de pé.
É na frente do instituto que moradores se encontram, choram juntos e buscam informações. Socorristas em troca de turno também passam por ali. No fim da tarde, ainda sujos de lama, oficiais dos bombeiros e da Defesa Civil comemoram a notícia da recuperação de um menino de 3 anos retirado vivo dos escombros no domingo. Ele foi encontrado no colo da mãe e ao lado do pai, mortos no local. Dois outros filhos do casal seguem desaparecidos.
Como as mudanças climáticas impactaram 2022
Calor, seca, incêndios, tempestades extremas, inundações – mais uma vez, o ano foi marcado por muitos eventos climáticos direta ou indiretamente influenciados pelas mudanças climáticas. Uma retrospectiva em fotos.
Foto: Thomas Coex/AFP
Na Europa, 2022 foi mais quente e seco do que nunca (agosto)
Calor extremo e a pior seca em 500 anos marcaram o verão na Europa. Na Espanha, mais de 500 pessoas morreram na onda de calor mais forte já registrada no país, com temperaturas acima de 45º C. No Reino Unido, o termômetro bateu 40º C pela primeira vez. Partes do continente nunca estiveram tão secas nos últimos mil anos, e muitas regiões racionaram água.
Foto: Thomas Coex/AFP
Graves incêndios devastaram a Europa (julho)
De Portugal, Espanha e França, no oeste, passando pela Itália até a Grécia e Chipre, no leste, e a Sibéria, no norte, florestas estiveram em chamas em todo o continente em 2022. Os incêndios queimaram cerca de 660 mil hectares somente até meados do ano, um recorde desde o início dos registros, em 2006.
Chuvas de monção extremas caíram sobre o Paquistão. Cerca de um terço do país ficou debaixo d'água, 33 milhões de pessoas perderam suas casas, mais de 1.100 morreram e as doenças estão se espalhando. Chuvas extremamente fortes também atingiram o Afeganistão. Milhares de hectares de terra foram destruídos. A fome no país está piorando.
Foto: Stringer/REUTERS
Calor, seca e tufões afetaram a Ásia (agosto e setembro)
Antes das enchentes, o Afeganistão e o Paquistão, assim como a Índia, tiveram calor extremo e seca. A China passou por sua seca mais extrema em 60 anos e seu pior calor já registrado. No outono, 12 tufões assolaram a China. Coreia do Sul, Filipinas, Japão e Bangladesh também sofreram com fortes tempestades, que estão se tornando cada vez mais fortes devido às mudanças climáticas.
Foto: Mark Schiefelbein/AP Photo/picture alliance
Na África, consequências dramáticas
O clima no continente africano está esquentando mais rápido do que a média global. Por isso, a África é particularmente afetada por mudanças nas chuvas, secas, tormentas e inundações. Na Somália, a seca de 2022 foi a pior em 40 anos. Um milhão de pessoas tiveram que deixar suas casas. Na foto, um alagamento no Senegal em julho.
Foto: ZOHRA BENSEMRA/REUTERS
Fuga e fome nos países africanos
Estiagens e inundações tornam difícil a criação de gado ou a agricultura em cada vez mais regiões do continente africano. Como resultado, mais de 20 milhões de pessoas correm risco de morrer de fome, principalmente na Etiópia, na Somália e no Quênia.
Foto: Dong Jianghui/dpa/XinHua/picture alliance
América do Norte: Incêndios e inundações
No final do verão no Hemisfério Norte, incêndios graves ocorreram nos estados americanos da Califórnia, Nevada e Arizona, em particular. Uma cúpula de calor se formou em todos os três estados, com temperaturas chegando a 40º C. No início do verão, fortes chuvas haviam causado grandes alagamentos no Parque Nacional de Yellowstone e no estado de Kentucky.
Foto: DAVID SWANSON/REUTERS
América e Caribe: ciclones violentos
Em setembro, o furacão Ian causou grande devastação no estado americano da Flórida. As autoridades falaram de "danos em escala histórica". O Ian já havia passado por Cuba, onde causou interrupção no fornecimento de eletricidade por vários dias. O ciclone tropical Fiona se moveu até a costa leste do Canadá depois de causar graves danos inicialmente na América Latina.
Foto: Giorgio Viera/AFP/Getty Images
Tempestades tropicais devastam América Central
Não apenas o Fiona assombrou a América Central. Em outubro, o furacão Julia trouxe devastação severa a Colômbia, Venezuela, Nicarágua, Honduras e El Salvador. Devido ao aquecimento global, as superfícies dos oceanos estão esquentando, o que torna os furacões mais fortes.
Foto: Matias Delacroix/AP Photo/picture alliance
Seca extrema na América do Sul
Há uma seca persistente em quase todo o continente sul-americano. No Chile, por exemplo, isso ocorre desde 2007. Desde então, a água dos córregos e rios em muitas regiões diminuiu entre 50% a mais de 90%. Em regiões do México, quase não chove há vários anos consecutivos. Argentina, Brasil, Uruguai, Bolívia, Panamá e partes do Equador e da Colômbia também sofrem com a seca.
Foto: IVAN ALVARADO/REUTERS
Alagamentos na Austrália e Nova Zelândia
Na Austrália, fortes chuvas em 2022 causaram graves inundações várias vezes. De janeiro a março, choveu tanto na costa leste quanto na Alemanha durante todo o ano. A Nova Zelândia também foi afetada. O responsável é o fenômeno climático La Niña, que é amplificado pelas mudanças climáticas, pois a atmosfera mais quente absorve mais água e as chuvas aumentam.