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A ditadura que se infiltrou nos sonhos dos alemães

Ricardo Domeneck
19 de fevereiro de 2019

Relançado há alguns anos na Alemanha e agora disponível em tradução no Brasil, livro "Sonhos no Terceiro Reich" retrata os efeitos de um regime totalitário como o nazista sobre o inconsciente de um povo.

Adolf Hitler em parada no Estádio Olímpico de Berlim em 1939
Adolf Hitler em parada no Estádio Olímpico de Berlim em 1939Foto: picture-alliance/Everett Collection

A partir 1933, após a ascensão nazista ao poder na Alemanha, uma jornalista residente em Berlim passou a ter pesadelos terríveis e acordar todas as manhãs assustada, encharcada de suor. Perseguição, tortura e morte povoavam sua vida noturna, inconsciente. Havia algo distinto nesses pesadelos, em sua natureza e regularidade, e ela começou a perceber uma associação cada vez mais clara entre eles e o que ocorria em sua vida desperta, ao redor de si mesma e de seus concidadãos.

O terror que aos poucos ia mostrando a cabeça de serpente nas ruas de cada cidade alemã. Foi nesse momento que ela se perguntou: será só comigo que isso está acontecendo? Assim nasceu um dos trabalhos mais fascinantes e inclassificáveis da literatura alemã, 'Das Dritte Reich des Traums' (literalmente "o Terceiro Reich dos sonhos"), da escritora Charlotte Beradt, lançado recentemente no Brasil como 'Sonhos no Terceiro Reich' (São Paulo: Editora Três Estrelas, 2017), com tradução de Silvia Bittencourt.

Geralmente classificado como ensaio, o livro é o resultado da busca de Charlotte Beradt para aquela sua primeira pergunta: seria ela a única a estar tendo pesadelos terríveis nos quais as figuras e leis e terrores da ditadura nazista pareciam infiltrar-se?

Entre 1933 e 1939, a jornalista entrevistaria cerca de 300 berlinenses das mais variadas camadas da sociedade alemã, professores, funcionários públicos, estudantes, donas de casa, para compor um painel onírico sobre os efeitos de um regime de terror sobre a psique dos cidadãos de um país. Ao embarcar neste projeto, Charlotte Beradt, nascida Charlotte Aron no seio de uma família judia em 1907, correria os riscos destinados a qualquer judeu na Alemanha sob os nazistas, assim como os que corriam aqueles ocupados em ações que o regime considerava "Gräuelpropaganda", propaganda contra o regime. Trata-se do "crime" que levaria Hannah Arendt nos mesmos anos para a cadeia.

Nesse clima de terror, Charlotte Beradt teria dificuldades ainda para vencer o medo de seus entrevistados, desconfiados daquela mulher que buscava saber o que sonhavam à noite. Tudo isso torna o livro um pequeno milagre improvável. Dividido em vários capítulos nos quais Beradt agrupou sonhos que pareciam ter o mesmo fio condutor, o relato dos pesadelos vem pontuado pela erudição da ensaísta, que traça paralelos entre o que sonhavam seus entrevistados e o mundo da literatura e da religião, de Franz Kafka ao Livro de Jó.

No início do livro, porém, vem a citação que a autora faz de um oficial do Partido Nazista, Robert Ley, com sua famosa declaração de que "O único ser humano que ainda possui uma vida privada na Alemanha é aquele que está dormindo." Charlotte Beradt busca mostrar em seu ensaio que os efeitos do terror totalitário são tão poderosos na vida de um indivíduo, membro de uma comunidade aterrorizada, que até mesmo em sonhos eles podiam ser sentidos.

No entanto, o que é interessante no livro é que ela não buscava narrar apenas destinos pessoais, mas encontrar o que havia de típico nestes sonhos e o que eles diziam sobre a comunidade como um todo. Que mecanismos psicológicos estavam atuando no coração da ditadura.

Os capítulos são intitulados a partir dos sonhos. No capítulo "Das wanddlose Leben" (a vida sem paredes), um médico relata ter sonhado estar em seu apartamento quando as paredes de repente desaparecem, enquanto ele ouve por alto-falantes o anúncio de que o regime de Adolf Hitler doravante proibira por decreto todas as paredes. Muitos sonhos demonstram como indivíduos envergonhavam-se por não se insurgirem contra o que sabiam ser injustiças e crimes perpetrados pelos nazistas. Lido em retrospecto, sabendo hoje o que se sabe que viria a partir de 1939 com a Segunda Guerra e seus horrores, é impossível não ver nestes sonhos coletados entre 1933 e 1939 o que muitas culturas viam em sonhos, ou seja, seu caráter premonitório, e, neste caso, de um futuro tenebroso.

A pesquisa de Charlotte Beradt se encerra logo antes do início da Segunda Guerra porque se torna claro que a autora precisava fugir dos país, já que fazia parte de dois grupos que os nazistas odiavam e queriam eliminar: era judia e de esquerda, ligada ao KPD, o Partido Comunista Alemão.

Instalada em Nova York após fugir via Londres e onde firmaria amizade com outros exilados, como Hannah Arendt, o primeiro trabalho de Charlotte Beradt com esta coleção de pesadelos seria um ensaio em inglês, intitulado "Dreams under dictatorship" (Sonhos sob uma ditadura) e publicado ainda durante a guerra, na revista nova-iorquina Free World, em outubro de 1943. O primeiro parágrafo diz: "Eu acordei banhada em suor, meus dentes cerrados. Mais uma vez, como em outras noites passadas, eu havia sido perseguida por todos os cantos em um sonho – fuzilada, torturada, escalpelada." 

Foi com a ajuda de Hannah Arendt que o livro como se conhece hoje sairia em 1966. "Ao ler este texto pela primeira vez, ficou claro que se tratava de uma obra angustiante, que exigia certa coragem do leitor para aquelas histórias – isto porque cada sonho aparece como uma pequena trama. Já no primeiro contato com o livro constatei que o leitor brasileiro deveria sentir esta mesma aflição", disse à DW a tradutora brasileira Silvia Bittencourt sobre o seu processo de tradução do livro.

Lançado em 2017, foi nos últimos meses que o livro ganhou notoriedade, sendo muito discutido e recomendado nas redes. No ambiente político extremamente polarizado, pessoas buscam tanto acalmar quanto confirmar suas premonições, para o bem ou para o mal. "Não me surpreende que o livro tenha sido redescoberto no Brasil nos últimos tempos. A campanha eleitoral no ano passado mexeu com muita gente, acirrou emoções e provocou medo. As ameaças de Jair Bolsonaro devem dar muito medo nas pessoas que trabalham ativamente na oposição política e nos movimentos sociais", disse também Silvia Bittencourt.

O que são nossos sonhos e pesadelos? São premonições, alertas da mente sobre nossas ansiedades diárias, estratégias para lidar com nosso medo, ou apenas como as famigeradas notícias falsas que apinham as redes sociais? Neste contexto, é interessante ler o ensaio de William Zeytounlian e Fabio Zuker no jornal Nexo, "A incerteza política em 2018: uma coleção de sonhos e pesadelos", no qual os autores reúnem os pesadelos de alguns entrevistados durante as eleições presidenciais do ano passado.

É interessante que Zeytounlian e Zuker nasceram, respectivamente, nos seios das comunidades armênia e judaica de São Paulo, com suas próprias histórias familiares de fuga de genocídios. Seus entrevistados relatam também manhãs encharcadas de suor após pesadelos de perseguição e tortura. Infundados ou não, estes pesadelos mostram setores da sociedade brasileira assustados, num clima de insegurança e medo, e se pode apenas esperar que não sejam premonições. 

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