Estive alguns dias no Tampão de Darién, o estreito terrestre entre a Colômbia e o Panamá, que nos últimos anos se transformou num hotspot da migração global. Dia após dia, milhares partem para uma marcha de seis a nove dias através de uma das selvas mais perigosas do mundo.
Só em 2023, pelo menos 360 mil migrantes atravessaram o Darién, entre os quais, 60 mil crianças. Dezenas perderam a vida na travessia. São quase inimagináveis as adversidades e perigos a que se expõem. O que lá ocorre é uma catástrofe humanitária, e provavelmente o problema mais urgente da América do Sul. Mas na política brasileira, não tem a menor relevância.
Os migrantes são impelidos pelo desejo de uma vida melhor nos Estados Unidos, o american dream é real para eles. E quem lucra com a onda migratória são as Autodefesas Gaitanistas da Colômbia (AGC), um grupo paramilitar também conhecido como Clã do Golfo. Essa máfia administra o fluxo perfeitamente, construiu acampamentos, disponibiliza barcos, guias e carregadores – e cobra caro por isso: milhões de dólares estão fluindo para os cofres dos paramilitares.
A absoluta maioria dos migrantes é de venezuelanos, eu estimaria que 80%. Suas histórias são de cortar o coração. Sem exceção, falam de fome e intimidação pelo regime de Nicolás Maduro. Uma mulher de 26 anos conta como estava esquelética ao deixar o país. A frase que eu escutava sem parar era: "Na Venezuela não dá para viver!"
A própria visão de mundo na frente da realidade
Cerca de 8 milhões de venezuelanos emigraram nos últimos anos, mais ou menos 30% da população – é como se 65 milhões de brasileiros voltassem as costas ao país devido a pobreza, fome e repressão. No entanto, o ditador Maduro – que se diz socialista, mas que na realidade está à frente de uma ditadura militar corrupta – é bajulado e protegido pelo presidente brasileiro.
Luiz Inácio Lula da Silva recebeu Maduro em Brasília como amigo, afirmou que ele fora legitimamente eleito (o venezuelano venceu a última eleição presidencial através de fraude, motivo por que a União Europeia não o reconhece) e falou de "narrativas" sobre a Venezuela que não seriam verdade. Num caso raro de torpeza moral, a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, chegou a ir à posse do ditador, cujos agentes de segurança torturam e assassinam, como documentaram as Nações Unidas e a ONG Human Rights Watch (HRW).
Eu vi na Colômbia a "narrativa" de que Lula está falando. Só que não é narrativa, é a realidade, centenas de milhares de pessoas desesperadas em fuga, com o sonho de chegar aos EUA. Lula e a esquerda brasileira brasileira acreditam nas proprias mentiras. Acreditam no conto da carochinha da Venezuela socialista, por cuja miséria, mais uma vez, os EUA seriam os únicos culpados.
Mas nenhum desses esquerdistas brasileiros jamais esteve na terra de Maduro, nem conversou com emigrantes venezuelanos: a preservação da própria visão de mundo é mais importante do que a realidade. Solidariedade com a ditadura venezuelana, sim! Solidariedade com o povo venezuelano, não! Uma razão para tal pode ser que só uma pequena parcela dos milhões de refugiados venezuelanos vai para o Brasil (por exemplo, para Manaus, onde se criam novas favelas), enquanto Colômbia, Peru, Chile e Equador arcam com a maior parte da carga.
Assim em Israel-Hamas como na Ucrânia-Rússia
Lula e os esquerdistas brasileiros deveriam se despedir de suas mentiras de vida. A esquerda nacional não apoia somente Maduro, mas também o ditador fascista Vladimir Putin na agressão à Ucrânia, com que viola leis internacionais. Os graves crimes de seus soldados são silenciados, assim como o fato de que a maior parte desses homens vem das regiões pobres da Rússia, mas não de Moscou ou de São Petersburgo. É como se o Brasil entrasse em guerra, mas só se recrutassem pobres do Norte e do Nordeste.
O portal de notícias Mídia Ninja arrogantemente chama o corajoso presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, de "amiguinho dos EUA". O sentimento por trás está claro: aliados dos americanos podem ser ridicularizados, é melhor comemorar seus agressores. Porque, de repente, não se aplicam aos ucranianos aqueles mesmos elevados ideais que os membros da esquerda brasileira carregam diante de si como ostensórios, para se sentirem moralmente superiores.
O fato de a Rússia ser encabeçada por um regime homofóbico, racista, com traços fascistoides, que há cerca de 20 anos trava guerras imperiais (Tchetchênia, Geórgia, Ucrânia, Síria) não tem a menor importância para a esquerda nacional. Afinal de contas, quem está por trás de todo o mal do mundo é a CIA mesmo.
O formato se repete quando a esquerda brasileira fala de Israel. O radical islâmico Hamas (cuja visão de um mundo melhor deve ser um pouco diferente da dos esquerdistas) é idealizado como organização pela libertação, e seu terrorismo é praticamente celebrado. A resistência palestina é legítima, mas o terrorismo, é claro, não é. Ele contradiz tudo o que deveria nos definir como seres humanos, mas, acima de tudo, não traz uma solução, apenas piora a situação do povo palestino.
Todo mundo sabe que a solução é um Estado palestino democrático, como sabem também os israelenses liberais e de esquerda, que perderam as últimas eleições mas que mostraram sua força nas semanas de manifestações em massa contra a reforma do Judiciário do premiê ultradireitista Benjamin Netanyahu. Nessas circunstâncias, o Hamas atacou Israel, fortalecendo quem, acima de tudo? Netanyahu!
O Hamas e os ultradireitistas de Israel precisam um do outro. Ambos vivem da confrontação. Quem vai perder com o terrorismo dos radicais islâmicos e a reação de Israel a ele? Mais uma vez, o povo palestino.
É igualmente verdade que todo o mundo árabe, assim como o Irã, instrumentaliza os palestinos. Com uma fração de seus petrodólares, a Arábia Saudita poderia erguer em pouco tempo uma infraestrutura funcional na Faixa de Gaza. Mas a liderança saudita não faz isso: prefere os palestinos como vítimas e pobres.
O fato de, em tal situação, grupos esquerdistas estarem conclamando a manifestações contra Israel é só mais um (Venezuela, Ucrânia) atestado de quão simplista, vulgar e, no fim das contas, desumano se tornou o pensamento de esquerda no Brasil, prisioneiro de seu próprio labirinto.
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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.
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