A "festa dos seminus" que fez Kremlin perseguir celebridades
31 de dezembro de 2023Sexo, crime, rock'n'roll e, no final, declarações de arrependimento de figuras famosas da indústria do entretenimento russa, com grande repercussão na mídia. Essa história explodiu como um foguete de Ano Novo na Rússia e agora está ocupando não apenas os tabloides, mas também os atores habituais na arena política: a Duma (Parlamento russo), o Ministério Público e o Kremlin.
Em 20 de dezembro, uma blogueira conhecida nacionalmente organiza uma festa em um clube techno de Moscou. Ela convida os grandes nomes do mundo pop russo, principalmente o ícone Filip Kirkorov, a cantora Lolita, o vencedor do Eurovision Dima Bilan, e a famosa jornalista e apresentadora Ksenija Sobtschak. De acordo com relatos da mídia, a entrada custa até um milhão de rublos, ou mais de 10 mil euros (R$ 53 mil).
Fiéis ao código de vestimenta "quase nu", os convidados comparecem usando blusas transparentes, roupa íntima minúscula ou lingeries eróticas, dependendo de sua atitude, gosto ou carteira. Um rapper chega nu, com o órgão genital coberto apenas por uma meia branca, em homenagem à banda Red Hot Chili Peppers na década de 80, como ele explicou mais tarde a um tribunal.
Nenhum comportamento particularmente indecente é detectado nas fotos e vídeos tornados públicos. A festa parece ter sido uma espécie de mistura de carnaval e Halloween, e provavelmente não mereceria uma linha em um tabloide nos países ocidentais.
Os convidados posam de forma exuberante para fotos e vídeos, e a festa parece ter sido um sucesso. Até que essas fotos e vídeos acabam nas mãos de pessoas para quem a ostentação seminua foi longe demais. Vários ativistas pró-governo e, depois, associações reclamam à polícia e ao Ministério Público sobre o comportamento supostamente imoral no centro da capital russa.
Eles pedem que investiguem suposta "propaganda gay" e "propaganda de drogas". A festa ocorre em um momento que o país está realizando a operação militar especial (como a guerra contra Ucrânia é oficialmente chamada na Rússia) e defendendo os valores tradicionais, reclamam os vigilantes da moralidade, destacando que o rei do pop Kirkorov "dançou usando roupa arrastão adornada com brilhantes e calças justas".
"Propaganda gay" contra a moral russa
Ao mesmo tempo, um deputado da Duma pede às autoridades competentes que verifiquem se o evento está de acordo com a "proibição da propaganda LGBT" e com o decreto do presidente russo sobre a preservação e o fortalecimento dos "valores espirituais e morais tradicionais da Rússia".
A história ganha força quando as estrelas do pop inicialmente reagem com zombaria nas mídias sociais. Mas, em seguida, aparece um vídeo em que o cantor Kirkorov tenta justificar sua participação na festa em uma conversa privada com o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, durante outro evento.
A história atinge seu clímax temporário quando o rapper com a meia no pênis é preso e condenado a 15 dias de prisão e multa por um tribunal de Moscou. As acusações: hooliganismo e "propaganda gay". As autoridades ameaçaram a organizadora com uma extensa investigação fiscal e, por fim, a condenam a pagar uma multa de 100 mil rublos, o equivalente a mais de mil euros (R$ 5,3 mil).
Estrelas demonstram arrependimento
E então acontece algo que ninguém esperava, um ponto de virada, por assim dizer, em termos de dramaturgia clássica. As estrelas, que na véspera ainda estavam rindo e zombando, publicam quase simultaneamente vídeos de arrependimento nos quais afirmam que não sabiam nada sobre a "verdadeira natureza" da festa, e que nunca haviam esperado ou pensado no que "realmente aconteceria" lá.
O ícone pop Kirkorov, cuja popularidade na Rússia pode ser comparada à de Madonna no Ocidente, acrescenta que os artistas devem ser "mais cuidadosos" ao escolher eventos "neste momento difícil, um momento de heroísmo": "Sou apenas um artista do meu país. Sou apenas um patriota de meu país. Nunca tentei me sentar em duas cadeiras, nunca abandonei ou traí nada. Amo apenas meus espectadores e ouvintes. Reconheço o erro que cometi."
Mas isso vem tarde demais. Os organizadores já começaram a cancelar os shows das estrelas arrependidas. As emissoras de TV também anunciaram que cortariam os números musicais com elas nos shows de Ano Novo. Até mesmo um filme de comédia, programado para estrear pouco antes da véspera de Ano Novo, está sendo refilmado. Milhões de pessoas acompanham uma perseguição sem precedentes às pessoas que demonstraram sua lealdade ao Kremlin e seu apoio às suas políticas ao seguirem na Rússia.
Reação inesperadamente dura do Kremlin
Para o crítico musical russo Artemi Troitsky, que mora no exterior, a história toda é uma medida da "degradação totalitária da Rússia de Putin". Em sua opinião, as pessoas não esperavam uma reação tão dura das autoridades e, portanto, ficaram chocadas. Em uma entrevista à DW, Troitsky analisa: "As pessoas pensavam que o Kremlin estava apenas travando uma guerra contra os ativistas políticos que participavam dos protestos contra a guerra, mas, na realidade, estão acontecendo coisas que seriam atípicas para este país há apenas um ano".
Isso significa que a Rússia é um Estado que exige controle total. Questionado se a acusação feita por ativistas pró-Kremlin de que eles estavam fazendo festas exuberantes em tempos de guerra seria justificada, Troitsky responde: "A guerra em si é injustificada. No que diz respeito à reação a ela, você pode julgá-la de forma diferente. É claro que essas festas são como dançar à beira do vulcão. Muitos, tanto os que apóiam a guerra quanto os que a criticam, desprezam essas festas."
De acordo com Troitsky, o setor pop russo como um todo não está em um bom momento: "Quase todos os músicos talentosos já deixaram a Rússia. O que resta são alguns resistentes corajosos ou conformistas flexíveis que apoiam os que estão no poder e, assim, garantem sua prosperidade e segurança." A cultura russa moderna se desenvolverá nos moldes da Coreia do Norte, resume o especialista em música: "No futuro, apenas marchas militares serão ouvidas lá."
Para o cientista político russo Dmitry Oreshkin, que também vive no exílio, está claro que a perseguição às estrelas pop foi uma campanha coordenada. Falando à DW, ele supõe que: "Se eles não entendessem que a ordem veio do topo, não demonstrariam seu remorso em um coro eficaz para a mídia."
Guerra tornou-se parte da vida cotidiana
Oreshkin vê uma mudança de paradigma na ideologia russa. No passado, a política do Kremlin tinha como objetivo manter a guerra longe das massas, "de acordo com o lema: nossas vidas continuam, ninguém precisa sofrer, está tudo bem e celebramos nossas festas. As lojas estão cheias, as sanções estão sendo combatidas com sucesso, a economia está crescendo, todos estão dançando e cantando".
Aparentemente, as elites pop festeiras não perceberam que as coisas haviam mudado nesse meio tempo. "Nada está como antes. O país inteiro precisa prescindir de coisas importantes, o país inteiro está em guerra" e não é aceitável que alguns "mostrem suas nádegas nuas". A mensagem é clara: a guerra não está mais sendo travada em algum lugar da periferia, mas chegou à vida cotidiana. Qualquer pessoa que não tenha entendido antes deve perceber isso agora.
Oreshkin também suspeita que a festa em Moscou é uma oportunidade perfeita para a propaganda russa desviar a atenção dos problemas atuais, principalmente o ataque aéreo das forças armadas ucranianas a um navio de guerra russo na península da Crimeia, anexada pela Rússia. Além disso, a propaganda precisa de um inimigo comum, um bode expiatório, para consolidar as pessoas em tempos difíceis, de acordo com o lema populista: "Vamos punir essas elites decadentes, assim as pessoas comuns também ficarão melhor".
É incerto se as pessoas ficarão felizes em ter que passar a véspera de Ano Novo sem suas estrelas pop favoritas. Também não está claro se a história sobre uma "festa quase nua" em um clube de Moscou realmente acabou após o arrependendimento público de seus participantes famosos. Mas é certamente um triunfo para os guardiões da moral russa e um exemplo.