Presidente americano diz que enviará mais tropas, contrariando promessas de campanha. Para analistas, ele quer "paternidade" da guerra, mas empurrará responsabilidade a seus generais em caso de fracasso.
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O discurso do presidente Donald Trump sobre o Afeganistão marcou uma guinada na forma de ele tratar – ao menos publicamente – o conflito, no qual os Estados Unidos estão metidos, sem saída aparente, há mais de 15 anos.
No início da fala, disse que geralmente confia em seus instintos e que seu instinto sobre o Afeganistão aponta para a saída da guerra. Mas então ele apelou para a credibilidade, dizendo que, uma vez que se tornou presidente e estudou as questões com mais cuidado juntamente com os generais, começou a pensar de forma diferente.
"Geralmente, nós confiamos em quem acreditamos ter conhecimento e ter boas intenções – Trump apelou para ambos", afirma Jennifer Mercieca, uma estudiosa de retórica presidencial da Universidade Texas A & M.
No passado, Trump criticava repetidamente o esforço de guerra dos EUA no Afeganistão. Ele pedia o fim do envolvimento americano no conflito e que Washington se concentrasse em reconstruir a própria casa.
Agora, não apenas ao reverter sua decisão de se retirar do país, mas ao determinar um aumento não especificado de tropas para tentar pacificá-lo, ele coloca sua marca pessoal no conflito. Atualmente, existem mais de 8 mil soldados dos EUA estacionados no Afeganistão.
"Para uma fala política importante, o discurso foi dolorosamente magro em quaisquer detalhes reais sobre a estratégia americana ou objetivos finais no Afeganistão", analisa Jason Lyall, cientista político especializado em Afeganistão da Universidade de Yale. "Não percebemos critérios claros para o 'sucesso', nem um sentido do que é novo nesta abordagem que não tenha sido tentado antes. A esse respeito, acho que o discurso foi bastante pobre."
Enquanto as afirmações de Trump ficaram devendo medidas ou números tangíveis, como níveis de aumento das tropas, ele apimentou seu discurso com uma retórica afiada, dizendo que os EUA agora "lutarão para vencer" e chamando os terroristas de "bandidos" e "perdedores".
Para Mercieca, o discurso de Trump soou às vezes quase como uma fala de Barack Obama – com uma diferença fundamental: "Ele disse que os EUA não vão mais ditar condições para a ajuda que prestam e, essencialmente, anunciou o fim da Doutrina Wilson, segundo a qual devemos nos envolver em guerras para ajudar a disseminar a democracia e o capitalismo."
Maior papel para Paquistão e Índia
A estratégia do Afeganistão prevê um papel ampliado para Paquistão e Índia. Mas enquanto o presidente simplesmente pediu à Índia para prestar assistência econômica, o Paquistão recebeu tratamento muito mais severo. Trump chamou o Paquistão de um parceiro dos EUA, mas também acusou o país de abrigar pessoas que querem matar americanos e disse que isso deve parar imediatamente – ou, segundo ele, os EUA terão que agir militarmente.
Mas as observações de Trump novamente foram pobres em detalhes sobre o que isso significará na prática para os dois países.
"Não houve menção aos papéis crescentes desempenhados pela Rússia e pelo Irã no Afeganistão e, em particular, no apoio aos talibãs", observa o cientista político Jason Lyall, da Universidade de Yale. "A guerra mudou consideravelmente nos últimos anos, expandiu-se geograficamente, envolvendo outras potências além do Paquistão. Não acho que o discurso tenha refletido essa nova realidade."
"Paternidade" da guerra
Para Mercieca, abertura do discurso fez afirmações semelhantes sobre soldados americanos às de Lincoln em Gettysburg: ele apelou para valores nacionais, como democracia e liberdade, e pediu aos americanos que amem e confiem uns nos outros – apelando para valores nacionais transcendentes.
"Ele precisava fazer isso, ele deveria ter feito isso na semana passada", observou, em referência aos protestos e à violência de extrema direita em Charlottesville.
Mercieca não acredita, porém, que isso faça com que os americanos apoiem mais a guerra no Afeganistão. "Ele fez um bom trabalho para salvar sua própria pele, expondo o porquê de estar perseguindo a guerra, apesar de tudo que havia dito anteriormente sobre o assunto", diz a especialista da Universidade Texas A & M.
Antes do discurso, muito se falou sobre se Trump, depois de anunciar uma nova estratégia para o Afeganistão, reivindicaria para si a "paternidade” dos esforços de guerra.
"Como presidente dos EUA, Trump sempre foi 'dono' do esforço de guerra no Afeganistão, queira ou não. Este discurso faz com que Trump seja o responsável pela decisão específica de aumentar esse esforço de guerra, caso seja mesmo isso que ele fará", comenta Mercieca.
Com o seu discurso sobre o Afeganistão, o presidente quer ter seu bolo e comê-lo também, opina, por sua vez, Lyall. "Por um lado, está claro que ele está seguindo o conselho de seus generais, e assim pode lavar as mãos, caso esse esforço falhe", afirma.
"Por outro lado, ele se posicionou para colher os louros, no improvável caso de essa estratégia realmente melhorar a situação no Afeganistão", diz o cientista político da Universidade de Yale. "Trump quer a paternidade da guerra, mas só se ele a ganhar. Se não, seus generais serão donos da derrota."
A intervenção dos EUA no Afeganistão
Há 20 anos, após o 11 de Setembro, os EUA enviavam seus primeiros soldados ao país. Reveja os principais acontecimentos desde então: da operação Liberdade Duradoura à retomada do país pelos fundamentalistas do Talibã.
Foto: Evan Vucci/AP Photo/picture alliance
Operação Liberdade Duradoura
Em outubro de 2001, menos de um mês após aos ataques de 11 de Setembro, o presidente George W. Bush lança no Afeganistão a operação Liberdade Duradoura, depois que o regime Talibã se recusa a entregar Osama bin Laden. Em semanas, os americanos derrubam o Talibã, que ocupava o poder desde 1996. Cerca de mil soldados são enviados ao país em novembro, aumentando para 10 mil um ano depois.
Foto: picture-alliance/DoD/Newscom/US Army Photo
Talibã se reagrupa
A invasão do Iraque em 2003 se torna a maior preocupação dos EUA e desvia a atenção do Afeganistão. O Talibã e outros grupos islamistas se reagrupam em seus redutos no sul e leste do Afeganistão. Em 2008, Bush concorda em enviar soldados adicionais ao país em meio a pedidos por uma estratégia efetiva contra o Talibã. Em meados de 2008, há 48.500 soldados americanos no país.
Foto: picture alliance/Photoshot
Obama é eleito
Em sua campanha, Barack Obama promete encerrar as guerras no Iraque e no Afeganistão. Mas nos primeiros meses de sua presidência, em 2009, há um aumento no número de soldados no Afeganistão para cerca de 68 mil. Em dezembro, o número cresce ainda mais, para 100 mil, com o objetivo de conter o Talibã e fortalecer instituições afegãs.
Foto: AP
Morte de Bin Laden
Osama bin Laden, líder da Al Qaeda que esteve por trás dos ataques de 11 de Setembro, é morto em maio de 2011 em seu esconderijo, durante uma operação de forças especiais americanas no Paquistão.
Foto: picture-alliance/dpa
Acordo com Afeganistão
O Afeganistão assina em setembro de 2014 um acordo bilateral de segurança com os EUA e texto similar com a Otan: 12.500 soldados estrangeiros, dos quais 9.800 norte-americanos, permaneceriam no país em 2015. Mas a situação de segurança piora. Em meio à ressurgência do Talibã, Obama diminui a velocidade de retirada em 2016, afirmando que 8.400 soldados permaneceriam no Afeganistão.
Foto: Reuters
Bombardeio de hospital em Kunduz
Em outubro de 2015, no auge do combate entre insurgentes islâmicos e o Exército afegão, apoiado por forças da Otan, um ataque aéreo dos EUA atinge um hospital dirigido pela organização Médicos Sem Fronteiras na província de Kunduz. O ataque deixa 42 mortos, inclusive 24 pacientes e 14 membros da ONG.
Foto: Getty Images/AFP
"Mãe de todas as bombas"
Em abril de 2017, forças americanas atingem posições do "Estado Islâmico" (EI) no Afeganistão com a maior bomba não nuclear já usada pelo país em combate, matando 96 jihadistas. Em julho, é morto o novo líder do EI no país.
Foto: Reuters/U.S. Department of Defense
"Estamos diante de um impasse"
Em fevereiro de 2017, um relatório do governo dos EUA mostra que as perdas entre as forças de segurança afegãs subiram 35% em 2016 em relação ao ano anterior. Pouco depois, o general americano à frente das forças da Otan, John Nicholson (esq., ao lado do secretário da Defesa John Mattis), alerta que precisa de mais milhares de soldados: “Acredito que estamos diante de um impasse."
Foto: Reuters/J. Ernst
Trump anuncia nova estratégia
Em 21 de agosto de 2017, o presidente Donald Trump anuncia nova estratégia para o Afeganistão, fazendo da caça a terroristas a principal prioridade. Trump não especifica um aumento do número de soldados como esperado, mas diz que os objetivos incluem "obliterar" o Estado Islâmico, "esmagar" a Al Qaeda e impedir o Talibã de dominar o Afeganistão.
Foto: picture-alliance/Pool via CNP/MediaPunch/M. Wilson
EUA negociam com rebeldes
Em julho de 2018, sob o governo do presidente Donald Trump, os EUA entram em negociação com o Talibã, sem envolver o governo afegão eleito ou os parceiros da Otan.
Foto: picture-alliance/dpa/AP Photo/Qatar Ministry of Foreign Affairs
Trump cancela encontro com Talibã
Em setembro de 2019, o presidente Trump cancela na última hora uma reunião marcada em sigilo com líderes do Talibã e do Afeganistão, após o grupo islamista assumir a autoria de um ataque em Cabul que matou um soldado americano e outras 11 pessoas.
Foto: Getty Images/M. Wilson
EUA e Talibã assinam acordo de paz
Em fevereiro de 2020, sob o regime Trump, os governos dos EUA e do Afeganistão anunciam a retirada completa das tropas americanas e de outros países da Otan. O pacto assinado pelo negociador especial dos EUA para a paz, Zalmay Khalilzad, e pelo líder político talibã mulá Abdul Ghani Baradar, prevê que o número de militares estrangeiros seria reduzido gradualmente, ao longo de 14 meses.
Foto: AFP/G. Cacace
Biden anuncia retirada total das tropas
Em 14 de abril de 2021, o presidente Joe Biden comunica à população americana que a guerra mais longa do país terá fim, com as tropas dos EUA e da Otan se retirando inteiramente do Afeganistão até 11 de setembro, 20º aniversário dos ataques terroristas em Nova York.
Foto: Andrew Harnik/AFP/Getty Images
EUA e Otan iniciam retirada
EUA e Otan iniciam formalmente, em 1º de maio de 2021, a retirada de todas as suas tropas do Afeganistão. A previsão era retirar até 11 de setembro entre 2.500 e 3.500 soldados americanos e cerca de outros 7 mil soldados da Otan. Estima-se que os EUA tenham gasto mais de 2 trilhões de dólares no país, em 20 anos, de acordo com o projeto Costs of War da Universidade Brown.
Foto: Michael Kappeler/dpa/picture alliance
Americanos entregam base ao governo afegão
Em 2 de julho de 2021, tropas dos EUA partem da base aérea de Bagram, ponto focal da guerra, e entregam o local ao governo afegão. Permanecem no país asiático alguns poucos soldados, numa pequena base na capital Cabul.
Foto: Rahmat Gul/AP/picture alliance
Talibã toma capitais regionais
Aproveitando o vácuo deixado pela retirada das tropas de paz internacionais do Afeganistão, guerrilheiros do Talibã tomam, no inicio de agosto de 2021, capitais regionais como Sheberghan, Kunduz e Zaranj, num duro golpe para o governo afegão, que lutava para defender as cidades mais importantes da ofensiva do grupo extremista.
Foto: Abdullah Sahil/AP Photo/picture alliance
EUA retiram seus cidadãos do Afeganistão
Em meados de agosto, Estados Unidos e outros países começam a retirar seus cidadãos do Afeganistão, enquanto forças militares americanas se esforçam para proteger e manter funcionando o aeroporto de Cabul. Com todos os voos comerciais cancelados, milhares de afegãos invadem a pista do aeroporto desesperados, tentando embarcar em qualquer aeronave que fosse decolar.
Foto: Wakil Kohsar/AFP
Talibã ocupa palácio presidencial
O Talibã toma a capital Cabul, em 15 de agosto de 2021, dissolvendo o governo e estendendo seu controle sobre todo o Afeganistão. A capital era um dos últimos redutos ainda sob a autoridade do presidente Ashraf Ghani. Assim como ocorreu com dezenas de outras cidades, ele é tomada sem resistência efetiva das tropas governamentais. Ghani foge do país.
Foto: Zabi Karim/AP/picture alliance
Biden defende retirada das tropas
Um dia depois da tomada de Cabul, o presidente dos EUA, Joe Biden, defende a decisão de pôr fim à presença americana no Afeganistão e condena líderes e políticos afegãos que abandonaram o país, abrindo caminho para a tomada de poder pelo Talibã. Biden culpa ainda o ex-presidente Donald Trump, por ter fortalecido o grupo rebeldes e deixado os talibãs em sua melhor situação militar desde 2001.