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A lição do estudo que liga até 17 mil mortes à cloroquina

Sushmitha Ramakrishnan
11 de janeiro de 2024

Em meio ao pânico da primeira onda de covid-19, drogas existentes foram remanejadas como tratamento. A mais polêmica – promovida por Trump e Bolsonaro, entre outros líderes – pode ter sido não só ineficaz, mas letal.

Frasco de hidroxicloroquina
De esperança de uma saída fácil para a pandemia, hidroxicloroquina se transformou em objeto de polêmica e apreensãoFoto: David J. Phillip/AP Photo/picture-alliance

Durante a primeira onda global de covid-19, o medicamento antimalária hidroxicloroquina ganhou breve notoriedade como droga "milagrosa" e "elemento decisivo" no combate à pandemia. Mas um estudo atual sugere que ela pode estar relacionada a um aumento da taxa de mortalidade em até 11%, equivalente a até 17 mil mortes.

Os autores do artigo publicado pela revista de acesso livre Biomedicine & Pharmacotherapy advertem: "Embora nossas estimativas sejam limitadas por sua imprecisão, estas conclusões ilustram o risco de remanejar medicamentos com base em indícios de baixo nível." Ou seja: é preciso buscar provas, mesmo em situações de pânico.

Segundo Soumya Swaminathan, cientista-chefe da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019 a 2022, em geral o uso da hidroxicloroquina era seguro, mesmo no longo prazo. Por isso foi considerada em tão ampla escala como tratamento para a covid.

"No entanto os testes da OMS não indicaram progressos clínicos, por isso desaconselhamos o seu uso durante a pandemia. À época, não observamos nenhuma conexão com um aumento de mortalidade, porque o nosso volume de amostras era pequeno. É preciso muitos dados para esse tipo de estudos", confirma a atual presidente da MS Swaminathan Research Foundation.

Índia apostou em cheio na HCQ, multiplicando a produção do remédio antimaláriaFoto: Sajjad Hussain/AFP/Getty Images

Esperança cega desiludida

"O que a gente tem a perder? Tomem", incentivou na época o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump, saudando a substância como "cura milagrosa". Diversos líderes mundiais seguiram o exemplo – inclusive seu homólogo brasileiro Jair Bolsonaro –, catapultando as vendas globais de hidroxicloroquina, que milhões estocaram para uso pessoal. Alguns países aconselharam os funcionários da saúde na linha de frente a tomá-la diariamente como medida preventiva.

"A HCQ é basicamente um remédio antimalária que também reduz a reação imunitária, em especial quando é exagerada. Por isso ela foi administrada nos casos iniciais de covid-19, para reprimir a tempestade de citocina", explica o especialista em saúde pública Subarna Goswami. Em seu país, a Índia, o medicamento foi distribuído oficialmente aos sanitaristas para fins profiláticos.

A esperança cega implodiu pouco depois, quando o departamento americano de saúde FDA advertiu contra a hidroxicloroquina, e a OMS suspendeu o tratamento anticovid com ela, alegando ausência de resultados positivos. Desde então, a comunidade científica tem tentado determinar se o medicamento era simplesmente ineficaz contra o coronavírus ou letal.

Hidroxicloroquina: letal ou só ineficaz?

Durante a pandemia, em diversas análises os consumidores de hidroxicloroquina queixaram-se reiteradamente de desconforto cardíaco ou outros efeitos colaterais digestivos. No entanto o tamanho relativamente pequeno das amostras dificultava identificar a origem exata dos sintomas.

Em 2020, uma pesquisa com 96 mil pacientes detectou inicialmente maior tendência a arritmias cardíacas entre os tratados com o medicamento antimalária. Sua publicação na revista especializada The Lancet resultou na suspensão dos testes globais com a substância para o tratamento da covid. No entanto o estudo foi logo retratado devido a inconsistências nos dados.

Estudo publica pelo 'The Lancet' em 2020 foi rapidamente desmentido por falhas metodológicasFoto: Richard James Mendoza/NurPhoto/picture alliance

Agora, o artigo publicado na edição de janeiro-fevereiro de 2024 da Biomedicine & Pharmacotherapy associa a hidroxicloroquina a 17 mil mortes. Trata-se de uma resenha sistemática de análises realizadas na Bélgica, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Turquia.

Por ser a síntese de várias pesquisas, essa forma de estudo científico costuma ser considerada mais confiável, proporcionando a vantagem dos grandes números. Por outro lado, também implica a fusão de dados de pesquisas empregando metodologias variadas, por vezes conflitantes.

Lars Hemkens, cujo estudo de 2021 foi uma das fontes dos dados da resenha, confirmou ser possível chegar-se a resultados díspares, dependendo da metodologia empregada. "A história da medicina está cheia de exemplos de tratamentos aplicados com as melhores intenções, que eram promissores nos estudos observacionais. Mas, ao serem avaliados em testes aleatorizados, um quadro diferente emergiu."

Além disso, não é possível coletar indícios a posteriori, de pacientes agora mortos. "Há toda a possibilidade de um ou mais fatores de confusão imprevisíveis terem contribuído para a taxa de mortalidade excessiva entre os que tomaram HCQ", estima o especialista indiano Goswami, comentando a resenha de 2024.

Da malária ao tratamento de doenças anti-imunes

A hidroxicloroquina é usada contra a malária há décadas. Geralmente ingerida por períodos breves, ela reduz dores e inflamação. Nos últimos anos, porém, tem sido usada em primeira linha no tratamento de doenças autoimunes, como o lúpus, onde suas propriedades anti-inflamatórias reduzem a necessidade de altas doses de outros medicamentos.

Tipicamente, os pacientes tomam pequenas doses de hidroxicloroquina por prazos longos, com frequência pelo resto da vida. A maioria não nota efeitos colaterais, mas, após ministração prolongada, também se registram dores estomacais, problemas digestivos, como náusea ou diarreia, e pele seca ou danos à vista.

A substância é considerada segura para quem apresenta reação imunitária elevada, mas "ministrada preventivamente para um grande número de indivíduos saudáveis, o risco e os efeitos podem ser diferentes", ressalva Soumya Swaminathan.

O sistema de saúde nunca vira nada como a pandemia de covid-19, mas é provável que enfrente situações análogas no futuro, ressalta: "A maior lição para nós é aprimorar nossa prontidão para pesquisas. Quando a necessidade desponta, devemos estar aptas a submeter alguns remédios a testes humanos expressos, sem um entrave acadêmico."

A ex-diretora científica da OMS enfatizou que é função dos sistemas sanitários procurar abordagens baseadas em indícios concretos, mesmo durante o pânico, e cultivar um ambiente de pesquisas robusto, capaz de fornecer resultados rápidos.

 

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