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A luta para manter uma língua indígena viva

André de Oliveira do Xingu
12 de junho de 2019

Natural do Xingu, o linguista Tapi Yawalapiti tenta evitar que o idioma de seu povo desapareça. Com a ajuda da memória dos mais velhos, ele está criando uma gramática e um dicionário para a língua.

Tapi Yawalapiti ao lado do pai, o cacique Aritana Yawalapiti
Tapi Yawalapiti ao lado do pai, o cacique Aritana YawalapitiFoto: Julia Kuk

Pela manhã, o cacique Aritana Yawalapiti observa a aldeia encostado na entrada da oca de sua família. À sua frente, há uma imensa arena circular de terra batida circundada por cerca de uma dúzia de outras ocas comunais com mais de vinte metros de pé direito. Mais adiante, onde a vista não alcança, fica o encontro dos rios Tuatuari e Culuene, formadores do Xingu. Aritana, de 74 anos, recepciona os visitantes caraíbas, os brancos, falando em português, mas, dependendo do interlocutor, poderia usar qualquer uma das outras cinco línguas que domina – todas indígenas.

Apesar de poliglota, Aritana, uma das principais lideranças do Parque Indígena do Xingu (PIX), tem encontrado – e não é de hoje – uma mesma dificuldade: comunicar-se em sua própria língua, o yawalapiti, mesmo nome da etnia à qual pertence. Ele aponta para o centro da arena circular, referência sagrada das cerca de 200 pessoas que vivem ali, e explica: "É só quando a gente se reúne lá fora com os mais velhos que falamos o yawalapiti." O cacique é, ao lado de pouco mais de seis anciões, um dos últimos falantes do idioma materno.

Alto e forte, mas com os ombros já um pouco curvados, Aritana tem um semblante sério, realçado pelo rosto vincado, que lhe dá um ar de quem já viu demais. Sentado num banco de madeira, na penumbra da oca, conta que ali mesmo, dentro de sua casa, há uma profusão de línguas. Tem gente falando kalapalo, kuikuro, kamaiurá e português. Só não há quem fale o tal do yawalapiti.

"É que quando Orlando [Villas-Bôas] chegou aqui, não existia mais aldeia yawalapiti, porque, como os antigos contavam, uma doença tinha matado quase todo mundo", diz. A língua já estava ameaçada de extinção antes de 1961, quando a reserva, idealizada pelos irmãos Villas-Bôas, foi demarcada.

Naquela época, para resgatar a etnia foi preciso promover casamentos com outros dos 16 povos que formam hoje o Xingu. Os yawalapiti se uniram, principalmente, aos kuikuro e aos kamaiurá, grupos com aldeias localizadas na mesma área geográfica e cultural do PIX – o alto Xingu. Contudo, como é a língua da mãe que costuma ser passada aos filhos, a etnia foi vendo seu próprio idioma, um diferenciador cultural fundamental por ali, cada vez mais ameaçado de desaparecer.

A situação não é exceção. Em 2019, Ano Internacional das Línguas Indígenas, a Unesco, aponta que, das cerca de 200 línguas faladas no Brasil, 190 correm perigo de extinção iminente.

É só nesse ponto da conversa, depois do cacique, mãos cruzadas no colo, ter terminado, que seu filho Tapi Yawalapiti, endireitando-se em sua rede, amarrada às colunas da oca, anima-se a falar. Aos 38 anos, alto e esguio, retrato do pai quando jovem, ele também conhece muito bem as palavras. Afinal, seu trabalho consiste em categorizar, grafar e traduzir.

Tapi é linguista. Há um ano, faz um mestrado na Universidade de Brasília (UNB). Sua dissertação analisa aspectos gramaticais do yawalapiti: o que é uma oração, os predicados, classes de palavras. Segundo ele resume, como se fosse um trabalho trivial, a pesquisa consiste em criar gramática e dicionário próprios da língua.

Em Brasília, Tapi ocupa uma escrivaninha na sala do Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas (Lali) da UnB, em que dezenas de cadeiras e um punhado de mesas dividem espaço com arquivos de ferro, mapas na parede, livros e artesanato indígena de todo o país.

"Quando está aqui, ele trabalha dia e noite com uma seriedade única", conta Ana Suelly Cabral, orientadora dele e de outros 17 alunos de diferentes etnias, que já se formaram doutores e mestres ou, como Tapi, ainda estão estudando. Faz alguns anos, a professora desenvolveu um programa especial para receber pesquisadores indígenas, condensando as aulas em períodos de dois meses por semestre para que eles não fiquem muito tempo fora das aldeias e consigam se sustentar entre dormitório, bandejão e estudo –  tudo dentro da UNB, tudo pago com uma bolsa de mestrado.

No trabalho de Tapi há desafios distintos, mas estar na aldeia é fundamental para resolvê-los. Ele precisa explorar a memória dos anciões falantes de yawalapiti para resgatar termos que eles próprios não usam há muitos anos. Esse trabalho, já consome grande parte do tempo de pesquisa em campo. E há também uma necessidade comum a todas as línguas: nomear aquilo que nunca existiu no mundo indígena até que os caraíbas aparecessem.

"Seu óculos, por exemplo. O jeito de descrever esse objeto é falar: 'nurita iná', ou 'roupa dos olhos'. E para roupa nós dizemos algo como 'casca do corpo'”, conta antes de repetir a última sentença da frase – "casca do corpo" – num cacoete próprio seu, como se quisesse se certificar de que se fez entender.

"A língua é o que amarra todas as especificidades de um povo, por isso a pesquisa dele é tão fundamental", diz a professora de Tapi. Em yawalapiti, por exemplo, há classificadores nominais não apenas para masculino e feminino, mas também para textura, forma, posição, odor. As coisas não são apenas coisas, elas têm especificidades que só podem ser expressas na língua indígena – um reflexo do mundo em que vivem e como interagem com ele.

No Xingu, apenas os povos mehinako e waurá falam línguas da mesma família do yawalapiti, a aruák. Fora da reserva, ainda há falantes de idiomas aruák nos estados da Amazônia, Acre, países vizinhos, como Venezuela, e até em ilhas do Caribe – algo que dá o que pensar sobre migrações. Quando uma língua entra em extinção, não é apenas uma visão de mundo que se perde, é a própria história da distribuição demográfica humana.

"Meu objetivo ao registrar a língua é que seja possível fazer livros didáticos para os professores indígenas trabalharem", diz Tapi.

Com as crianças aprendendo a ler e escrever na escola, ele acredita que ainda é possível resgatar o idioma. Afinal, ele próprio teve que aprender o yawalapiti do zero, já que cresceu falando outra língua. Seu trabalho é uma corrida contra o tempo.

"Um dicionário Aurélio, por exemplo, tem 70 mil itens, e eu, que sou linguista, não sei nem 3 mil", explica Cabral. Há palavras que todo mundo sabe, mas também há os léxicos especializados, as variações linguísticas, as diferenças de vocabulário de uma para outra pessoa. "Em um universo de cerca de meia dúzia de falantes fluentes, infelizmente muita coisa já está perdida."

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