Atribuição do papel da rainha a uma atriz negra gerou protestos de historiadores e até do Ministério de Antiguidades do Egito, que afirmam que Cleópatra seria grega e, portanto, branca.
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Representações contemporâneas configuram a imagem que o público faz das personagens históricas. Desde que o ganhador do OscarCleópatra estreou em 1963, Elizabeth Taylor tornou-se, para a cultura popular, a "cara" da rainha egípcia, raramente questionada.
Cleópatra 7ª (69 a.C-30 a.C.) descendia de Ptolomeu 1º Sóter, general greco-macedônio companheiro de Alexandre Magno e fundador da dinastia ptolemaica. Mas ninguém realmente sabe como ela era fisicamente, pois a origem étnica de sua mãe não está esclarecida.
Uma série documental em quatro partes da Netflix propõe uma nova imagem da regente do Reino Ptolemaico do Egito de 51 a.C. a 30 a.C.. E, antes mesmo de sua estreia, nesta quarta-feira (10/05), causou polêmica, pois seu trailer mostra que o papel-título de Rainha Cleópatra cabe a Adele James, a qual, segundo entrevista ao jornal britânico Express, se autodefine como "uma mulher birracial".
No Egito, a decisão provocou indignação oficial e até reações jurídicas. Para Mostafa Waziri, presidente do Conselho Supremo de Antiguidades, uma monarca negra não passa de uma "falsificação da história egípcia". Não se trata de racismo, frisa, mas simplesmente de "defender a história da rainha Cleópatra, que é parte importante da história do Egito na Antiguidade".
Assim como outros historiadores, o egiptólogo e ex-ministro de Antiguidades Zahi Hawass afirmou que "Cleópatra era grega, o que significa que era de pele clara, não negra". O próprio ministério se envolveu na controvérsia, publicando uma extensa declaração em que cita peritos segundo os quais ela "tinha pele branca e traços helênicos".
Por sua vez, o advogado Mahmoud al-Semary apresentou queixa ao Ministério Público, exigindo que a plataforma de streaming seja bloqueada, argumentando que apresentar a rainha como mulher negra "distorce e apaga a identidade do Egito".
"Mais para Adele James do que para Elizabeth Taylor"
Dispõe-se de alguns dados pictóricos sobre Cleópatra 7ª: ela é retratada em moedas de Alexandria, de 51 a.C., e da cidade palestina de Ascalona, de dois anos mais tarde. A Coleção de Antiguidades Clássicas de Berlim possui um busto, esculpido entre 50 a.C. e 26 a.C., muito semelhante às imagens das moedas. Os registros históricos não trazem informações sobre a cor de sua pele.
Num artigo para a revista Variety, a diretora de Rainha Cleópatra, Tina Gharavi, afirma ser provável que a regente se parecesse antes com Adele James. Afinal, sua família já vivia no Egito há três séculos quando ela nasceu. "Então, Cleópatra era negra? Não sabemos exatamente. Mas podemos ter certeza de que não era branca como Elizabeth Taylor."
Aparentemente, pele branca dá um valor especial a uma personagem, contra-ataca Gharavi, e "para alguns egípcios isso parece ser realmente importante". Ela vê a necessidade de uma discussão sobre "a supremacia branca internalizada com que Hollywood nos doutrinou".
Segundo a Netflix, designar James para o papel foi uma "decisão criativa", a ser vista como uma alusão tanto ao "secular debate sobre a etnicidade da regente", quanto à população multicultural do reino na época.
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Whitewashing invertida?
Mais de 2 mil anos após a morte de Cleópatra, as polêmicas em torno de sua figura persistem. Cientistas tentaram descobrir qual teria sido sua aparência em elaboradas reconstruções e procedimentos de medicina legal. Porém os projetos no setor cultural provocam muito mais barulho.
A perspectiva de ter Angelina Jolie no papel – numa produção cinematográfica que acabou sendo abandonada – enfrentou críticas ferozes, assim como a seleção de Gal Gadot para um filme com lançamento marcado para 2024. A atriz israelense justificou à BBC árabe: "Se você quer ser fiel aos fatos, Cleópatra era macedônia. Estávamos procurando uma atriz macedônia. Não havia."
Em ambos os casos, a acusação era da assim chamada whitewashing (literalmente "lavagem branca"), a distribuição de papéis não brancos a atores e atrizes brancos. No caso de Rainha Cleópatra, os críticos estão acusando a empresa de streaming dessa prática, mas com a etnicidade invertida.
"Não é comum se ver ou escutar histórias sobre rainhas negras", argumentou a produtora da minissérie Jada Pinkett Smith, esposa do ator Will Smith, citada pela Netflix. O acesso a mulheres historicamente significativas é difícil, mas importante, pois elas "formaram a coluna vertebral das nações africanas".
Inserção negra na história ocidental
A guerra cultural em torno da monarca ptolemaica tem uma causa profunda. Ela foi "representante e símbolo da alta cultura egípcia com sua influência sobre a Grécia e, assim, sobre a emergência da civilização ocidental", escrevia em 2013 Gesine Krüger, em seu ensaio Out of Africa? Die schwarze Kleopatra in zeitgenössischen Debatten (Saída da África? A Cleópatra negra nos debates contemporâneos).
É controverso a quem cabe esse mérito, se "a uma alta cultura ou a um 'posto avançado' da Europa no continente africano" prossegue a professora de História Moderna e Não Europeia da Universidade de Zurique.
Nos Estados Unidos, os negros têm sido representados sobretudo como objetos, primeiro da escravidão e, por fim, da libertação, mas definitivamente "como parte da história branca de emancipação e progresso". Com a referência a Cleópatra e ao Egito africano, a comunidade negra passaria "não só a ter algo a contribuir para a história americana, mas de certo modo se posiciona em seus primórdios civilizatórios".
A atual discussão causa perplexidade também pelo fato de que questões de cor da pele e "raça" não tinham qualquer significado na Antiguidade. Enquanto isso, a britânica Adele James não se deixou perturbar, comentando no Twitter: "Se você não gosta do elenco, não assista à série."
O racismo e os filmes hollywoodianos
O drama "Green Book" foi premiado com o Oscar de melhor filme de 2019. O tema da segregação racial já foi abordado por Hollywood diversas vezes no passado.
Foto: picture alliance/AP/Universal/P. Perret
Melhor filme de 2019
A história contada pelo diretor Peter Farrelly é baseada em fatos reais. Viggo Mortensen (esq.) faz o papel de um chofer de um pianista negro que viaja pelos estados do sul dos EUA, orientando-se pelo "Green Book: o Guia". A particularidade: o livro informa motoristas sobre restaurantes e hotéis que são exclusivamente para pessoas negras – um sinal claro de segregação racial.
Foto: picture alliance/AP/Universal/P. Perret
"Infiltrado na Klan"
Em 2019, o Oscar do melhor roteiro adaptado foi para um filme que também aborda a segregação racial. "Infiltrado na Klan", do diretor Spike Lee, remonta igualmente a uma história verídica. Nos anos 1970, um policial negro consegue se infiltrar na Ku Klux Klan. Desde a década de 1980, o cineasta afro-americano vem abordando o tema do racismo nos EUA.
Foto: D. Lee/F. Features
"Pantera Negra"
Um terceiro filme que aborda – no sentido mais amplo – o tema do racismo também arrebatou três Oscar este ano. "Pantera Negra", adaptação de HQ dos estúdios Marvel, apresentou pela primeira vez um super-herói negro. Os autores de quadrinhos Stan Lee e Jack Kirby criaram os personagens na década de 1960, no auge do movimento pelos direitos civis.
Foto: picture-alliance/Marvel Studios
Homens brancos julgam…
Em 1957, o filme "Doze homens e uma sentença" foi uma das primeiras obras do cinema americano a tratar do racismo. Como thriller judicial em primeira linha, a estreia cinematográfica do diretor Sidney Lumet também abordava os preconceitos dos doze jurados brancos, responsáveis pelo veredicto contra um jovem porto-riquenho no tribunal.
Foto: picture-alliance/United Archives
"No calor da noite"
Dez anos depois, foi Sidney Poitier quem abriu mais portas em Hollywood. No drama "No calor da noite", Poitier interpreta um policial do norte que tem de resolver um caso no sul dos EUA e se depara com um racismo abismal. O filme foi premiado com cinco Oscars – e coroou Poitier como primeiro superastro afro-americano do cinema do país.
Foto: picture-alliance/United Archiv/TBM
"Mississippi em chamas"
Rodado nos EUA pelo diretor britânico Alan Parker, em 1988, "Mississippi em chamas" aborda assassinatos de negros e investigações do FBI. Um crítico escreveu: "A direção sensacionalista de Parker (faz) praticamente tudo para transformar 'Mississippi em chamas' num pastiche de filme de gângster. Mesmo assim, a película rompe um tabu: põe a culpa em toda uma camada burguesa de americanos brancos."
Foto: ORION PICTURES CORPORATION
"Conduzindo Miss Daisy"
Um ano depois, o australiano Bruce Beresford trouxe às telas a história sentimental produzida em Hollywood "Conduzindo Miss Daisy". Da mesma forma que "Green Book: o Guia", este filme também foi um exemplo de como se pode lidar com o tema no cinema: de forma conciliatória e sentimental. Ele conseguiu levar quatro Oscars.
Foto: picture-alliance/Mary Evans Picture Library/Majestic Films
"Gran Torino"
Em 2008, o diretor e estrela de Hollywood Clint Eastwood surpreendeu seus fãs com o drama "Gran Torino". Nele, Eastwood interpreta um americano racista, que nutre preconceitos principalmente contra a população de origem asiática nos EUA. No decorrer do filme, o personagem interpretado por Eastwood se transforma por meio de vivências pessoais para melhor.
Foto: Imago//Unimedia Images
Mais Clint Eastwood
Um ano depois, Eastwood abordava novamente, de outra forma, o tema do racismo. No drama biográfico esportivo "Invictus", ele conta a história da seleção sul-africana de rúgbi. "Conquistando o inimigo" foi o título do livro original. Eastwood lançou um olhar sobre a África do Sul na era pós-apartheid. Morgan Freeman fez o papel de Nelson Mandela.
Foto: AP
"O mordomo da Casa Branca"
Este filme também se encaixa na tradição de filmes americanos sobre o racismo com o ímpeto esclarecedor: "O mordomo da Casa Branca" (2013), com Forest Whitaker e Oprah Winfrey nos papéis principais. Ele conta a história baseada em fatos verídicos autênticos do mordomo afro-americano Eugene Allen, que trabalhou para oito presidentes dos EUA. A película também reflete a recente história americana.
Foto: picture alliance/AP Images
"Doze anos de escravidão"
Lançado nos cinemas em 2013 e premiado com o Oscar de melhor filme um ano depois, "Doze anos de escravidão" faz um retrospecto dos primórdios da escravatura nos EUA. O filme do artista britânico Steve McQueen, que também faz sucesso como diretor de longas-metragens, encenou o drama sobre racismo com atores famosos – e convenceu a Academia de Hollywood.
Um ano depois, a diretora americana Ava DuVernay também mergulhou na história. Em "Selma", ela abordou as marchas de ativistas dos direitos dos negros e da população em geral da cidade de Selma para Montgomery, no estado do Alabama. No filme, David Oyelowo interpreta Martin Luther King, Tom Wilkinson (foto) aparece como o insensível presidente Lyndon B. Johnson.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Nishijima
"Loving: uma história de amor"
Três anos atrás, o diretor americano Jeff Nichols surpreendeu o público com o sensível drama "Loving: uma história de amor", no qual também se resgata um capítulo da história do racismo nos EUA. O filme destaca a luta de um casal que se rebela contra a lei dos casamentos mistos proibidos – conseguindo êxito em tribunal.
Foto: picture-alliance/ZUMAPRESS.com/Focus Features
"Corra"
Certamente uma das contribuições mais originais sobre o tema do racismo no cinema foi o filme "Corra" em 2017. Ao contrário de tantas produções hollywoodianas bem-intencionadas, mas muitas vezes piegas, o diretor afro-americano Jordan Peele fez um filme de gênero no qual o racismo é apresentado com elementos de terror e comédia – o resultado é uma mescla de gêneros muito original e convincente.
No mesmo ano, o diretor Barry Jenkins conquistou o Oscar de melhor filme com "Moonlight: sob a luz do luar". Em três capítulos, Jenkins conta a história de um homossexual afro-americano. Esteticamente convincente, o filme é um exemplo de obra cinematográfica formalmente interessante e que implementa seu tema embasada e diferenciadamente, dispensando melodrama e sentimentalismo.
Foto: picture alliance/AP Photo/D. Bornfriend
"Eu não sou seu negro"
Além dos muitos filmes com os quais o cinema americano tem contribuído para o assunto nas últimas décadas, houve documentários esporádicos. Em "Eu não sou seu negro" (2016), o diretor haitiano Raoul Peck baseou de forma muito convincente seu olhar retrospectivo sobre o racismo nos EUA, especialmente em textos do escritor afro-americano James Baldwin.