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Sociedade

Simone de Mello4 de abril de 2007

Intelectuais refletem sobre a gravidade de tratar a tortura como um instrumento a ser usado pelo Estado em casos excepcionais. A exceção poderá se tornar regra.

Terroristas e torturadores se movem no mesmo espaço de ilegalidadeFoto: dpa

A legitimação da tortura como instrumento aceitável em casos "excepcionais", como supostamente no combate ao terrorismo, sempre gerou polêmica na Alemanha. O ápice da discussão foi em 2004, quando as imagens das práticas de tortura norte-americanas no Iraque se propagaram por todo o mundo. Na mesma época, o processo contra o vice-diretor da polícia de Frankfurt, condenado a uma pena branda por instruir investigadores a ameaçar de violência um seqüestrador durante um interrogatório, mostrou, no entanto, que o tabu da tortura não é tão intocável como se pensava.

Desde então, o governo alemão criticou algumas vezes em voz alta a manutenção da prisão de Guantánamo pelos americanos em Cuba, mas a atitude em relação a Washington mal passou do nível da discrição diplomática. Apesar de o discurso político denunciar que o retorno declarado às práticas de tortura mina o direito internacional, parece crescer o conformismo em relação a isso.

O que a direita ainda considera de bom gosto

Slavoj ZizekFoto: picture-alliance/dpa

"Será que temos a consciência de que a última vez em que essas coisas fizeram parte do discurso público foi no fim da Idade Média?", pergunta-se o filósofo esloveno Slavoj Zizek em artigo recente publicado pelo International Herald Tribune e pelo jornal austríaco Der Standard. Por mais que esta denúncia de retrocesso pareça ter perdido de modo geral a atualidade para a mídia, pensadores, pesquisadores e artistas continuam a manter viva sua denúncia.

Desde a publicação de Folter im Rechtsstaat? (Tortura no Estado de direito?, 2004), de Jan Philipp Reemtsma, germanista e fundador do Instituto de Pesquisa Social de Hamburgo, a denúncia de diversas outras publicações vem sendo a mesma: a de que "experimentos mentais isolados em situações extremas" fazem parecer justificado o emprego de tortura por parte do Estado. Com isso, as instituições estatais estariam comprometendo o Estado de direito e a "nossa identidade". A recém-publicada compilação de ensaios Rückkehr der Folter (Retorno à tortura), organizada por Hauke Brunkhorst, tem uma tônica semelhante.

Em seu livro, Reemtsma diagnosticou que a alteração do "gosto da direita" está sendo provocado por "apelos afetivos" propagados tanto em escritos sobre teoria do Estado quanto em filmes de Hollywood. Um exemplo recente da propagação desta nova tolerância para com a violação de direitos humanos é a série norte-americana 24 horas, que mostrou seu protagonista, um agente antiterrorista, lançar mão de práticas de tortura. Na opinião pública alemã, isso foi noticiado com a crítica de que a série oferece ao regime de Bush os precedentes ficcionais para que o eleitorado possa se acostumar com a quebra real de tabu.

Limbo de terroristas e torturadores

Para além do discurso acadêmico e investigativo, a arte também torna presente na consciência coletiva a existência de Guantánamo. Numa instalação inaugurada em meados de março em Düsseldorf, o artista alemão Gregor Schneider reconstrói, dentro do museu k21, os interiores de uma ala da prisão norte-americana em Cuba.

Parte da instalação 'Tortura Branca', no k21, em DüsseldorfFoto: picture-alliance/ dpa

Trata-se de uma espécie de réplica das celas de alta segurança do acampamento V na baía de Guantánamo, cujos esboços ele encontrou na internet. Tortura branca é o nome do environment de salas sucessivas hermeticamente vedadas e isoladas do mundo exterior. Segundo as críticas, "um lugar morto", "um nada sensível", um "ambiente macabro" com peças faltando nas estruturas sanitárias, sem o número das celas, com um vazio de informação nas paredes e portas.

Esse "branco" remete não apenas à ausência de imagens sobre o que se sabe estar acontecendo nos interiores do presídio, mas também aos espaços mortos, às brechas do Estado de direito que se tornam cada vez mais transparentes. Segundo argumenta o filósofo Slavoj Zizek, não só os terroristas vivem no limbo da ilegalidade, mas também aqueles que o combatem. As autoridades americanas em contato com os prisioneiros de Guantánamo se apresentam como o poder do direito, mas operam em um vácuo não regulamentado pela ordem legal.

Responsabilidade moral alemã?

O espaço estéril sugerido por Gregor Schneider em sua instalação é uma forma de reintroduzir de forma sensorial e não verbal o incômodo que Guantánamo gera numa sociedade cuja identidade, cuja reelaboração custou tanto esforço num passado recente, está intrinsecamente vinculada à noção de Estado de direito. Na memória coletiva da Alemanha, onde o primeiro caso de tortura documentado remete a 1321 em Augsburg, a tortura dificilmente pode ser dissociada dos abusos e experimentos humanos durante o nazismo.

Para Benjamin Ferencz, jurista norte-americano que participou do Tribunal de Nurembergue, os alemães têm obrigação de se posicionar. "Cargos e títulos não podem impedir a punição", cita-o a revista Der Spiegel num relato recente sobre a ação judicial que um advogado berlinense voltou a mover, junto à Procuradoria Geral da República, contra 15 supostos responsáveis pelas práticas atrozes de tortura de militares norte-americanos no Iraque. Entre os acusados está o antigo ministro norte-americano da Defesa Donald Rumsfeld.

Nesta segunda tentativa de processar cidadãos norte-americanos na Alemanha, o advogado Wolfgang Kaleck tem chances mínimas, apesar de alegar haver mais provas agora. Para uma ação incomum como essa, o jurista se respalda na legislação de direito penal internacional que vigora desde 2002.

A lei prevê que o Judiciário alemão pode punir atos cometidos por estrangeiros no exterior, caso se trate de genocídio, crime contra a humanidade ou crime de guerra, não importa por quem tenha sido cometido. A queixa apresentada em nome de 12 pessoas – onze cidadãos iraquianos que estavam presos em Abu Ghraib e um detento de Guantánamo – foi rejeitada em novembro passado, com a justificativa o Judiciário alemão só poderia ser acionado, caso a Justiça norte-americana não fosse capaz ou não estivesse disposta a investigar a questão, "algo de que não existe nenhum indício".

Camp Delta, GuantánamoFoto: AP

Perda da identidade coletiva

Apesar de o discurso político se mover em loop, quando se trata de advertir Washington da gravidade de Guantánamo e apesar de o impacto inicial dos escândalos ter se desgastado na mídia, prosseguem no discurso teórico e artístico as denúncias de que esta pretensa exceção ameaça se tornar a regra.

"A grande vítima da 'torture-as-usual' é o resto de nós, a opinião pública informada", ressalta Zizek: "Uma valiosa parte da nossa identidade coletiva se perdeu de forma irrevogável. Nós nos encontramos em meio a um processo de corrupção moral: quem detém o poder está literalmente tentando quebrar nossa espinha ética, apagar aquilo que pertence indiscutivelmente à maior conquista da nossa civilização, ou seja, o crescimento da nossa sensibilidade moral espontânea".

E já que toda a opinião pública parece saber isso de cor, tão de cor a ponto de se resignar gradativamente ao silêncio, tanto mais relevantes são as vozes que ainda insistem numa questão tão fundamental, através de um discurso que ainda atinge as pessoas.
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