Gravação mostra que Romero Jucá, homem forte do presidente interino, sugeriu pacto para frear a Lava Jato e eleva desconfiança sobre intenções do governo em relação à operação. Ministro se licencia do cargo.
Anúncio
Onze dias após o seu início, o governo do presidente interino Michel Temer já enfrenta o primeiro grande escândalo. E o pivô é justamente um dos homens fortes do presidente interino: o ministro do Planejamento, Romero Jucá (PMDB-RR), que acabou se licenciando do cargo a partir desta terça-feira (24/05).
Diálogo revelado pelo jornal Folha de S.Paulo a partir de uma gravação sugere que o ministro, que foi um dos principais articuladores do impeachment da presidente Dilma Rousseff, viu o afastamento da petista e a ascensão de Temer como oportunidade de formação de um pacto para frear a Operação Lava Jato e salvar uma parte do establishment político brasileiro que é investigada.
A conversa de Jucá foi travada em março – antes da votação do impeachment na Câmara dos Deputados – com Sérgio Machado, ex-diretor da Transpetro que é investigado pela operação. Segundo a imprensa, a gravação foi feita pelo próprio Machado, que negocia acordo de delação premiada.
O diálogo ajudou a alimentar ainda mais a desconfiança sobre as intenções do governo Temer e do PMDB em relação à Lava Jato. Em seu discurso de posse, Temer tentou dissipar a desconfiança, afirmando que seu governo daria "toda a proteção" à Lava Jato. O próprio Jucá havia dito em abril que ninguém iria "cometer nenhuma insanidade, nenhum erro".
Protesto contra Temer tem paródia de "Carmina Burana"
01:08
Só que a montagem da equipe de governo já havia lançado dúvidas. Ao todo, nove ministros de Temer foram citados em investigações ou delações. Políticos como o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) influenciaram nomeações. Jucá, por sua vez, já era uma figura enrolada com a Justiça e representava um risco político antes mesmo da divulgação da gravação. Tramitam contra ele seis inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) – dois deles da Lava Jato.
Mesmo com esse histórico, Jucá fez valer sua influência e seu relacionamento pessoal com Temer para prevalecer na montagem do ministério. No diálogo com Machado, o ministro mostrou uma visão diferente sobre os procuradores da Lava Jato e a continuidade da operação. "(Eles querem) acabar com a classe política para ressurgir, construir uma nova casta, pura. (...) Eu acho que tem que ter um pacto", disse.
Consequências para Temer
O episódio envolvendo Jucá também ocorre em um momento delicado para Temer, que tenta aprovar reformas econômicas e garantir um bom relacionamento com o Congresso. Considerado um negociador habilidoso, Jucá recebeu o ministério com a missão de encaminhar projetos do governo para melhorar as finanças públicas e aliviar a crise.
Logo após a divulgação, Jucá afirmou que não pretendia pedir demissão. Porém, horas depois, anunciou que está se licenciando do cargo e que vai aguardar um posicionamento do Ministério Público Federal sobre as denúncias contra ele. Resta saber se Temer vai resistir à pressão ou se afastar totalmente de Jucá – isso reduziria os danos à sua imagem num momento em que o PT ainda luta para reconduzir Dilma ao poder.
Para o cientista político Ricardo Ismael, da PUC-Rio, parece inevitável que Jucá acabe sendo afastado definitivamente. "O governo tenta se apoiar em três princípios para se firmar junto à população: defender a legitimidade do impeachment, que a economia precisa ser recuperada e a continuidade da Lava Jato. A gravação compromete esse último. Para um governo que está começando, isso é muito negativo", afirma.
Para o lugar de Jucá estão sendo especulados os nomes de Moreira Franco, atual assessor de Temer, e de Eliseu Padilha, que comanda a Casa Civil, mas há dúvidas se qualquer um dos dois terá a mesma capacidade de articulação política de Jucá para encaminhar projetos ao Congresso.
Efeitos na política
Para o analista político francês Garpard Estrada, o novo episódio explicita que o "impeachment não resolveu nada". "A crise política continua. Fica claro que o problema não era só a corrupção do PT, mas o esgotamento de todo o sistema e a relação entre dinheiro e política. O Executivo de Temer é tão frágil como o de Dilma. Ele está dependente de pessoas como Jucá e precisa lidar com um Congresso fortalecido que quer enterrar a Lava Jato."
A delação de Machado é vista com apreensão em Brasília. Por mais de uma década sua posição na Transpetro contou com a bênção da cúpula do PMDB no Senado, incluindo Jucá e o ex-presidente José Sarney. Seu padrinho mais influente, no entanto, é o presidente da casa, Renan Calheiros. "É possível prever que isso vai atingir Renan", afirma Ismael. De acordo com a imprensa, existe o temor que o episódio de Jucá não seja isolado, e que outras figuras do partido também tenham sido grampeadas pelo ex-diretor.
Justiça
Tal como ocorreu com gravações anteriores envolvendo membros do governo Dilma, Jucá citou em sua conversa a possibilidade de usar um canal com ministros do STF para favorecer investigados. Mas Jucá foi mais ambicioso e disse que o pacto para frear a Lava Jato deveria incluir o STF. "Delimitava onde está", afirmou.
Para Estrada, o diálogo também mostra que existe uma sombra de desconfiança sobre o STF. "Os ministros precisam explicar tudo isso. Não é a primeira vez que algum político sugere usar ministros do STF. A Corte já enfrentou um processo de desgaste no caso envolvendo Cunha, que demorou meses para ser afastado. O processo contra Dilma poderia ter tido um desfecho diferente se eles tivessem agido antes."
Entenda a Operação Lava Jato
A Polícia Federal apura, desde 2014, um esquema bilionário de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos. Entenda a maior investigação sobre corrupção já conduzida no país.
Foto: AFP/Getty Images
O início
A Operação Lava Jato foi deflagrada pela Polícia Federal em 17 de março de 2014. Começou investigando um esquema de desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro e descobriu a existência de uma imensa rede de corrupção envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras do país e políticos. O nome vem de um posto de gasolina em Brasília, um dos alvos da PF no primeiro dia de operação.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Brandt
O esquema
Executivos da Petrobras cobravam propina de empreiteiras para, em troca, facilitar as negociações dessas empresas com a estatal. Os contratos eram superfaturados, o que permitia o desvio de verbas dos cofres públicos a lobistas e doleiros, os chamados operadores do esquema. Eles, por sua vez, eram encarregados de lavar o dinheiro e repassá-lo a uma série de políticos e funcionários públicos.
Foto: Reuters/S. Moraes
As figuras-chave
O esquema na Petrobras se concentrava em três diretorias: de abastecimento, então comandada por Paulo Roberto Costa; de serviços, sob direção de Renato Duque; e internacional, cujo diretor era Nestor Cerveró. Cada área tinha seus operadores para distribuir o dinheiro. Um deles era o doleiro Alberto Youssef (foto), que se tornou uma das figuras centrais da trama. Todos os citados foram condenados.
Foto: imago/Fotoarena
As empreiteiras
As grandes construtoras do país formaram uma espécie de cartel: decidiam entre si quem participaria de determinadas licitações da Petrobras e combinavam os preços das obras. Os executivos da estatal, por sua vez, garantiam que apenas o cartel fosse convidado para as licitações. Entre as empresas investigadas estão Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa. Vários executivos foram condenados.
Foto: Reuters/P. Whitaker
Os políticos
O núcleo político era formado por parlamentares de diferentes partidos, responsáveis pela indicação dos diretores da Petrobras que sustentavam a rede de corrupção dentro da estatal. Os políticos envolvidos recebiam propina em porcentagens que variavam de 1% a 5% do valor dos contratos, segundo os investigadores. O dinheiro foi usado, por exemplo, para financiar campanhas eleitorais.
Foto: J. Sorges
De Cunha a Dirceu...
A investigação só entrou no mundo político em 2015, quando a Lava Jato foi autorizada a apurar mais de 50 nomes, entre deputados, senadores e governadores de vários partidos. Desde então, viraram alvo de investigação políticos como os ex-parlamentares Eduardo Cunha (foto) e Delcídio do Amaral, ambos cassados, os senadores Renan Calheiros, Fernando Collor e o ex-ministro José Dirceu.
Foto: Reuters/A. Machado
... e Lula
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é réu em dez processos relacionados à Lava Jato, sendo acusado pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução da Justiça. As denúncias indicam que Lula teria recebido benefícios das empreiteiras OAS e Odebrecht, envolvendo imóveis no Guarujá e São Bernardo do Campo. Em 2018, ele foi preso e teve uma nova candidatura à Presidência barrada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Dana
As prisões
A Lava Jato quebrou tabus no Brasil ao encarcerar altos executivos de empresas e importantes figuras políticas. Entre investigados e aqueles já condenados pela Justiça, estão o executivo Marcelo Odebrecht, ex-presidente da Odebrecht; Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara; Sérgio Cabral, ex-governador do Rio; os ex-ministros José Dirceu (foto) e Antonio Palocci, entre outros.
Foto: picture-alliance/dpa/EPA/H. Alves
As delações
Os acordos de delação premiada são considerados a força-motriz da operação. Depoimentos como o de Marcelo Odebrecht (foto) chegam com potencial para impactar fortemente a investigação. O acordo funciona assim: de um lado, os delatores se comprometem a fornecer provas e contar o que sabem sobre os crimes, além de devolver os bens adquiridos ilegalmente; de outro, a Justiça reduz suas penas.
Foto: Getty Images/AFP/H. Andrey
O juiz
Responsável pela Lava Jato na 1° instância, o ex-juiz federal Sergio Moro logo ganhou notoriedade. Em manifestações, foi ovacionado pelo povo e chegou a ser chamado de "herói nacional". Mas também foi acusado de agir com parcialidade política. Em 2018, deixou o cargo e aceitou ser ministro do presidente Jair Bolsonaro, cuja candidatura foi beneficiada pela prisão de Lula no ano anterior.
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa
Expansão internacional
Se começou num posto de gasolina em Brasília, a Lava Jato ganhou proporções internacionais com o aprofundamento das investigações. Segundo dados do Ministério Público Federal levantados a pedido da DW Brasil, a investigação já conta com a cooperação de pelo menos outros 40 países (veja no gráfico acima). Além disso, 14 países, fora o Brasil, investigam práticas ilegais promovidas pela Odebrecht.
Um terremoto político
Ao longo de cinco anos, a Lava Jato influenciou o impeachment de Dilma Rousseff, enfraqueceu o governo Michel Temer e contribuiu para a derrocada de velhos caciques do PT, MDB e PSDB. Em 2018, Lula, então favorito para vencer as eleições presidenciais, foi preso e teve a candidatura barrada. As investigações também fortaleceram um discurso antissistema que beneficiou a campanha de Bolsonaro.
Foto: picture-alliance/dpa/ZUMAPRESS/C.Faga
Críticas e revelações
A Lava Jato também acumulou acusações de parcialidade e de abusos em seus métodos. Em 2019, os procuradores da força-tarefa foram duramente criticados por tentarem criar uma fundação para gerenciar uma multa bilionária da Petrobras. No mesmo ano, conversas reveladas pelo site "The Intercept" apontaram suspeita de conluio entre Moro e os procuradores na condução dos processos, o que é proibido.