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LiteraturaBrasil

A Roma da infância de Chico Buarque

André Bernardo
14 de agosto de 2024

Aos 80 anos, escritor e compositor lança livro de memórias "Bambino a Roma", em que revisita os dois anos em que morou na capital italiana, ainda garoto, entre 1953 e 1955.

Chico Buarque ainda garoto andando de bicicleta em Roma
Na Itália, Chico se tornou trilíngue: falava português, inglês e italianoFoto: Chico Buarque de Hollanda Collection/Antônio Carlos Jobim Institute

Francisco Buarque de Hollanda pulou de alegria ao descobrir que estava prestes a se mudar para um castelo, em Roma. Foi essa a conclusão a que o garoto chegou, do alto de seus oito anos, ao ler uma das cartas do pai, Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982).

Convidado para dar aula de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma, o historiador e sociólogo estava na capital italiana havia alguns meses à procura de um lugar para morar. Quando encontrou um palazzo, contou a boa nova à família. Não demorou muito para Chico e os irmãos descobrirem que palazzo em italiano quer dizer "edifício antigo". O castelo sonhado era, para desapontamento das crianças, "um prédio amarelo de quatro andares", o número 12 da Via San Marino. Não bastasse, o apartamento era "sombrio" e "gelado". "Tinham se esquecido de ligar a calefação", queixa-se o escritor em sua mais recente obra.

Bambino a Roma chegou às livrarias esta semana e é o oitavo livro de Chico Buarque. Os sete anteriores foram: Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009), O Irmão Alemão (2014), Essa Gente (2019) e nos de Chumbo e Outros Contos (2021). No mais recente, mistura ficção e realidade ao revisitar histórias da infância, vividas entre 1953 e 1955, na capital da Itália.

Estão lá, entre outros episódios, as visitas dodiplomata Vinicius de Moraes (1913-1980) à casa do amigo Sérgio, o dia em que a família Buarque de Hollanda conheceu o papa Pio 12 ("Fiquei com medo daquele velho", confidenciou ao jornalista Humberto Werneck em Tantas Palavras, de 2017) e a "incrível" bicicleta que ganhou de presente e fez questão de trazer para o Brasil. É ela, diga-se de passagem, que enfeita a capa do novo livro, o mais autobiográfico da carreira. Uma curiosidade: Vinicius começou a ensinar os primeiros acordes no violão para Miúcha (1937-2018) que, por sua vez, repassava o que aprendia para o irmão.

Obra que mescla memórias e ficção é o oitavo livro de Chico BuarqueFoto: Bob Wolfenson

Em Roma, Chico Buarque foi matriculado na Notre Dame International School, uma escola americana de formação católica. Logo, o único aluno latino da classe tornou-se trilíngue: falava português em casa, aprendia inglês no colégio e arriscava italiano na rua. As primeiras palavras que aprendeu no idioma local, a propósito, eram todas relacionadas a futebol: pallone (bola), rovesciata (rebatida), fuorigioco (impedimento). Alguns palavrões também, como và a fancullo (vá para o inferno).

Para fazer sucesso com a garotada do bairro, pregou a primeira de muitas peças: disse que sua bola de couro tinha sido um presente de Alcides Ghiggia (1926-2015), o craque uruguaio que, três anos antes, havia marcado o gol da vitória contra o Brasil na final da Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã. Naquele ano, Ghiggia tinha acabado de assinar contrato com o Roma, clube italiano que defendeu até 1961.

Bilhete profético

Se na rua o futuro torcedor do Fluminense arriscava chutes e dribles, no colégio aprendia a manejar um taco de beisebol – esporte que, em discurso de 31 de março de 2000, chamou de "bizarro".

"Meus colegas eram Sam, Jim, Joe, Jack, Dave, Bob e outros de que não me lembro agora", recorda em outro trecho do livro. "Tentei fazer que me chamassem de Frank, mas o apelido não pegou. Para a maioria deles, eu era Francesco".

Dos professores da Notre Dame, Chico não disfarça a saudade de Miss Tuttle, a quem Bambino a Roma é dedicado. Em 1954, num bilhete de despedida, a professora de literatura escreveu: "Quando o tempo passar e você estiver crescido, vou procurar contos e romances escritos por F. B. de Hollanda". Mal podia imaginar que, 70 anos depois, aquele aluno teria conquistado, entre outros prêmios literários, o Jabuti, por três vezes, e o Camões, pelo conjunto da obra.

Chico Buarque aos 10 anos de idade, em RomaFoto: Personal Archive/Reproduction Bel Pedrosa

Algumas das histórias contadas em Bambino a Roma estão em Para Seguir Minha Jornada – Chico Buarque 80 anos, da jornalista Regina Zappa. O livro-almanaque de 528 páginas começou a ganhar vida em 1999, quando a então editora do Jornal do Brasil recebeu um convite da extinta Relume Dumará para escrever um volume da coleção Perfis do Rio. Apesar de avesso a entrevistas, o biografado topou. Durante seis meses, Regina frequentou os bastidores de seus shows, assistiu às peladas de seu time, o Politheama, e caminhou ao seu lado na subida do Dois Irmãos, no Rio.

"Sempre ficou à vontade nas entrevistas", garante. A primeira versão do livro, Para Todos, foi lançada em 2000 e a segunda, rebatizada de Para Seguir Minha Jornada, onze anos depois. À nova edição, Regina acrescentou 22 capítulos, de 2011 a 2024. Em um deles, Sílvia Buarque, uma das três filhas de Chico, relata o encontro do pai com a sobrinha alemã, Kerstin, filha de seu meio-irmão, Sérgio Günther (1930-1981), e com a filha dela, Josepha. "A viagem a Berlim foi o momento mais bonito da minha vida com meu pai", declara a atriz.

Exílio voluntário

Chico Buarque voltou a Roma em janeiro de 1969. Dessa vez com a então esposa, a atriz Marieta Severo, grávida da primeira filha do casal. Era a época da ditadura militar no Brasil. 

"Arrisco dizer que a Itália é a segunda pátria do Chico", afirma o jornalista Márcio Pinheiro, autor de O Que Não Tem Censura Nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística na Ditadura Militar (L&PM), "mais até do que a França, onde há anos ele tem casa e se refugia em longas temporadas".

Durante seu autoexílio, Chico estreitou laços com o jogador Mané Garrincha (1933-1983), dividiu feijoada com o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) e, ao lado de Toquinho, abriu shows para a cantora e dançarina francesa Josephine Baker (1906-1975). "De início, Chico acreditou que poderia se manter fazendo shows em Florença, Mônaco e San Remo, mas, como não era um músico tão conhecido na Europa, logo percebeu que os convites seriam raros", observa Pinheiro.

Chico Buarque foi recebido com festa no Rio ao voltar do exílio na ItáliaFoto: National Archive/Editora Record

A amizade com "o anjo das pernas tortas", apelido dado a Garrincha por Nelson Rodrigues (1912-1980), é retratada no capítulo dedicado ao Futebol do livro Trocando em Miúdos – Seis Vezes Chico (Record), do jornalista Tom Cardoso. À época, o craque do Botafogo e da seleção brasileira morava em Roma com a mulher, a cantora Elza Soares (1930-2022). A bordo de um Fiat azul batizado de Clotilde, Chico levava Garrincha para passear. Nessas ocasiões, o cantor falava de futebol e o ex-jogador, de música. Até onde se sabe, os dois nunca jogaram juntos. Isso não impediu Chico de pregar mais uma de suas peças: conta que, numa noite inspirada, ele e Garrincha marcaram vinte gols, dez cada um, só no primeiro tempo de um amistoso qualquer. "Quase um gol a cada dois minutos", Cardoso faz as contas. Além dos carros, Chico também gosta de dar apelido aos violões: Catupiry, Nélson, Joaquim… Mas foi com Julieta que ele compôs um de seus primeiros sucessos, A Banda, de 1966. 

Em sua segunda passagem por Roma, Chico também compôs músicas e gravou disco. A maior parte das canções dos álbuns Chico Buarque na Itália, de 1969, e Per Un Pugno di Samba, de 1970, foi traduzida para o italiano pelo letrista Sérgio Bardotti (1939-2007). Em 1977, Chico traduziu para o português o musical I Musicanti, composto por Bardotti em parceria com o pianista argentino Luis Enríquez Bacalov (1933-2017). No Brasil, o musical infantil ganhou o título de Os Saltimbancos. "Curiosamente, o álbum se tornou um clássico no Brasil, mas passou em brancas nuvens na Itália", relata o pesquisador André Simões, de Chico Buarque em 80 Canções (Editora 34). 

A segunda temporada italiana de Chico Buarque durou um ano e dois meses. Em março de 1970, ele e Marieta desembarcaram no Rio, com Silvia no colo e Helena, a segunda filha do casal, na barriga. A primogênita nasceu em 28 de março de 1969 e teve como padrinho o poeta Vinicius de Moraes. Juntos, os compadres compuseram cinco músicas: Gente Humilde (1969), Desalento, Samba de Orly e Valsinha (1970) e Olha Maria, de 1971. Samba de Orly, a propósito, era para se chamar Samba de Fiumicino, mas, por razões puramente musicais, Chico Buarque trocou o nome do aeroporto de Roma pelo de Paris.

"Retornei a Roma inúmeras vezes e, ontem como hoje, amo falar e ouvir a língua italiana quase como se fosse a minha", derrete-se o cantor e compositor em um dos capítulos de Bambino a Roma.

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