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A verdade é que nazismo vende

Simone de Mello14 de agosto de 2006

Günter Grass cria suspense em torno de sua autobiografia, revelando participação até então desconhecida na tropa de elite de Hitler. Golpe editorial ou novo capítulo da elaboração do passado nazista na Alemanha?

Grass arrisca prestígio como porta-voz político, mas sua autobiografia promete virar 'best-seller'Foto: AP

Cada vez mais, o mercado editorial é movido a modas literárias... e a polêmicas. Pelo menos na Alemanha, um país dado a controvérsias públicas. Desta vez, o escândalo parte inesperadamente do Nobel de Literatura Günter Grass, um escritor que já não surpreende há muito tempo, seja em inovação literária, seja no teor de suas intervenções políticas como partidário social-democrata.

A surpresa demorou, mas chegou com ímpeto. Em entrevista ao diário Frankfurter Allgemeine Zeitung, Grass se pronunciou sobre uma questão crucial de sua autobiografia (Beim Häuten der Zwiebel, Descascando a cebola), a ser lançada em setembro próximo: seu envolvimento com o nazismo.

Entusiasmo pelo militarismo nazista

O jovem Grass não foi recrutado como auxiliar da artilharia antiaérea, segundo constava de sua biografia até então, mas se apresentou como voluntário da divisão de submarinos da Marinha alemã e, cerca de um ano após ter sido rejeitado, foi recrutado pela Waffen-SS, a tropa de elite desvinculada das Forças Armadas e especialmente ativa na consumação do Holocausto.

Quando isso ocorreu, Grass era um adolescente de 15 a 17 anos, e durante a guerra jamais deu um tiro. O fato em si importa a poucos. Afinal, ao longo de uma carreira exemplar como delator de crimes e cinismos do nazismo, ele já comprovou de que lado está. No entanto, resta a questão: por que revelar isso só agora?

Prêmio Nobel a um voluntário nazista

As más línguas não hesitam em apontar os interesses carreiristas. Para um escritor que se tornou mundialmente conhecido aos 32 anos, com o romance O Tambor, uma sátira corrosiva sobre a conivência com o nazismo, e – mais do que isso – para um ativista politicamente correto com ambições e chances de ganhar o Nobel de Literatura, seria arriscado demais ter revelado isso antes.

Além do mais, essa revelação surpreendente tem traços inegáveis de uma encenação midiática e de uma estratégia de marketing para promover a autobiografia de Grass. Sobretudo em se tratando do diário Frankfurter Allgemeine Zeitung, com sua tradição em lançar escritores no fogo cruzado das polêmicas políticas.

Acusador intocável

Mesmo que isso seja verdade, como suspeita parte da imprensa de língua alemã, as revelações de Grass naturalmente vão além de um golpe de publicidade. O que todos se perguntam, sem exceção, é por que ele ocultou durante tanto tempo a revelação. Sobretudo tendo oportunidades imperdíveis de se posicionar sobre este capítulo inédito de sua biografia.

A oportunidade mais evidente foi a visita de Reagan e Kohl a um cemitério de soldados da Waffen-SS em Bitburg, em 1985. Na ocasião, longe de revelar ter sido membro desta tropa de elite nazista, Grass acusou os chefes de governo de praticar "falsificação histórica com um calculismo interessado em impacto midiático e ferir todos os envolvidos, judeus, americanos e alemães".

Culpado ou vítima?

Este mais recente episódio da novela político-literária alemã coloca seriamente em jogo o papel moralizante de Grass. Por mais oportunas que costumem ser suas intervenções públicas, Grass se transformou, desde que se tornou prêmio Nobel, num consultor para todos os tipos de questões políticas, o que certamente ultrapassa os limites de sua competência. O que também se torna claro agora é que seu impulso moralizante talvez parta justamente da culpa por algo ocultado até agora.

Mas assim como foi recrutado pela Waffen-SS, sem ter se esforçado para tal, Grass também tende a ser instrumentalizado por uma mídia cada vez mais interessada em forjar escândalos literários através de denúncias e acusações de falta de political correctness. E, ao assumir o papel de patrulha ideológica, geralmente a mídia alemã passa dos limites da denúncia bem intencionada: não raro, a discussão se polariza e vira uma guerra entre órgãos da imprensa desesperados por leitores.

O que veio antes: o livro ou o mercado?

Quem instrumentaliza quem? Os escritores a mídia ou a mídia os escritores? E qual o papel do mercado editorial, cada vez mais movido a escândalos do gênero? Na Alemanha, as polêmicas mais acirradas costumam nascer de suspeitas sobre o papel de intelectuais no Terceiro Reich ou então culminam em acusações de conivência com o regime de Hitler. Nazismo vende.

Apesar de ser improvável que este "escândalo" forjado leve Grass a perder prestígio como literato ou personalidade pública, com certeza vai reduzir seu espaço de atuação como moralista. E, quanto a isso, a opinião pública só tem a ganhar.

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