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A violência policial contra negros como política de Estado

8 de junho de 2020

Entre janeiro e julho de 2019, só a polícia do Rio matou 1.075 pessoas, 80% delas negras. Total é o dobro das vítimas em todo os EUA no mesmo período. No início da República, estudo previa zero negros no Brasil até 2012.

Protestos antirracismo no Rio de Janeiro
Protestos antirracismo foram realizados no Rio e em várias cidades brasileiras neste domingoFoto: DW/J. Soares

O Brasil não teria negros em 2012. A previsão foi apresentada no 1º Congresso Mundial das Raças, realizado em Londres no ano de 1911. "No espaço de um século, os mestiços desaparecerão do Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós", argumentou o antropólogo João Batista Lacerda. O então diretor do Museu Nacional representava o país no evento, a convite do então presidente Hermes da Fonseca (1910-1914), 23 anos após a assinatura da Lei Áurea.

Sua tese pressupunha que a força do "sangue branco" diluiria o "sangue negro". Sem a chegada de novos africanos, portanto, o embranquecimento em curso como política de Estado levaria ao resultado calculado. O antropólogo levou uma pintura para ilustrar esse processo. "Redenção de Cam", do espanhol Modesto Brocos, retrata a alegria de uma avó negra pelo neto recém-nascido, de pele clara, no colo da mãe mestiça. Ao lado aparece o pai do bebê, representado como um português.

"Estava sendo gestada uma ideia de nação na qual o ser humano negro é indesejável e descartável", afirma a historiadora Ynaê dos Santos, especialista em relações étnico-raciais e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Contra esse projeto, manifestantes participaram do ato Vidas Negras Importam neste domingo (07/06), no centro do Rio de Janeiro.

Os gritos e cânticos entoavam críticas à violência da polícia contra o povo negro. Mesmo no contexto de isolamento social, as forças policiais continuam a fazer incursões armadas em favelas do estado. Um dia após o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibir operações no Rio durante a pandemia, houve tiroteio envolvendo policiais militares no Complexo do Alemão, zona norte da capital. Em abril, as mortes por ações policiais aumentaram 43% em relação ao mesmo período do ano passado.

Caso João Pedro

A vítima de maior repercussão foi o menino João Pedro, de 14 anos, assassinado em maio após ter sua casa alvejada por 72 tiros de fuzil disparados por policiais. No pedido de investigação da morte, o Ministério Público Federal incluiu a suspeita de tentativa de ocultação de cadáver. O nome do adolescente foi lembrado em diversos momentos do protesto, bem como o de George Floyd, morto durante uma operação policial em Minneapolis, nos Estados Unidos. Deitados no chão, manifestantes repetiam a frase "não consigo respirar", as últimas palavras de Floyd.

A manifestante Mônica Cunha percorreu todo o trajeto da manifestação ao lado de uma faixa que resume sua luta: "As mães negras não aguentam mais chorar", dizia a peça. Ela é fundadora do Movimento Moleque, que reúne e apoia familiares de vítimas de violações ocorridas em instituições socioeducativas – caso de seu filho Rafael, assassinado há 13 anos por um policial civil. "A maior fake news da história foi dizer que teve abolição. A pandemia está fazendo a gente encarar isso", defende.

Mônica Cunha perdeu seu filho Rafael em 2006, vítima da violência policialFoto: DW/J. Soares

Em 2018, a cada quatro mortes cometidas pela polícia no Brasil, uma aconteceu no Rio de Janeiro. Das 1.075 vítimas no estado entre janeiro e julho de 2019, 80% eram negras (percentual superior ao nacional, de 75%). O total corresponde ao dobro das mortes praticadas pela polícia dos Estados Unidos no mesmo período. Sem leis segregacionistas, como nos EUA, o racismo brasileiro tem uma dimensão institucional mais difícil de ser alcançada, avalia a historiadora Ynaê dos Santos.

"É um Estado que se fundamenta no trabalho escravo e pensa sua existência e história a partir do mito de fundação das três raças, 'harmonia' recuperada quase um século depois pelo mito da democracia racial. Esse processo esconde a violência da miscigenação contra negras, indígenas e mestiças", comenta.

A tentativa de embranquecer o Brasil após o fim da escravidão se deu pela imigração de jovens europeus latinos – abertos à integração com as mulheres brasileiras, acreditava-se.

Enquanto a mulher negra se inseriu precariamente no mercado de trabalho pelos serviços domésticos, não havia qualquer espaço para os homens. "Eles são mantidos como corpos perigosos. Conforme o racismo científico ganha espaço no século 19, pressupõe a ideia de que eles estavam geneticamente fadados a ações criminosas. A polícia brasileira é formada nesse pressuposto", afirma a historiadora.

O medo do Haiti

A primeira instituição policial criada no país foi a Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ), em 1809, inicialmente como Divisão Militar da Guarda Real de Polícia. A iniciativa se deveu à vinda de Dom João 6º e sua corte, mas também a um fenômeno que ecoava da América Central. "Havia um pânico generalizado entre as elites das Américas, com medo de que o 'haitianismo' se disseminasse", explica o historiador Luiz Antonio Simas, pesquisador das culturas de rua do Rio.

Foto: DW/J. Soares

Simas se refere à Revolução Haitiana (1791 – 1804), que resultou no fim da escravidão no Haiti e na conquista da independência sobre a França. Até hoje, o brasão da PMERJ traz o símbolo da coroa e duas pistolas cruzadas à frente de folhas de cana-de-açúcar e café.

"O imaginário que acompanha as polícias desde a criação é a contenção dos corpos pretos e a defesa da propriedade nas mãos de pouca gente. Não houve transformação estrutural das polícias, e o Brasil continua tendo medo do Haiti", avalia o historiador.

Apesar da ausência de modernizações, a estrutura policial brasileira sofreu modificações durante a ditadura militar. As forças de repressão do Estado foram aparelhadas com treinamento e orçamento inéditos para a "guerra interna" contra o comunismo, a partir da Doutrina de Segurança Nacional.

O fim do regime (1964-1985) no contexto de internacionalização da guerra às drogas estimulada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon (1969-1974) deu lugar a um novo inimigo interno a ser combatido: o tráfico de drogas.

"O cartão de visitas da nossa democracia são as chacinas dos anos 1990", assinala o historiador Lucas Pedretti, ex-integrante da Comissão Estadual da Verdade do Rio. Ele se refere aos episódios da Candelária, Acari e Vigário Geral, que deixaram um rastro de 40 mortes. "A juventude negra e periférica nunca deixou de ser o alvo. Por duas décadas, na ditadura, a violência de Estado ampliou sua ação. Nossa democracia é marcada por um terrorismo de Estado muito profundo, inclusive com aprimoramentos, vide o caveirão aéreo utilizado em operações policiais", constata.

"Racismo dita o modo de funcionamento das instituições"

No ato deste domingo, a jovem Thaís Fidélis, de 20 anos, dizia estar nas ruas por seus pares terem sido mortos dentro de casa. "Não temos direito ao isolamento sequer. Nossa polícia é uma força de repressão que mata quem é igual a eles", afirma. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os negros representavam 37% do efetivo policial no Brasil em 2018. A informação é autodeclarada e pode haver subnotificação.

Atos lembraram a morte de George Floyd nos EUA, mas também as vítimas da violência policial no BrasilFoto: DW/J. Soares

O coronel reformado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Íbis Pereira é ex-comandante-geral da corporação. Em sua avaliação, o racismo não deve ser lido pelo simples ódio ao negro. "Assim, seria muito fácil resolver. Bastaria isolar os racistas. Como tecnologia de dominação, pela força e consciência, o racismo determina o modo de funcionamento das instituições e opera como ferramenta de reprodução das desigualdades", afirma.

A Constituição de 1988, primeira na história do Brasil a ter um capítulo sobre segurança pública e tratar o tema como direito, ainda carece de complementação para definição clara dessa política, bem como de sua arquitetura institucional. Mais de três décadas sem ações significativas, Pereira descarta a ideia de incompetência. "Hoje estou convencido de que a política de segurança é não ter política. O racismo dialoga com essas ausências", opina o coronel.

"Na ponta, temos uma polícia fraturada, que não investiga e atua de forma independente como força de repressão em territórios de pobreza onde a Constituição ainda não chegou", complementa.

Como resultado dessa configuração, observa-se também o adoecimento da polícia. Em 2018, 104 policiais cometeram suicídio, 42% a mais do que no ano anterior. O número é superior aos agentes mortos em serviço. "Só uma polícia humanizada pode ter práticas humanizantes. Quem mata o outro também mata algo dentro de si", finaliza o coronel.

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Protestos pela morte de George Floyd

Milhares se manifestaram nos Estados Unidos e até no Canadá contra o maltrato sistêmico de negros pela polícia, redundando em confrontações violentas. Trump contribuiu para acirrar os ânimos.

general.image.copyright_prefix picture-alliance/AP Photo/J. Cortez

"Não consigo respirar"

Protestos tensos contra décadas de brutalidade policial perante cidadãos negros se alastraram rapidamente de Minneapolis a outras localidades dos Estados Unidos. As manifestações começaram na cidade do centro-oeste após a morte do afro-americano George Floyd, de 46 anos: em 25/05/2020, um policial o algemou e pressionou o joelho em seu pescoço até ele parar de respirar.

general.image.copyright_prefix picture-alliance/newscom/C. Sipkin

De pacífico a violento

No sábado, os protestos foram basicamente pacíficos, mas se tornaram violentos com o avançar da noite. Em Washington, a Guarda Nacional foi mobilizada diante da Casa Branca. Tiroteios no centro de Indianápolis deixaram pelo menos um morto: segundo a polícia, não havia agentes envolvidos. Policiais ficaram feridos em Filadélfia. Em Nova York, dois veículos da polícia avançaram contra uma multidão.

general.image.copyright_prefix picture-alliance/ZUMA/J. Mallin

Saques e destruição

Em Los Angeles, manifestantes enfrentaram com brados de "Black Lives Matter!" (Vidas negras importam) os agentes da lei armados de cassetetes e revólveres com balas de borracha. Na cidade, assim como em Atlanta, Nova York, Chicago e Minneapolis, os protestos se transformaram em revoltas de massa, com saques e destruição de estabelecimentos comercias.

general.image.copyright_prefix picture-alliance/AP Photo/C. Pizello

Provocador de Estado

O então presidente Donald Trump ameaçou enviar militares para abafar os protestos: "Minha administração vai parar a violência de massa, e de uma vez só", anunciou, acirrando as tensões nos EUA. Apesar de ele ter culpado supostos grupos de extrema esquerda pelas agitações, o governador de Minnesota, Tim Walz, citou diversos relatos de que supremacistas brancos estariam incitando o conflito.

general.image.copyright_prefix picture-alliance/ZUMA/K. Birmingham

Mídia na mira da polícia

Diversos jornalistas que cobriam os protestos foram atacados por policiais. Na sexta-feira (29/05), o correspondente da CNN Omar Jimenez e sua equipe foram presos em Minneapolis. A polícia local também atirou na direção de Stefan Simons, da DW, quando ele se preparava para transmitir ao vivo, na noite de sábado. Outros repórteres foram alvejados com projéteis ou detidos quando estavam no ar.

general.image.copyright_prefix Getty Images/S. Olson

Além das fronteiras

As manifestações chegaram até o Canadá: no sábado milhares marcharam pelas ruas de Vancouver e Toronto. Nesta cidade, os participantes também lembraram a morte da afro-canadense Regis Korchinski-Paquet, de 29 anos, na quarta-feira (27/05), caída da varanda de seu apartamento no 24º andar, onde se encontrava só com policiais.

general.image.copyright_prefix picture-alliance/NurPhoto/A. Shivaani

#GeorgeFloyd

Milhares também desfilaram diante da embaixada dos Estados Unidos em Berlim, manifestando indignação contra o homicídio de Floyd e o racismo sistêmico.

general.image.copyright_prefix picture-alliance/AP Photo/M:.Schreiber

Casa Branca cercada

A Força Nacional fez um cordão de isolamento, no domingo, para proteger a Casa Branca. O presidente Trump chegou a ser levado para um bunker na sede do Executivo, que foi alvo de manifestações por dias.

general.image.copyright_prefix Reuters/J. Ernst

Soldados em Washington

Após Trump anunciar o uso de soldados para conter as manifestações, o Pentágono deslocou cerca de 1.600 militares para a área de Washington para apoiar as forças de segurança da capital caso seja necessário, diante dos protestos que marcaram uma semana da morte de Floyd. Na Alemanha, o ministro do Exterior, Heiko Maas, criticou a ameaça de Trump de usar militares armados contra os manifestantes.

general.image.copyright_prefix Getty Images/AFP/W. McNamee

Recado de Obama

No dia em que a procuradoria endureceu as acusações contras os quatro policias envolvidos na ação, o ex-presidente dos EUA Barack Obama disse que protestos refletem "mudança de mentalidade" no país e incentivou os jovens a continuar realizando as manifestações. "Espero que (os jovens) sintam esperança, ao mesmo tempo que estão indignados, porque eles têm o poder de mudar as coisas", afirmou.

general.image.copyright_prefix Reuters/J. Skipper

Funeral reúne centenas em Minneapolis

Centenas participaram de uma cerimônia fúnebre em homenagem a George Floyd em 04/06. Elas ficaram em silêncio por 8 minutos e 46 segundos, tempo em que Floyd ficou com o pescoço prensado pelo joelho de um policial. "É hora de nos levantarmos em nome de Floyd e dizer: tirem o seu joelho dos nossos pescoços", afirmou o reverendo e ativista pelos direitos civis Al Sharpton (foto) durante o funeral.

general.image.copyright_prefix picture-alliance/dpa/C. Gonzalez
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