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A viola brasileira do Quarteto Arditti

Augusto Valente11 de maio de 2004

Você sabia que o violista de um dos grupos de câmara mais importantes da atualidade é um paulista de origem alemã? A DW-WORLD entrevistou o virtuose Ralf Ehlers.

Ralf EhlersFoto: Robin D'Amore

A viola é o patinho feio entre os instrumentos de cordas. Um leigo absoluto, assistindo a um concerto de orquestra, registrará talvez, no máximo, "ah, aqueles violinos maiores, sentados mais para o meio". Com sua voz velada, discretamente situada na região média, encoberta pelos extremos agudos e graves – assim como pelo volume sonoro– dos violinos, violoncelos e contrabaixos, é fácil esquecermos de escutar as violas.

Mas o pior de tudo é a reputação terrível que cerca o instrumento e os que a ele se dedicam. Os violistas são o escárnio da orquestra: seus colegas se deleitam em colecionar piadas humilhantes sobre eles. Os exemplos pululam na internet. Os alvos são sempre uma suposta falta de musicalidade e brilho, baixa inteligência, preguiça, personalidade medrosa: enfim, o violista não passa de um violinista que não deu certo.

Tudo um monte de bobagens: a viola é um instrumento belíssimo. E se, é claro, existem maus violistas – como temos maus pianistas, cantores, médicos ou advogados – também há virtuoses do porte do teuto-brasileiro Ralf Ehlers.

Ele não deixa a desejar a nenhum acrobata do violino, desmentindo todos os preconceitos maldosos sobre a classe dos violistas. Desde o início de 2003 Ehlers é membro do Quarteto Arditti, que, além de constituir a nata dos quartetos de cordas, é um dos principais conjuntos de câmara dedicados à música contemporânea.

As origens da família

Ralf Ehlers nasceu em 1971 em São Paulo, com ascendência alemã tanto por parte de mãe quanto de pai. Ambos seus avôs eram comerciantes de Hamburgo, que emigraram para o Brasil na década de 1930, escapando da crise econômica na Alemanha.

Lá encontraram suas futuras esposas, ambas de origem alemã. A avó materna de Ralf era filha de um plantador de tabaco na Bahia. Durante a maior parte da Segunda Guerra Mundial, já casada, ela teve que assumir a direção da firma da família: a exemplo de outros estrangeiros "inimigos", seu marido foi preso por um prefeito "nacionalista demais", só por ser alemão. Já a avó paterna do músico era natural da muito mais germânica Santa Catarina.

Os pais de Ralf Ehlers mantiveram o contato com a Europa e a língua alemã, estudando ambos na Suíça. Ele próprio freqüentou em São Paulo a escola bilíngüe Porto Seguro. Mais tarde, a família mudou-se para Ribeirão Preto, no interior do Estado, onde ele e suas irmãs "quase perderam todo o alemão", apesar dos esforços dos pais para que continuassem falando o idioma. "Mas a gente não gostava muito de falar alemão", relembra Ralf.

Ele não se recorda de jamais ter tido que fazer opções, decidir a que nacionalidade pertencia. "A gente sempre se sentiu brasileiro, que é essa mistura tão grande de culturas."

Hausmusik

e futebol

Para um virtuose de seu porte, Ralf começou a estudar viola relativamente tarde, aos 12 anos, com Alberto Jaffé. O impulso partiu do avô, que tocava violino. Juntamente com o pai, ao violoncelo, e a irmã pianista, Ralf cultivava uma tradição alemã, a hausmusik (música caseira).

No século 19, antes da televisão e do aparelho de CD, as famílias se reuniam em formações de câmara, para preencher as noites. No caso dos Ehlers, o repertório eram os quartetos com piano clássicos e românticos.

Mas o adolescente não pensava numa carreira de músico: "Eu gostava mais de jogar futebol", confessa. Só ao vencer o Concurso de Piracicaba, em 1987, a coisa ficou séria: aí Ralf começou a "estudar muito mesmo, para ver no que dava". Dois anos mais tarde, vencia o Concurso Sul-América, e em 1990 partia para estudar na terra de seus antepassados.

O clube da viola

Nos três anos e meio em Detmold e um ano em Salzburgo, seus professores foram a japonesa Nobuki Imai e Thomas Riebl, além das aulas de música de câmara com o violinista e regente Christoph Poppen. Ao contrário de tantos outros jovens músicos no exterior, ele não foi instado a rever toda a sua técnica, recomeçando do zero.

Apesar de seu background cultural, na Alemanha ele se sentiu decididamente estrangeiro. Sobretudo em momentos do dia-a-dia, como ao atravessar a rua no sinal vermelho "e todo o mundo te dando uma bronca". Na música, porém, as diferenças nacionais desaparecem.

Afirmar que tudo seja sério demais na Alemanha seria "uma grande generalização", porém o certo é que prefere o humor da Inglaterra, onde vive desde 1996: "Os ingleses são mais parecidos com os brasileiros, me sinto mais em casa lá". Segundo o site do Quarteto Arditti, Ralf é "um dos violistas mais solicitados de Londres".

Tocando com uma lenda viva

Arditti QuartetFoto: Robin D'Amore

O contato com o Arditti – que desde 1974 se dedica inteiramente ao repertório moderno e contemporâneo – deu-se através de Garth Knox, seu antecessor no quarteto. Juntos haviam estreado o dueto Viola Viola, de George Benjamin, e Knox o indicou para ocupar seu posto. Logo veio o telefonema do primeiro violino e fundador do grupo, Irvine Arditti, que lhe passou uma lista de dez peças para a audição.

Para quem faz idéia do grau de dificuldade do repertório sugerido, a lista soa como correr duas maratonas e cinco triatlos em seguida. Ela incluía o segundo quarteto do György Ligeti, o quinto de Elliott Carter, o segundo de Leos Janacék, o quarto de Bela Bartók, além de Tetras de Iannis Xenakis e das Cinco peças de Anton Webern. Ehlers comenta apenas, com modéstia: "Tocamos todas as peças, não houve problema nenhum".

A obra que executou com mais freqüência, neste ano e pouco junto ao Arditti, é o Terceiro quarteto do alemão Helmut Lachenmann, "uma peça maravilhosa". O renomado conjunto de câmara é atualmente o centro das atividades musicais do músico teuto-brasileiro: "São muitos concertos, o ano todo, não dá para fazer nada mais". E a cada concerto, pelo menos uma peça nova, possivelmente tão difícil quanto um biatlo.

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