Se você já passou uma temporada de verão no Rio de Janeiro, já deve ter visto a cena. Em bairros turísticos perto da praia, como Copacabana e Ipanema, é comum ver grupos de jovens negros virados para a parede enquanto a polícia "dá uma dura" neles – o que significa, no caso da polícia carioca, muitas vezes agir com violência moral (e até física) contra menores de idade, apontando armas para eles e os revistando de maneira vexatória. Isso é rotina.
Jovens negros que andam por esses bairros (e outros também) já estão acostumados a serem parados pela polícia simplesmente por serem jovens e pretos. A fila de garotos negros em frente a uma parede é uma imagem que infelizmente para mim, que sou carioca, é "normal" – o que me envergonha. E essa imagem apareceu de novo na tela do meu computador esses dias.
Isso porque o mundo tomou conhecimento do racismo ostensivo e agressivo da polícia carioca semana passada da pior maneira possível.
Na noite da última quarta-feira (03/07), três filhos de diplomatas negros, acompanhados de dois garotos brancos brasileiros, andavam pela rua Prudente de Moraes, em Ipanema, quando sofreram uma dessas violentas abordagens policiais. Em um vídeo, feito por uma câmera de um prédio, é possível ver o grupo atravessando a rua. Até que uma viatura da polícia para e policiais saem armados, apontando para os jovens, que são encostados na parede e enquadrados em fila.
Segundo familiares dos meninos, depois de revistados, eles só foram liberados quando um dos garotos (branco) contou que eles moravam em Brasília e estavam fazendo turismo no Rio. E se não fossem?
Triste rotina
Os meninos tinham entre 13 e 14 anos e passavam férias no Rio de Janeiro. Os estrangeiros eram filhos de diplomatas do Canadá, de Burkina Faso e do Gabão. A embaixatriz do Gabão, Julie-Pascale Moudouté, mãe de um dos meninos, fez um desabafo exigindo justiça: "Como que você vai apontar armas para a cabeça de meninos de 13 anos, como é isso? Mesmo nós adultos, você me aborda, você me pergunta primeiro. E depois você me diz porque você está me abordando", disse, coberta de razão.
Sinto muito, embaixatriz, mas essa é a rotina da cidade onde nasci.
E esse fato, infelizmente, não surpreende ninguém que conheça o Rio de Janeiro porque, repito, isso é rotina, algo com o qual já nos acostumamos. E que, no caso de nós, brancos, é tratado com a chamada "vista grossa": vimos, às vezes ignoramos, em outras nos indignamos e não fazemos nada.
Já aconteceu na minha família. Há muitos anos, meu primo, negro (e de pele clara) esperava o ônibus no ponto perto da faculdade até que, do nada, foi jogado no chão por policiais armados, que apontavam as armas para ele. Com dificuldade, ele conseguiu achar a carteira da faculdade para provar que não era um assaltante, mas um estudante universitário.
No caso dos filhos de diplomatas, uma investigação foi aberta para analisar a conduta dos policiais envolvidos na "operação". Os diplomatas pais das vítimas receberam desculpas oficiais do Itamaraty e o caso foi lamentado também pelo Ministério da Igualdade Racial – o que é o mínimo.
No caso do meu primo, não aconteceu nada, apenas ficamos gratos por ele ter sobrevivido.
E, claro, meu primo, que era universitário, também tinha seus privilégios. O que essa mesma polícia faz com jovens de comunidades que estão indo para a praia no fim de semana? Quanta violência acontece diante e longe dos olhos cariocas, já tão acostumados à barbárie?
Menores presos por "suspeita"
E sempre pode piorar. No ano passado, a prefeitura e o governo do estado do Rio lançaram a "Operação Verão", que aumentou o policiamento nas praias e fez com que "suspeitos" fossem abordados e levados para a delegacia mais próxima para averiguação. Muitos deles eram menores de idade. Qualquer um, a essa altura desse texto, já sabe a cor dos suspeitos, não é?
Em fevereiro deste ano, o STF proibiu que "o estado e o município do Rio de Janeiro aprendessem e conduzissem menores de idade na orla das praias sem motivo, salvo em casos de flagrante de ato infracional, ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária".
Anos atrás, lembro de ler chocada uma thread do Twitter (atual X) que devia ser lida por todos os brancos. Na ocasião, o jornalista Gilberto Porcidonio perguntou: "O que vocês fariam se o racismo acabasse no Brasil hoje? Eu iria ao shopping de chinelo fácil". Em seguida, centenas responderam coisas simples, como: "eu correria na rua", "eu andaria na rua usando o capuz do casaco". Um usuário chamado Anderson disse: "ficaria tranquilo ao ver um carro de polícia".
Depois desse "incidente" (contém ironia), algum jovem negro poderia atualizar a lista falando que "iria de boa em turma à Ipanema de noite e atravessaria a rua". É revoltante.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.