Acesso à terra continua sendo grave problema no Nordeste, diz professor
20 de dezembro de 2012DW Brasil: Tanto no governo brasileiro quanto na sociedade civil, a estratégia de combate à seca parece ter mudado para uma convivência com o semiárido...
Cícero Péricles: Até a década de 1980, a estratégia central de todos os programas, mais ou menos unificada, era a criação de infraestrutura hídrica, industrial, estradas para desenvolver o Nordeste e, a partir dessa riqueza, enfrentar a seca. As políticas hídricas da época seguiam também essa estratégia.
A partir da década de 80, a perspectiva do desenvolvimento sustentável para o sertão implicava uma mudança radical desses investimentos. E essa mudança vai acontecendo paulatinamente – com a disseminação de tecnologias sociais e também de produção, que fazem com que o mundo agrícola possa resistir ao fenômeno natural da estiagem prolongada, que aqui no semiárido se chama seca.
E essa estratégia tem funcionado bem, é uma experiência que vai se acumulando ano a ano; desde a adoção de novas variedades de plantas e também da adoção de animais mais adaptados ao semiárido até o desenvolvimento de tecnologia, por exemplo, como a cisterna, que consegue manter a família de agricultores em pleno sertão, em plena seca – a maior dos últimos 40 anos.
Um das críticas ao programa de universalização da água – Água para Todos – é a falta de um programa que garanta o acesso à terra. Como o senhor vê esse paradoxo?
O acesso à terra continua sendo um grave problema no semiárido nordestino, porque ele é herdeiro de um passado baseado principalmente na pecuária de grande extensão, que convivia com a chamada agricultura de subsistência e que mantém uma forma de organização antiquada, com problemas grandes de acesso à terra, dado o tamanho da área ocupada pelo semiárido nordestino.
Evidentemente isso afeta a questão da produção de riquezas, mas no tocante ao desenvolvimento sustentável, ou seja, a possibilidade de as 1,7 milhão de famílias de agricultores sobreviverem durante o período da estiagem, que era sempre o drama central do semiárido, esse problema está se conseguindo resolver.
Isso não quer dizer que todas as questões centrais estejam solucionadas e superadas. O acesso à terra continua sendo um problema, como também o acesso à água. Essas tecnologias conseguem fazer a sobrevivência, mas não conseguem fazer com que o processo produtivo seja tão amplo e suficiente, de forma que não haja dependência, no sentido material e financeiro, de políticas estatais, como é o caso das cisternas, das barragens, dos açudes.
Nós temos reservatórios de água no Nordeste suficientes para abastecer o semiárido com tranquilidade, 20% da água estocada no Nordeste atenderia plenamente a todas as suas necessidades – água para beber e água para produzir. Mas a distribuição da terra e a distribuição da água continuam sendo uma distorção no semiárido.
Até que ponto os programas de apoio do governo – Bolsa Família, Bolsa Estiagem, etc. – não aumentam a dependência da população agrícola em relação ao governo. Esses programas não seriam um obstáculo para a produção?
Não, porque os programas sociais e a Previdência Rural, que são muito fortes e muito amplos, têm a característica de garantir uma renda mínima, porque se trata de muito pouco. O volume de dinheiro pago a uma família pelo Bolsa Família é de apenas 126 reais. E com esse dinheiro não é possível resolver essas questões fundamentais.
A própria previdência social paga majoritariamente aos agricultores, chamada de Previdência Rural, é um salário-mínimo, que também é insuficiente, mas garante o mínimo para a sobrevivência nesse tipo de situação. Tal renda não pode ser uma inibidora da produção, porque ela não concorre, ela é complementar.
Se fosse uma renda mais alta, sim, é claro que desestimularia a produção. Porque se estaria com a renda garantida, mas não é o caso ainda. O semiárido é muito pobre, o Bolsa Família é muito pouco e a Previdência Rural ainda continua sendo um complemento. O semiárido ainda continua sendo a região mais pobre dentro da região mais pobre brasileira, que é o Nordeste. E nem por isso o Bolsa Família e a Previdência resolveram essa questão.
Qual a peculiaridade da agricultura no semiárido?
A agricultura familiar, que envolve 1,7 milhão de famílias no semiárido nordestino, tem uma forma de produzir peculiar que está baseada na agricultura de subsistência, quase não há diversidade nessa agricultura: produção de feijão e milho, criação de pequenos animais – bode, galinha –, 90% do rebanho caprino brasileiro está hoje no semiárido nordestino.
Então, trata-se de uma pequena agricultura. E quando a seca acontece, ela tem um grande impacto sobre essas famílias, porque elas não acumularam nada. O acúmulo delas é o mínimo no sentido da produção. Como o nome mesmo diz – subsistência –, ela é muito frágil em relação a esses fenômenos.
Daí a necessidade de políticas de transferência de renda e garantias sociais, aliás, como é comum em quase todas as regiões semiáridas. Por exemplo, na Espanha, na Andaluzia, essa política é eficiente, e também em regiões secas nos EUA e na Austrália. Isso não é nenhuma descoberta nacional, nenhuma descoberta brasileira.
Acontece ainda que o Brasil está muito, muito distante de atender as demandas dessa população durante os períodos de seca prolongada como nós estamos vivendo agora. Daí a recorrência ainda de carros-pipa, de recursos extras, Mas no semiárido não há ainda riqueza suficiente, produção suficiente para que se possa acumular o necessário para sobreviver durante este período de estiagem prolongada.
Muitas ONGs criticam que a transposição do São Francisco não irá beneficiar a população, mas principalmente o agronegócio? Isso é verdade?
A transposição é uma obra que, creio, terá um impacto muito reduzido em função dos recursos que estão apostando nela, porque ela não resolve a questão central que é a finalidade entre a água já hoje reservada – falando de volume, trata-se de um volume monumental – e a agricultura familiar.
A transposição vai servir para abastecer parte da população urbana e há um fato importante no Nordeste que talvez até explique a transposição: hoje, 70% da população do semiárido vivem em áreas urbanizadas. Há certa confusão, porque a imagem estabelecida é de um semiárido agrícola, essencialmente rural. E não é mais. Dois terços da população já vivem em cidades, e a transposição serve para isso.
Ela não é uma obra destinada à agricultura familiar, aquela que mais sofre durante os períodos da seca. A transposição vai levar água para açudes, para áreas de agronegócios, para áreas urbanizadas. Mas a questão central persiste: não foi criado um sistema de "água para todos", a exemplo do programa Luz para Todos.
O programa "Água para Todos" implica uma grande resposta econômica e social para o semiárido do Nordeste brasileiro.
Quais os obstáculos para que o semiárido seja sustentável, como é possível tornar a região produtiva também para os pequenos agricultores?
Primeiramente é preciso uma reestruturação fundiária, que não está acontecendo. Em segundo lugar, o crédito à produção é muito pouco. Ele é muito disseminado através do Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar], mas os valores são muito baixos para a sobrevivência de uma família. É tão baixo que mantém esse estado de pobreza.
Tem sido importante que existam as inovações tecnológicas, tanto na agricultura como na pecuária, mas elas não chegam ao semiárido, como chegou, por exemplo, a cisterna. Então acesso à terra, ao crédito e à assistência técnica precisam ser muito mais ampliados, fortalecer sua presença no campo, aliado, é claro, aos canais de distribuição de renda, de comercialização, que também são muito frágeis, porque a região é muito pobre e seu mercado é muito pequeno.
Daí a necessidade de políticas estatais apoiadas pela sociedade civil, ONGs, OSIPs, que têm hoje, além do Estado, uma presença muito forte – acrescentem-se as igrejas, os sindicatos, os movimentos sociais – que faz com que o perfil dessa assistência vem a ser modificado lentamente.
Entrevista: Carlos Albuquerque
Revisão: Alexandre Schossler