Depois de pacto com as Farc, governo consegue avançar na luta contra tráfico de drogas. Mas plantadores de coca estão preocupados com sobrevivência - e caminham na linha tênue entre legal e ilícito.
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Lucia* reza cada vez que leva a sua colheita de folhas de coca para os compradores no departamento (estado) colombiano de Putumayo. "Peço a Deus que ninguém me pare. Não fazemos mal a ninguém."
A presença policial aumentou desde que os guerrilheiros das Farc deixaram a densa selva ao longo da fronteira com o Equador, após o acordo de paz com o governo em Bogotá, em novembro do ano passado.
Lucia cultiva a matéria-prima da cocaína. "O risco é grande, mas as nossas necessidades são maiores. Se não fizermos isso, teríamos que estar roubando", afirma.
Estima-se que a sobrevivência de cerca de 72 mil famílias colombianas dependa de plantações ilegais. Elas dizem não ter alternativa.
As regiões de cultivo de coca sofrem com a negligência estatal crônica – e com o pior de um conflito armado de cinco décadas no país. Há falta de boas estradas, água corrente, eletricidade ou cadeia de comercialização – uma infraestrutura necessária para tornar viável o comércio legal. Os produtos agrícolas apodrecem muitas vezes no seu caminho para o mercado.
A coca, por outro lado, pode ser facilmente movimentada – sem risco de danos.
Inclusão agrícola
Como parte do acordo de paz com as Farc, o governo se comprometeu a acabar com o cultivo de coca na Colômbia, tentando ganhar o apoio dos plantadores.
A situação é mais propícia do que nunca. O comércio de drogas em algumas regiões de cultivo está sofrendo uma crise. Com a retirada dos guerrilheiros, os cocaleiros perderam os seus principais compradores. "Um grama de pasta de coca caiu de 1,7 mil pesos (aproximadamente 5 centavos de euro) para mil", explica Ramiro Palma, líder comunitário em San Miguel, em Putumayo. "Algumas pessoas pararam de plantar."
A maioria dos pequenos plantadores de coca está disposta a aceitar o plano de substituição do governo. Mas eles se sentem desconfortáveis. Programas anteriores não conseguiram ter impacto e deixaram muitas pessoas indigentes.
Margory vive num povoado que destruiu todas as suas plantações alguns anos atrás, na esteira do programa de substituição Guardabosque. Para enfrentar as despesas, ela ajuda agora na colheita de coca em outra região, longe de seus dois filhos.
"Culturas regulares trazem poucos ganhos. Não se pode cobrar muito por bananas e mandioca, de forma que não recebemos o suficiente para sobreviver. Dizem que cacau vale a pena, mas somente para aqueles que dispõem de grandes quantidades", diz. "Nenhum outro cultivo pode substituir o da coca."
Plano Colômbia
Programas de substituição anteriores ignoraram a necessidade de melhorar a infraestrutura local. "O dinheiro destinado a ajudar os plantadores com projetos alternativos encheu os bolsos das cooperativas de outras partes do país. Elas cobravam o dobro ou o triplo do real valor dos produtos agrícolas que distribuíam", afirma Fernando Palacios, prefeito de La Hormiga, em Putumayo. "As pessoas ficaram sem assistência técnica adequada. Os cultivos que plantaram não deram certo, porque não se adaptaram ao solo."
O pior de todos foi o Plano Colômbia, programa patrocinado pelos EUA. Ele intensificou a fumigação, que afetou as plantações legais e a saúde das pessoas da região.
Na fazenda de Lucia, nenhuma planta conseguiu crescer depois que passou um avião borrifando herbicida. "Nós havíamos plantado cacau e tudo secou. Ficamos com dívidas em vez de lucro. Não houve alternativa a não ser retornar para o cultivo da coca", conta.
Apesar de duas décadas de esforços americanos de erradicação e bilhões de dólares gastos, a produção de coca aumentou para níveis recordes em 2016, segundo um relatório da Casa Branca. A área de cultivo é agora estimada em 180 mil hectares.
Há esperanças de que o governo tenha aprendido com os erros do passado. O atual Programa Nacional Integral de Substituição de Cultivos de Uso Ilícito (PNIS) oferece assistência técnica a agricultores e uma renda básica durante os primeiros 20 meses para ajudar na transição – da plantação de coca para negócios legais. Os incentivos aumentaram para 36 milhões de pesos colombianos (cerca de 41 mil reais) por família, distribuídos num espaço de dois anos.
"O PNIS faz parte de uma reforma rural estratégica, que envolve o desenvolvimento da propriedade pública, serviço de saúde e educação", diz Eduardo Diaz, diretor da Agência para a Substituição de Cultivos Ilícitos na Colômbia. "Almejamos ter um maior número possível de plantadores, tomara que 100%, aderindo à substituição voluntária."
No entanto, muitos agricultores estão céticos. "No programa Guardabosque, nos prometeram eletricidade e boas estradas. Nós fizemos a nossa parte, mas o governo, não", reclama, por sua vez, Margory.
Mais incentivos para agricultores
Eduardo Diaz disse que o governo se comprometeu a fazer o programa dar certo. "Não se trata somente da substituição de cultivo. A paz está em jogo. Se falharmos, estes territórios serão facilmente tomados por atores armados, que veem nessas plantações uma oportunidade de enriquecer-se", explicou.
A meta do governo é limpar 100 mil hectares de coca por ano, bem acima da meta de 20 mil hectares do ano passado.
Numa tentativa de conter essa meta, plantadores de coca em Tumaco, a municipalidade com a maior produção de coca na Colômbia, bloquearam estradas na província de Narino, durante semanas no início deste ano. Os protestos escalaram para a violência, com mortos tanto do lado dos cocaleiros quanto das forças de segurança.
O governo diz que as metas de erradicação atingem somente grandes plantações em propriedade dos cartéis de droga. "Essas pessoas não têm nenhum interesse em chegar a um acordo", esclarece Diaz.
Indiscutivelmente, narcotraficantes estavam por trás dos protestos em Tumaco. Mas a erradicação forçada pode ter unido grupos criminosos organizados e pequenos plantadores de coca em torno de uma causa comum.
"Se o governo der apenas um pequeno empurrão, vamos encontrar o nosso caminho. Precisamos de algo para poder começar", afirma Margory.
Cronologia do conflito e do processo de paz na Colômbia
Acordo com as Farc foi alcançado após décadas de luta armada e tensões sociais na Colômbia. País trabalha agora na implementação do pacto e na reintegração de ex-guerrilheiro à sociedade.
Foto: Imago/Agencia EFE
Longo caminho da violência à paz
As décadas de violentas tensões sociais, que chegam ao fim com o novo acordo de paz na Colômbia, têm origem na luta no campo, que opôs trabalhadores rurais e proprietários de terras desde os anos 1920. As hostilidades se intensificaram a partir da década de 1960.
Foto: Reuters/J. Vizcaino
1940-1950: A Violência
Enfrentamentos sangrentos entre liberais e conservadores provocam milhares de mortes. O assassinato do liberal Jorge Elíecer Gaitán (foto), em 1948, gera protestos que ficaram conhecidos como "El Bogotazo", dando início ao período denominado "La Violencia". Membros do Partido Comunista são perseguidos, o Exército ocupa povoados e reprime os "lavradores comunistas".
Foto: Public Domain
1964: Farc e ELN
São fundadas as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), contra a concentração de terras, e o Exército de Libertação Nacional (ELN), fruto da radicalização do movimento estudantil e apoiado por adeptos da Teologia da Libertação, que prega a opção pelos pobres. O padre Camilo Torres (foto), guerrilheiro, é morto em combate. O governo colombiano recebe ajuda dos Estados Unidos.
Foto: picture-alliance/AP Photo
1970-1980: M-19 e negociações fracassadas
Surgem outros movimentos clandestinos como o M-19, que protagonizou a trágica ocupação do Palácio da Justiça em 1985 (foto), com mais de 350 reféns. A retomada do prédio pelas Forças Armadas deixa 98 mortos e 11 desaparecidos. O governo abre negociação pela primeira vez com as Farc e o ELN, mas o entendimento fracassa devido ao assassinato do ministro da Justiça.
Foto: Getty Images/AFP
Meados dos anos 80: Paramilitares
Surgem numerosos grupos paramilitares de ultradireita, a serviço de grandes proprietários de terras, contra os ataques rebeldes. Ao longo do tempo, vários desses grupos se envolvem com cartéis de droga. Quatro candidatos presidenciais e numerosos políticos de esquerda são assassinados por paramilitares entre 1986 e 1990.
Foto: Carlos Villalon/Liaison/Getty Images
1989: Desmobilização do M-19
O movimento M-19 entrega as armas em outubro de 1989, optando por disputar o poder como um partido político. Seu líder, Carlos Pizarro, candidata-se a presidente. Em 1990, ele é morto durante a campanha eleitoral.
Foto: picture alliance/Demotix/K. Hoffmann
1996: Esquadrões da morte
Grupos paramilitares se reúnem no movimento Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) e formam "esquadrões da morte" com até 30 mil membros.
Foto: AP
1998-99: Presidente Pastrana tenta negociar
Eleito em 1998, o presidente Andrés Pastrana inicia negociação com as Farc. Conversa também com o ELN (foto) e a AUC. Um vasto território até então controlado pelas Farc, no sul do país, comemora o recuo do grupo. Um massacre interrompe as conversas com a AUC.
Foto: picture-alliance/dpa
2002: Ingrid Betancourt e Álvaro Uribe
Depois que as Farc sequestram um avião, o governo interrompe o diálogo. Em 23 de fevereiro é sequestrada a candidata à presidência Ingrid Betancourt (foto). Álvaro Uribe ganha as eleições em maio, intensifica o combate militar e repudia qualquer entendimento. Ele é reeleito em 2007 e Betancourt, libertada em 2008.
Foto: AFP/Getty Images
2003-06: Recuo dos paramilitares e anistia
Após longas negociações, aproximadamente 32 mil paramilitares da AUC se rendem (foto). Até 2014, cerca de 4.200 deles são julgados por violações dos direitos humanos. Muitos retomam as armas. Em junho de 2005 é aprovada a Lei de Justiça e Paz, uma ampla anistia para membros dos esquadrões da morte.
Foto: picture-alliance/dpa
2007-08: "Falsos positivos"
Políticos de direita, acusados de vínculo com os paramilitares, são detidos em 2007 pela primeira vez. Aliados de Uribe também são atingidos. Em setembro de 2008 é revelado o escândalo batizado de "falsos positivos": entre 2004 e 2008, mais de 3 mil pessoas foram mortas pelo Exército para adulterar a estatística de guerrilheiros eliminados. Centenas de militares foram julgados até agora.
Foto: Jesús Abad Colorado
2012: Iniciados diálogos de paz com Farc
Ex-ministro da Defesa Juan Manuel Santos é eleito presidente da Colômbia em junho de 2010. Dois anos depois, entra em vigor a Lei de Vítimas e Restituição de Terras, para compensar os deslocados pelos combates. Em novembro têm início oficialmente os diálogos de paz entre governo (foto) e as Farc.
Foto: Reuters
2014-15: Santos reeleito e prazo para a paz
Santos se reelege em 2014. O governo colombiano anuncia conversações con o ELN. Enquanto isso, entendimentos com as Farc são interrompidos e reabertos devido a ações militares de ambos os lados. Em 23 de setembro de 2015, em Havana, Santos e Rodrigo Londoño Echeverri (Timochenko), líder das Farc, concordam com a meta de assinar um termo de paz em até seis meses.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Ernesto
2016: Diálogos de paz com ELN
Em 30 de março, Frank Pearl, representante do governo da Colômbia, e Antonio García, chefe da delegação do ELN (foto), anunciam em Caracas o início de um processo formal de diálogos de paz. Em relação às Farc, desacordos levam ao adiamento da assinatura do acordo de paz definitivo, cujo prazo expira em 23 de março.
Foto: Reuters/M. Bello
Junho de 2016 - Dia da paz
Acordo de paz entre o governo colombiano e as Farc foi finalmente concluído. A decisão foi recebida com entusiasmo tanto pela população do país, como pela comunidade internacional. O cessar fogo definitivo foi assinado em Cuba em 23 de junho com a presença do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e outros presidentes e observadores.
Foto: picture-alliance/dpa/EPA/A. Ernesto
Agosto de 2016 - Acordo histórico
Em 24 de agosto, governo e Farc selaram o acordo final que encerra as negociações de paz realizadas em Havana nos últimos quatro anos. Ele foi assinado pelos chefes das equipes de negociação de ambas as partes, Humberto de la Calle, pelo governo, e Luciano Marín, conhecido como "Ivan Márquez", representando a guerrilha, assim como pelos embaixadores de Cuba e Noruega, fiadores no processo.
Foto: Reuters/E. de la Osa
Setembro de 2016 – Assinatura
Três dias após os líderes das Farc ratificarem por unanimidade o acordo de paz, o documento foi assinado pelo presidente colombiano, Juan Manuel Santos, e pelo número um do grupo armado Rodrigo Londoño Echeverri, conhecido como Timochenko, em Cartagena, em 26 de setembro. Numa cerimônia que lembrou as vítimas da guerra, o líder guerrilheiro pediu perdão pelo sofrimento causado durante o conflito.
Foto: Reuters/J. Vizcaino
Outubro de 2016 – Não
Em 2 de outubro, os colombianos foram às urnas decidir sobre o futuro do acordo de paz. Em resultado surpreendente, 50,22% dos eleitores rejeitaram o documento. Apenas 37% dos colombianos participaram do plebiscito, ou seja, cerca de 13 milhões dos 34 milhões de eleitores.
Foto: picture alliance/AP Photo/A. Cubillos
Outubro de 2016 - Nobel da Paz para Santos
Apenas cinco dias depois do referendo sobre o acordo as Farc, os apoiadores do processo de paz foram reconhecidos internacionalmente. O presidente colombiano Juan Manuel Santos foi homenageado com o Prêmio Nobel da Paz. A cerimônia de premiação foi realizada em dezembro de 2016 em Oslo.
Foto: Getty Images/AFP/T. Schwarz
Novembro de 2016 - Ratificação no Parlamento
Após uma série de alterações no texto original do acordo de paz, o Parlamento colombiano ratificou o pacto em 30 de novembro de 2016.
Foto: Getty Images/AFP/G. Legaria
Junho de 2017 - Desarmamento
A entrega das armas pelos guerrilheiros das Farc ocorreu em três fases sob a supervisão da ONU. Em 27 de junho de 2017, Santos declarou: "Hoje é, para mim e para todos os colombianos, um dia especial, um dia em que trocamos as armas por palavras."
Foto: picture-alliance/dpa/A. Pineros
Agosto de 2017 - As novas Farc
As Farc desarmadas selaram num congresso em 27 de agosto de 2017 o abandono da luta armada e sua reformulação como partido político. O ex-líder guerrilheiro Rodrigo Londoño (foto) foi eleito presidente do partido. Sua saúde fragilizada, no entanto, impediu que ele se candidatasse às eleições presidenciais.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Vergara
Março de 2018 - Farc nas eleições
Pela primeira vez desde o fim da luta armada, representantes das Farc participam de eleições legislativas em 11 de março de 2018. Apesar de o partido das Farc só ter recebido 50 mil votos, ele obteve cinco assentos em cada uma das duas casas legislativas, como determinou o acordo de paz. O partido conservador do antigo presidente Álvaro Uribe foi o grande vencedor do pleito.