Pacto UE-Mercosul incentiva desmatamento, diz estudo francês
18 de setembro de 2020O acordo entre a União Europeia e o Mercosul, assinado no ano passado, tem potencial de acelerar ainda mais o desmatamento na América do Sul e não prevê mecanismos suficientes para assegurar o combate às mudanças climáticas e proteção da biodiversidade.
Essas são as conclusões de um relatório encomendado pelo governo francês para analisar os impactos do acordo. Em julho de 2019, o presidente Emmanuel Macron, um opositor do pacto, havia encarregado seu antigo primeiro-ministro Édouard Philippe a formar uma comissão para analisar as cláusulas do acordo.
O documento foi finalmente concluído e deve ser apresentado oficialmente na sexta-feira ao atual premiê Jean Castex. Nesta quinta-feira (17/09), o jornal Le Monde revelou alguns trechos. As conclusões não são nem um pouco positivas, e devem reforçar os argumentos dos europeus que se posicionam contra a ratificação do acordo.
Os membros da comissão que elaborou o documento vêm de áreas como economia, veterinária e direito.
Na avaliação do painel, o acordo de livre-comércio deve favorecer a abertura de novas áreas de pastagem no bloco sul-americano, com objetivo suprir o aumento da produção de carne bovina destinada à UE. Segundo os cálculos do painel, o ritmo de desmatamento pode aumentar a uma taxa anual de 5% nos seis anos seguintes à implementação do acordo. A destruição poderia chegar a 700.000 hectares (uma área maior que o Distrito Federal).
O relatório estima também que "entre 4,7 e 6,8 milhões de toneladas equivalentes de CO2" seriam geradas pelo acordo. Os especialistas ainda questionam se os "ganhos econômicos" do pacto superam "os custos climáticos", com base em um valor de carbono de 250 euros por tonelada.
O documento também classifica o atual acordo entre a UE e o Mercosul, formalizado em junho de 2019, como uma "oportunidade desperdiçada" por parte do bloco europeu. Segundo os especialistas, não foram obtidas garantias suficientes para fins ambientais e sanitários.
"O Acordo representa uma oportunidade desperdiçada para a UE utilizar seu poder de negociação para obter garantias sólidas que respondam" a expectativas "ambientais, sanitárias e (...) sociais de seus cidadãos", segundo o relatório.
O documento também menciona que, embora o texto do pacto cite o Acordo Climático de Paris, não estão previstas "condições específicas" para ambas as partes enfrentarem "as suas responsabilidades com as gerações futuras".
Ao jornal Le Monde, o economista Stefan Ambec, presidente da comissão, disse que o acordo também ignora aspectos com impacto na saúde dos europeus. Ele lembra que certos agrotóxicos, de uso proibido na Europa, tem uso liberado nos países do Mercosul. "Seria, sem dúvida, necessário definir melhor as especificações, principalmente sobre bem-estar animal, e integrá-las nos textos”, disse Ambec.
Diante das conclusões do documento, Mathilde Dupré, presidente do Instituto Veblen, um think tank especializado em reformas econômicas para a transição a um modelo ecológico, afirmou ao Le Monde que o acordo UE-Mercosul é o acordo com bloco sul-americano é "incompatível com o Green Deal (Pacto Verde) europeu e com as questões globais".
Em um texto publicado no site do instituto, ela pediu ainda para que a França "abandone pura e simplesmente o acordo”.
"As conclusões da comissão são de fato definitivas: além da política de Jair Bolsonaro, a própria natureza desse acordo que visa promover exportações de carnes do Mercosul em troca de automóveis, máquinas e produtos químicos europeus – sem qualquer obrigação ambiental – representa um desastre para o clima e a biodiversidade", disse.
O acordo foi fechado em junho de 2019, após 20 anos de negociações. Para entrar em vigor, depende da ratificação de todos os países envolvidos.
À época, o governo Bolsonaro celebrou o desfecho como um triunfo da política externa, mas não parou de se antagonizar em questões ambientais com vários países da UE, reforçando rapidamente a resistência ao pacto.
A França, que nunca demonstrou entusiasmo com a iniciativa por temores em relação ao seu próprio setor agrícola, acabou liderando a reação. No ano passado, o presidente Emmanuel Macron colocou como condição para a implementação do acordo de livre-comércio um reforço da proteção ambiental no Brasil. Em junho, ele explicou que o pacto foi finalmente fechado porque Bolsonaro oferecera garantias de preservação do meio ambiente brasileiro.
No entanto, em julho-agosto do mesmo ano, diante do crescimento dramático do desmatamento e queimadas no Brasil, Macron disse que pretendia bloquear a ratificação do acordo por causa da política ambiental de Bolsonaro. Na ocasião, o francês também acusou o brasileiro de mentir sobre compromissos firmados na área ambiental para garantir o sucesso do acordo.
As acusações provocaram uma reação furiosa e grosseira de Bolsonaro. O brasileiro chegou a endossar uma postagem de um seguidor no Twitter com comentários ofensivos sobre a aparência da primeira-dama Brigitte Macron, sugerindo que o francês teria "inveja" de Bolsonaro. Antes disso, Bolsonaro também cancelou em cima da hora um encontro com o ministro francês Jean-Yves Le Drian, em Brasília, e transmitiu uma live no barbeiro no mesmo horário em que a reunião deveria ocorrer.
Ele não foi o único membro do governo brasileiro a agir assim. O então ministro da Educação, Abraham Weintraub, chamou Macron de "cretino" e "calhorda oportunista". O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fez um trocadilho com o nome do francês, o chamando de "Mícron". O ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), disse que "a França não pode dar lição a ninguém" e que os franceses "deixaram rastro de destruição" por onde passaram.
Após Macron reagir, outros países europeus seguiram o exemplo diante da falta de ações do governo brasileiro em conter o desmatamento. Três parlamentos na Europa (Áustria, Holanda e o da região da Valônia, na Bélgica) já anunciaram que não darão seu aval ao acordo. O governo da Irlanda também já se manifestou nesse sentido.
Até o mês passado, a Alemanha ainda constava entre os defensores europeus do acordo. No ano passado, a chanceler federal Angela Merkel chegou a defender publicamente o pacto contra as críticas do Bundestag, a câmara baixa do Parlamento alemão.
Mas no fim de agosto, Merkel, em um claro recado ao Brasil, disse ter "sérias dúvidas” sobre a implementação do acordo. Sua ministra da Agricultura já se posicionou contra.
JPS/rfi/afp/ots