Acusações de antissemitismo abalam a Documenta de Kassel
Stuart Braun
22 de junho de 2022
Mural com motivos judaicos e nazistas indigna autoridades alemãs e israelenses. Curadores da mostra na Alemanha negam intenção antissemita. Clamores para remoção da obra se chocaram com apelos por liberdade artística.
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Apenas três dias após a abertura de sua 15ª edição, uma acirrada polêmica abala a exposição de arte contemporânea Documentaem Kassel, na Alemanha: uma obra do coletivo artístico indonésio Taring Padi está sendo criticada por representantes israelenses e alemães como profundamente antissemítica.
O mural People's justice (Justiça do povo), originalmente exibido em 2002 na Austrália, apresenta uma figura soldadesca de aparência suína, em cujo capacete está escrito "Mossad", o nome do serviço secreto de Israel. Outra figura tem os cachos laterais associados aos judeus ortodoxos, presas e olhos injetados de sangue e porta um chapéu preto com uma insígnia da organização paramilitar nazista SS.
"Estamos repugnados pelos elementos antissemíticos exibidos publicamente na mostra Documenta 15", escreveu a embaixada israelense, acrescentando que partes do mural são "reminiscentes da propaganda usada por [ministro nazista da Propaganda Joseph] Goebbels e seus capangas durante tempos mais sombrios da história alemã". "Todas as linhas vermelhas não foram apenas atravessadas, elas foram estraçalhadas", conclui o comunicado.
"A liberdade artística bate em seus limites", concordou a ministra alemã para Cultura e Mídia, Claudia Roth, instando o coletivo de curadores Ruangrupa – sediado em Jacarta e encarregado da organização da atual Documenta – a "encarar as consequências necessárias".
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"Monumento de luto pela impossibilidade de diálogo"
Na note desta terça-feira (21/06), a obra foi desmontada, entre vaias, assobios e aplausos dos espectadores.
Dizendo-se envergonhado, Christian Geselle, o prefeito de Kassel, comentara que "algo que não deveria acontecer, ocorreu". Angela Dorn, governadora do estado de Hesse, onde fica Kassel, disse estar zangada e decepcionada, e que o incidente comprometeria a reputação da Documenta.
Na véspera, o Taring Padi concordara em cobrir o controverso mural, que integra uma grande instalação ao ar livre, além de acrescentar uma nota explicativa.
Segundo o coletivo ativista fundado em Java em 1968, trata-se de "parte de uma campanha contra o militarismo e a violência que vivenciamos durante os 32 anos da ditadura militar de Suharto na Indonésia, e seu legado que continua a ter impacto hoje".
"Não há intenção de relacioná-lo, de forma alguma, com o antissemitismo. Estamos desolados que detalhes neste outdoor sejam compreendidos de modo diferente de seu propósito original. Pedimos desculpas pela mágoa causada neste contexto." A obra coberta se tornará "um monumento de luto pela impossibilidade de diálogo neste momento" e "este monumento, esperamos, será o ponto de partida de um novo diálogo".
"Adicionar nota de rodapé é absurdo"
Apesar de o coletivo sustentar que se trata de uma crítica ao autoritarismo na Indonésia, grupos da comunidade judaica não concordam que baste cobrir a obra.
Charlotte Knobloch, presidente da Comunidade Judaica de Munique e Alta Baviera, no sul da Alemanha, se declarou "horrorizada pelo puro ódio aos judeus mostrado nessa imagem do Taring Padi". Segundo ela, as características retratadas são "gritantemente antissemitas" e "adicionar uma nota de rodapé é absurdo".
Para Josef Schuster, do Conselho Central dos Judeus na Alemanha, "liberdade artística termina onde começa a xenofobia".
O presidente da Sociedade Teuto-Israelense, Volker Beck, e promotores estão preparando uma queixa contra o mural.
Controvérsia com antecedentes
Pela primeira vez desde que foi criada, em 1955, em sua 15ª edição a Documenta está sob a curadoria de um coletivo, o Ruangrupa, que convidou artistas de todo o mundo, especialmente do Sul Global.
Entre eles está o coletivo palestino The Question of Funding, acusado em janeiro de ser antissemita, numa postagem de blog, pelo fato de seus artistas apoiarem o boicote cultural a Israel.
A acusação, feita por uma aliança contra o antissemitismo, foi rejeitada pelo Ruangrupa em carta aberta, em que apela pela liberdade artística. Ao mesmo tempo, o coletivo indonésio se pronunciou a favor da neutralidade política, declarando-se disposto a entabular um diálogo. Na época, tanto o conselho supervisor da Documenta quanto a ministra Roth respaldaram a equipe de curadores.
Latino-americanos na Documenta 14
Em 2017, a maior mostra mundial da arte contemporânea traz para Kassel grandes nomes da arte latino-americana da atualidade e do passado. Veja aqui alguns desses ilustres convidados.
Foto: DW/C. Albuquerque
Abel Rodríguez
Ele nasceu como indígena e agora resgata de memória o saber de sua cultura sobre o uso de plantas como alimentos, para vestuário e construção, mas também como parte de ritos sagrados. Na Documenta 14, o colombiano Abel Rodríguez, nome artístico de Mogaje Guihu, descreve em sua obra "Ciclo anual da floresta de várzea" (foto) a aparência e vida mutantes da selva inundada ao longo do ano.
Foto: DW/C. Albuquerque
Antonio Vega Macotela
"Moinho de sangue" é o nome da obra de Antônio Veja Macotela. O artista mexicano reproduziu em escala real uma máquina impulsionada por indígenas a grandes altitudes, usada para explorar prata e cunhar moedas em minas na Bolívia colonial. Os visitantes também podem manuseá-la e vivenciar, no próprio corpo, esse símbolo inumano de poder, cunhando moedas que são verdadeiros "monumentos de bolso".
Foto: DW/C. Albuquerque
Antonio Vidal
Segundo os curadores da maior mostra mundial da arte contemporânea, o cubano Antonio Vidal (1928-2013) foi um opositor da ditadura e de todas as formas de totalitarismo. Vidal foi o último sobrevivente de uma geração que mudou a arte cubana nos anos 1950 e cujo abstracionismo "abriu mão da separação entre arte e vida em prol da sempre controversa relação entre arte e política."
Foto: DW/C. Albuquerque
Beatriz González
Desde os anos 1960, a colombiana Beatriz González se ocupa de grandes mestres europeus, substituindo originais por reproduções baratas. Esses são os "quadros" exportados para o chamado Terceiro Mundo, como aqui em "Cortina da natureza móvel e mutante". Apesar do apelo pop, seus trabalhos "não nos revelam as condições onipresentes do consumismo, mas marcações semióticas do subdesenvolvimento."
Foto: DW/C. Albuquerque
Cecilia Vicuña
Além de uma performance cerimonial onde insta a humanidade a uma revolução pelo amor, a chilena Cecilia Vicuña trouxe para Kassel pinturas figurativas que realizou nos anos 1970, como estes heróis revolucionários, entre eles, Karl Marx, Lênin, Fidel Castro e Salvador Allende. Através de seu estilo pop, a artista compromete de forma divertida a masculinidade indomável desses personagens.
Foto: DW/C. Albuquerque
Ciudad Abierta
O coletivo chileno Ciudad Abierta engloba uma comuna, um experimento pedagógico e um laboratório de prática arquitetônica. Em Kassel, ele demonstra a sua forma improvisada e ecológica de construir. No gramado da Orangerie, encontra-se uma imensa bola feita com hastes de metal e revestida de malha. A obra de arte serve a um dos elementos centrais do coletivo de artistas que é organizar jogos.
Foto: DW/C. Albuquerque
Guillermo Galindo
Em suas performances sonoras, o artista mexicano Guillermo Galindo dá voz aos migrantes, transformando em instrumentos musicais objetos deixados por eles durante a sua fuga. Os utensílios usados pelo artista mexicano provêm de naufrágios, de praias da ilha de Lesbos na Grécia, de campos de refugiados na Alemanha ou também do Texas, onde foram abandonados por migrantes latino-americanos.
Foto: DW/C. Albuquerque
Lorenza Böttner
Transexual, a teuto-chilena Lorenza Böttner perdeu os braços quando criança. Sua obra pode ser vista como resistência: enquanto o discurso médico e os modos de representação pretendem dessexualizar e transformar o corpo deficiente em algo sem definição de gênero, o trabalho de Lorenza erotiza o corpo trans e sem braços, equipando-o com potência sexual e política.
Foto: DW/C. Albuquerque
Marta Minujín
A argentina Marta Minujín é responsável pela obra símbolo da Documenta 14 em Kassel: o "Parthenon dos Livros", uma reprodução em tamanho real do templo grego, revestida de livros proibidos por ditaduras atuais e passadas. "Os memoriais de Minujín em prol da democracia e da educação através da arte trazem vida nova aos rituais de sociedades arcaicas", escrevem os curadores da mostra.
Foto: DW/C. Albuquerque
Regina Galindo
A guatemalteca Regina José Galindo denuncia na performance "El Objetivo" a violência com armas alemãs exportadas para regiões politicamente instáveis. Segundo ela, a obra propõe "uma dicotomia bastante crítica sobre a postura passiva do público diante das situações pelas quais o mundo passa." Galindo nos convida a sentir o que é estar por trás do canhão de uma arma ou na posição de vítima.
Foto: DW/C. Albuquerque
Sergio Zevallos
Arte e violência também se veem na obra do peruano Sergio Zevallos. Na instalação "A War Machine" ("Uma máquina de guerra"), ele mescla retratos em preto e branco de políticos e bandidos, enche tubos com fluídos corporais de conhecidos generais, expõe cabeças encolhidas de pessoas famosas, criticando o que é normal e patológico e "representações estabelecidas pelo sujeito da modernidade colonial".
Foto: DW/C. Albuquerque
Ulises Carrión
Carrión foi um artista, escritor, editor e livreiro mexicano. Na Documenta 14, a Sociedade dos Amigos e Amigas de Uises Carrión (1941-1989) faz da obra do artista o seu ponto de partida para explorar estratégias e práticas culturais na interface entre literatura, performance, arte conceitual e vida. Na Documenta, Carrión está presente com vídeos, livros, manuscritos e material de arquivo.