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Adeus, caros brasileiros

23 de dezembro de 2020

Após três anos compartilhando experiências em terras tupiniquins e seu amor pelo Brasil, a jornalista alemã Astrid Prange encerra sua coluna. Não há crise que possa apagar sua admiração pelo país, escreve.

'''A fé não costuma faiá', canta Gilberto Gil, um dos meus muitos mestres brasileiros", escreve Astrid PrangeFoto: Astrid Prange/DW

Caros brasileiros,

esta é minha última coluna. Faz três anos que compartilho com vocês meus pensamentos, minhas experiências e meu amor pelo Brasil. Compartilhei sentimentos sobre ser mãe no Brasil, conversas com detentos em prisões de segurança máxima, encontros pessoais com ex-presidentes e músicos brasileiros, e excursões pela Amazônia.

Compartilhei com vocês momentos importantes da minha família e dos meus amigos brasileiros e das lições que aprendi no Brasil. Compartilhei a minha fé e as minhas convicções que se desenvolveram ao longo da minha vida profissional e pessoal. E descrevi a gratidão e a felicidade de ter podido viver esses momentos.

Em contraste com os tempos da minha aventura brasileira – que começou em 21 de junho 1989, quando cheguei ao Brasil com uma mala e um tapete –, os últimos três anos foram atípicos e, para mim, até assustadores. Pois o país engatou a marcha à ré.

Elegeu um presidente que tem saudade da ditadura militar; favorece a destruição da fauna e flora brasileiras; enfraquece o sistema nacional de saúde por razões ideológicas; insulta chefes de Estado como o presidente francês, Emmanuel Macron; interfere no Poder Legislativo para proteger a sua família; e minimiza uma pandemia que já fez quase 200 mil brasileiros morrerem.

Resumindo: a situação política, econômica e social no Brasil é preocupante. Os últimos três anos foram um baque que deixou até muitos jornalistas, acostumados com crises e escândalos, atônitos. E eu não fiquei de fora.

Recebi vários conselhos nesta linha: "Não viaja. Ouça o que ele falou antes de passar essa bobagem adiante." Ou: "Um país que deixou e ainda deixa existir nazismo não tem moral pra falar dos outros." E mais um: "Se você gosta tanto do partido comunista terrorista, pegue-o e leve-o para a Alemanha."

Eu também fui xingada de "esquerdista", "colunista tosca", "comunista", "progressista besta", "militante", "petista corrupta", e de "gringa que não entenderia isso daqui mesmo que passasse décadas morando no #SudãoDoOeste". Sugeriram para a DW a "demissão de jornalistas" que, como eu, "faltam às aulas de português", e sentiram "até pena de me ver escrevendo essas baboseiras".

Confesso que esses comentários me ferem, mas eles não abalam minha admiração pelo povo brasileiro e meu afeto pelo país. Em nenhum outro lugar do mundo fui tão bem recebida, senti tanto calor humano, tanto amor e tanta hospitalidade. Não há crise que possa apagar essa gratidão e esse reconhecimento.

A colunista Astrid Prange no Rio de Janeiro, durante cobertura da Copa do Mundo de 2014Foto: DW/P. Barth

Meus mestres continuam sendo brasileiros, como Amarildo, que descrevi na minha primeira coluna, no dia 6 de janeiro 2018. Foi ele que me convidou para conhecer a sua casa na Rocinha e ampliou o meu olhar sobre o país. Pois até então, eu olhava para as favelas como redutos de pobreza e violência. Ele me ensinou que essa postura era limitada e preconceituosa e transformava os moradores em vítimas, em vez de cidadãos com direitos negados.

Ou o "bispo vermelho" Dom Hélder Pessoa Câmara, que inspirou milhões de brasileiros a sonhar com um país mais justo. A famosa frase dele "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista" vale até hoje. Com ele, aprendi que, no cotidiano brasileiro, a fé em Deus e as orações pedindo força para seguir a vida podem virar uma atitude política e têm um significado muito maior que na Alemanha.

"A fé não costuma faiá", canta Gilberto Gil, que é outro mestre para mim. Ele e tantos outros artistas só fazem aumentar a minha profunda admiração pela música brasileira. Como ela é poderosa! Ela burla qualquer censura ou restrição. Ela critica sem cansar, faz milhões de brasileiros cantar e ter esperança, lava a alma.

E claro, vocês, caros brasileiros, seguidores e leitores da minha coluna, continuam sendo meus mestres. Agradeço pela atenção, pela fidelidade, pelo carinho, pelos elogios e também pelas críticas. No ano que vem, eu volto com um novo formato para continuarmos nos falando e debatendo perguntas importantes. Desejo a todos um feliz Natal e muita força e fé para poder atravessar estes tempos difíceis. Um abraço apertado da Alemanha, Astrid Prange de Oliveira.

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Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.

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