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"Admiro como a Alemanha acolhe os refugiados"

Sarah Judith Hofmann (md)27 de janeiro de 2016

Ruth Klüger sobreviveu a três campos de concentração. Ela afirma que a Alemanha mudou e diz admirar a receptividade aos refugiados. "Deus sabe que não era assim há duas ou três gerações."

Foto: picture-alliance/dpa/W. Steinberg

Ruth Klüger foi convidada de honra para discursar no Parlamento alemão nesta quarta-feira (27/01) durante a cerimônia por ocasião do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto. Ela nasceu em 1931 em Viena e hoje vive nos Estados Unidos, para onde emigrou em 1947.

Juntamente com a mãe, ela sobreviveu aos campos de concentração de Theresienstadt, Auschwitz-Birkenau e Christianstadt. Como professora de língua e literatura alemãs, ela lecionou, entre outras, em Princeton, na Universidade da Califórnia em Irvine, e em Göttingen.

Klüger se tornou conhecida como escritora em 1992, com a publicação de suas memórias de infância Weiter leben (continuar vivendo). Em entrevista à DW, ela elogia a forma como a Alemanha lida com seu passado e a atual política alemã de acolhida de refugiados.

DW: Como é o sentimento de estar aqui e falar no Parlamento, localizado no centro de Berlim, cidade na qual os nazistas planejaram e determinaram os crimes dos quais a senhora e sua família foram vítimas?

Ruth Klüger: Eu vejo que muita coisa mudou, que este dia é celebrado, ano a ano. É algo muito incomum que um povo rememore não as honras conquistadas em campos de batalha, mas os crimes que cometeu. Vejo novas gerações que estão tentando fazer algo de bom. Admiro a abertura com que o governo – e se eu entendo corretamente, também uma grande parte da população – acolhe os refugiados. Isso é algo novo, visto a partir do ponto de vista judaico-alemão. Deus sabe que não era assim há duas ou três gerações.

Mas claro que eu não sou cega para dizer que todos os alemães têm boa vontade em relação a grupos de não alemães. Estou ciente de que existem grandes problemas e grandes grupos populares que se opõem a uma nova atitude em relação a estrangeiros. Mas, se eu estou interpretando corretamente, é uma maioria ou uma parte forte e voluntariosa da população que é a favor de que as portas sejam abertas e de que os outros sejam aceitos. Isso é emocionante, e estou curiosa para experimentar isso aqui. É por isso que eu recebi com satisfação o convite para discursar aqui.

"Quando você conversa com os sobreviventes, percebe que cada um tem sua história peculiar de sobrevivência"Foto: Reuters/F. Bensch

Certa vez, a senhora descreveu essa estranha sensação que teve por longo tempo, nas vezes em que sentava no avião em direção à Alemanha ...

Não a tenho mais. Mas quando me perguntam se posso me imaginar morando na Alemanha ou na Áustria, então a resposta clara é não. A Alemanha é uma terra proibida para mim, que eu não gostaria de ter na minha própria vida. Há uma distância entre o que eu observo e vejo com satisfação e o que eu quero para a minha própria vida. Sinto-me em casa na Califórnia.

A senhora esteve em três campos de concentração: em Theresienstadt, em Auschwitz-Birkenau, e em Christianstadt, um campo externo do campo de concentração Gross-Rosen. A senhora era uma criança. Em Theresienstadt, tinha apenas 11 anos de idade. A senhora entendia o que estava acontecendo?

Tudo o que as crianças vivem, elas aceitam como algo natural. Elas não podem imaginar que seja diferente. Mesmo quando você sabe que está experimentando algo de anormal, como criança, você pensa: mais tarde vou poder contar algo sobre isso. Aliás, muitas vezes pensei assim, que teria uma história para contar. Era um tipo de ajuda para a sobrevivência. Claro que mais tarde, num primeiro momento, ninguém quis escutar, mas isso é outra história. Naquela época, havia principalmente a sensação de que você tinha que aguentar firme – e que mais tarde haveria uma vida maravilhosa. Eu sabia tão pouco sobre outras coisas. Eu tinha sete anos quando Hitler entrou com suas tropas na Áustria. Depois disso, a vida ficou muito diferente. Dos sete aos 14 anos, até 1945, foram os anos de Hitler para mim. Eu não conhecia outra coisa, era o que havia.

A literatura e a poesia, que a senhora tanto amava, a ajudava no campo de concentração?

Você faz de tudo para passar o tempo. Eu recitava poemas. Mas a sobrevivência em tais circunstâncias é um acaso. Quando você conversa com os sobreviventes, percebe que cada um tem sua história peculiar de sobrevivência. Nesse aspecto, somos todos anormais. A sobrevivência não era o normal, o normal era a morte.

Seu livro de memórias de infância, com o qual a senhora ficou famosa, chama-se Weiter leben (continuar vivendo). Nele, a senhora se descreve como alguém que se muda frequentemente de apartamento e cidade, como alguém em fuga. Ainda é assim?

Eu tenho 84 anos. Esse sentimento mudou ao longo dos últimos 10 a 15 anos. Gosto de ficar em casa, num belo apartamento, com um gato. Por outro lado, eu sempre me pergunto como todas aquelas senhoras de idade suportavam aquilo.

Imagino como seria se eu tivesse que ir para um campo de concentração agora, e isso é um pensamento devastador. A ideia de dormir numa cama com quatro outras pessoas! Como você pode dormir assim? Eu tomo pílulas para dormir agora, mesmo tendo um colchão confortável. E você não tinha sua própria banheira ou vaso sanitário. Crianças podem dormir ou usar o banheiro em qualquer lugar, mas senhoras de idade sentadas uma do lado da outra na latrina! Eu tenho pensado ultimamente sobre como seria inconcebível para mim ser arrancada do meu apartamento e mandada embora por autoridades hostis.

O que este 27 de Janeiro – dia em que Auschwitz foi libertado em 1945 e Dia Internacional da Lembrança do Holocausto – significa para a senhora pessoalmente?

Eu sempre tento me lembrar onde eu estava naquele dia. Acho que eu estava fugindo. E nem sabia que Auschwitz tinha sido libertado. Não é que milhões de pessoas tenham sido libertadas de lá. Muitos já tinham sido mortos nas câmaras de gás, e outros estavam em marchas da morte. Aqueles que ficaram foram os que foram deixados para trás por estarem doentes e que tinham razões para acreditar que não iriam sobreviver.

Este Dia da Lembrança foi escolhido aleatoriamente. Mas não é uma má escolha, porque Auschwitz foi um campo particularmente destrutivo.

Como foi a sua própria libertação?

Nós já estavamos fugindo. Nós fingíamos ser alemães fugindo dos russos, o que era irônico, porque na verdade queríamos chegar até os russos. Em abril de 1945, os americanos entraram em Straubing, na Baviera. A guerra tinha acabado. Os meus sete anos de Hitler haviam terminado. E a alegria foi imensa, mas levou alguns dias para realmente se assentar e se transformar num sentimento de vida bem diferente.

Qual a importância de se lembrar daqueles que foram brutalmente assassinados pelos nazistas?

No funeral de minha mãe, eu tive a sensação de que é importante enterrar os mortos. Minha mãe viveu até ficar muito velha e morreu em Los Angeles. O ritual tem sua importância. Isso não era claro para mim até então. A enorme perda dos mortos na minha família é uma perda literal, como se eu tivesse perdido algo, como um objeto, que eu não consigo mais encontrar. Um funeral marca um fim. Eu posso dizer algumas palavras religiosas, palavras de lembrança, e encontrar um desfecho com uma sensação de satisfação, seguir adiante.

Mas isso tudo não existe para os sobreviventes do Holocausto. Os mortos são cinzas espalhadas em algum lugar. Elas nem sequer foram espalhadas por alguém, elas foram jogadas numa vala. Se você já esteve em um funeral, você nota a diferença.

Qual a importância que pessoas que sofreram, elas próprias, as atrocidades dos nazistas, deem seu testemunho, como a senhora? Não existem mais muitos que ainda podem contar essa história.

Eu acredito que esta preocupação "logo não teremos ninguém que possa contar" é exagerada e desnecessária. Há muitos séculos que aprendemos a partir de material escrito. E esse continuará a ser o caso. Vocês não precisam de nós. Se vocês querem se lembrar, vocês vão se lembrar. A vontade de vocês, da geração mais jovem, desempenha um papel tão importante quanto do que temos a dizer.

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