Autoridades alemãs investigam crimes cometidos por soldados russos e já colheram depoimentos de centenas de refugiados ucranianos. Ex-moradora de Bucha, por exemplo, relatou ter visto famílias inteiras mortas a tiros.
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"Colocamos barricadas de tijolos nas janelas quando ouvimos os bombardeios por perto", comenta Tetyana Kun sobre o início da invasão russa à Ucrânia, no fim de fevereiro. Seis meses depois, a mulher de 65 anos vive como refugiada em Berlim e recorda os dias da ocupação de Bucha, perto de Kiev, com lágrimas nos olhos.
"Um dia, acho que era 10 de março, vi por uma fenda na janela um comboio de carros descendo a rua com bandeiras brancas e uma placa que dizia 'crianças'", diz ela. No dia seguinte, ela se aventurou pela cidade pela primeira vez em semanas, pois o comboio lhe havia despertado esperança de uma evacuação. Mas Kun ficou chocada com o que viu. "O comboio que eu tinha visto no dia anterior tinha sido completamente destruído", diz ela.
Ela se lembra de ter visto carros capotados e pneus queimados; travesseiros, cobertores e roupas de criança cheios de buracos; mochilas e malas jogadas por todos os lados "Havia muito sangue nos carros", conta. Um soldado russo parado em um bloqueio na estrada apareceu e ela perguntou o que havia acontecido com o comboio. Ele contou que os russos tinham atirado neles "porque não sabiam quem estava nos carros".
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Centenas de relatos de testemunhas
Até sua fuga, em 19 de março, Kun testemunhou muitos crimes cometidos pelos invasores russos. Atrocidades que depois chocaram o mundo quando o Exército ucraniano retomou Bucha, no início de abril.
Julia Gneuss do Departamento de Direito Penal e Processo Penal da Universidade de Potsdam destaca a importância de Kun contar às autoridades alemãs o que viu.
"Investigações relacionadas a crimes de guerra na Ucrânia fazem parte de procedimentos de investigação", disse a advogada à DW, acrescentando que as informações são coletadas para "montar o quebra-cabeça de forma mais detalhada possível".
Em junho, o Parlamento alemão aprovou o financiamento de mias funcionários para investigar supostos crimes de guerra cometidos pelo Exército russo na Ucrânia. A Procuradoria-Geral da República, que coordena a investigação, afirmou que reuniria "todas as evidências de crimes de guerra". Autoridades policiais já colheram centenas de depoimentos de refugiados ucranianos indicando crimes de guerra, segundo a Procuradoria-Geral.
Condenação na Alemanha é improvável
Considerando que há cerca de um milhão de refugiados ucranianos na Alemanha, é difícil dizer se reunir apenas algumas centenas de testemunhos pode ser considerado um sucesso. Kun, por exemplo, ainda não testemunhou perante às autoridades alemãs. "Não sei a quem recorrer. E como vou fazer? Eu não sei alemão", comenta.
Em um esforço para facilitar o processo, o Departamento Federal de Investigações (BKA, na sigla em alemão) distribuiu folhetos entre os refugiados para explicar que as pessoas podem testemunhar em qualquer delegacia do país, e que podem preencher questionários em ucraniano. Com base nesses documentos, as autoridades avaliam com que testemunhas falar, com a ajuda de um intérprete, se necessário.
A Alemanha adicionou os princípios do direito humanitário internacional à própria legislação há 20 anos. Isso significa que qualquer pessoa responsável por crimes de guerra pode ser condenada por um tribunal alemão, não importando onde os crimes foram cometidos.
Crimes de guerra incluem ataques de soldados contra a população civil e contra infraestrutura civil, como áreas residenciais, hospitais, estações de trem e escolas. Também são considerados crimes de guerra assassinatos e torturas de civis ou prisioneiros de guerra, execuções extrajudiciais, estupro e uso de armas proibidas pelas convenções internacionais, como bombas de fragmentação e armas químicas.
Porém, não estão previstos na lei alemã julgamentos na ausência do acusado. Para condenar os russos responsáveis pelas atrocidades em Bucha, eles teriam que estar na Alemanha, o que é muito improvável.
Isso levanta a questão de quão significativas são as investigações alemãs. Basicamente, as autoridades querem evitar que o país seja um porto seguro para violadores do direito internacional, diz Julia Gneuss. E, se um suspeito fosse pego em outro lugar na Europa, a Alemanha poderia fornecer os relatos das testemunhas para ajudar a condenar os criminosos de guerra.
Assassinatos e saques
Kun viu soldados russos armados ameaçarem e roubarem moradores de Bucha. "Uma vez, um tanque parou em um açougue no centro da cidade. Os soldados saíram e começaram a atirar em diferentes direções enquanto outros saqueavam. Eles atiraram nas janelas ao redor, provavelmente para ter certeza de que ninguém estava tirando fotos ou filmando", diz ela.
A pior memória, no entanto, é da Rua Yablunska, na periferia da cidade, a área onde Kun nasceu e passou a infância. Ela viu famílias inteiras mortas a tiros em seus próprios jardins.
"Não havia só cadáveres na rua, mas também cães mortos – eles atiraram até nos cachorros", diz Kun. Segundo autoridades locais, mais de 400 civis foram mortos só em Bucha.
Ataques da Rússia a alvos civis na Ucrânia
Vladimir Putin nega que o exército russo esteja atacando alvos civis na guerra na Ucrânia. Mas os fatos o contradizem, como mostra esta galeria de fotos, que nem de longe abrange todos os ataques russos.
Foto: Maksim Levin/REUTERS
Mais de 5.500 civis mortos
O presidente russo, Vladimir Putin, declarou no fim de junho: "O exército russo não está atacando alvos civis". Observadores independentes discordam: de acordo com dados da ONU, mais de 5.500 civis morreram na Ucrânia desde o início da guerra e mais de 7.800 ficaram feridos como resultado de ataques russos. Na foto, um centro comercial destruído em Kremenchuk, 27/06/2022.
Foto: Efrem Lukatsky/AP Photo/picture alliance
Chaplyne: 25 mortos em bombardeio
Uma enorme cratera em Chaplyne. A pequena cidade no leste da Ucrânia, com cerca de 3.800 habitantes, foi alvo de um ataque russo em 24 de agosto, como admitiu mais tarde o Ministério da Defesa em Moscou. O alvo foi um trem de transporte de armas, mas o ataque também atingiu civis. Segundo a companhia ferroviária ucraniana, 25 foram mortos, incluindo duas crianças.
Foto: Dmytro Smolienko/Ukrinform/IMAGO
Vinnytsia: 28 vítimas em ataque com foguete
Em 14 de julho, o exército russo atingiu com um míssil a Casa dos Oficiais de Vinnytsia, onde teria ocorrido "uma reunião da liderança militar das Forças Armadas ucranianas e fornecedores estrangeiros de armas". Entre os 28 mortos, estavam três crianças e três oficiais, além de mais de 100 feridos. Vinnytsia se localiza a sudoeste de Kiev.
Foto: State Emergency Service of Ukraine/REUTERS
Chasiv Yar: 48 mortos em bombardeio
Na noite de 9 de julho, a pequena cidade de Chasiv Yar, no leste da Ucrânia, foi bombardeada. Segundo a mídia, os lançadores de foguetes múltiplos Uragan foram disparados em áreas residenciais. Um edifício residencial de cinco andares foi duramente atingido, e 48 corpos foram resgatados de seus escombros.
Foto: Nariman El-Mofty/AP/dpa/picture alliance
Serhiyivka: 21 mortos em ataque com mísseis de cruzeiro
Um ataque a Serhiyivka em 1º de julho custou pelo menos 21 vidas. O porto perto de Odessa aparentemente foi atingido por mísseis de cruzeiro durante a noite, como a Anistia Internacional informou após investigações no local. Pelo menos 35 ficaram feridos nos ataques. Por ser um resort de saúde, Serhiyivka é particularmente popular entre os turistas russos.
Foto: Maxim Penko/AP/picture alliance
Kramatorsk: 61 mortos na estação de trem
Imagens terríveis de Kramatorsk deram a volta ao mundo em 8 de abril: vários mísseis submarinos russos 9K79-1 Tochka atingiram a estação ferroviária da cidade no leste da Ucrânia, enquanto passageiros esperavam pelo trem. 61 foram mortos, incluindo sete crianças. Cientistas de balística determinaram que os mísseis haviam sido disparados da área da Ucrânia controlada pelos russos.
Foto: Ukrainian President Volodymyr Zelenskyy's Telegram channel/dpa/picture alliance
Bucha: encontrados 1.316 corpos
Bucha tornou-se sinônimo das ações brutais do Exército russo: depois que as tropas inimigas partiram, em 30 de março, vários corpos jaziam na rua Jablunska. No total, foram encontrados 1.316 corpos em Bucha e arredores. Embora a Rússia tenha negado quaisquer massacres, verificadores de fatos internacionais e equipes de investigação confirmaram execuções de civis por soldados russos.
Foto: Zohra Bensemra/Reuters
Mykolaiv: 36 mortos em ataque à administração regional
Em 29 de março, um ataque aéreo atingiu o prédio da administração regional de Mykolaiv. A parte central do edifício foi completamente destruída, do primeiro ao nono andar, restando apenas um esqueleto do prédio. A explosão também danificou vários edifícios residenciais e administrativos próximos, causando a morte de 36 cidadãos.
Em 16 de março, uma bomba destruiu o teatro no centro de Mariupol. De acordo com a Human Rights Watch, mais de 500 civis estavam se abrigando dos ataques no prédio na época. A palavra "Crianças" escrita em enormes letras brancas na frente e atrás do prédio não serviu como escudo. Segundo a prefeitura, 300 morreram.
Foto: Pavel Klimov/REUTERS
Mariupol: quatro mortos em ataque a clínica
Um ataque aéreo russo em 9 de março destruiu o hospital infantil e a maternidade de Mariupol. Houve menos quatro mortes, incluindo uma grávida e seu bebê, 17 ficaram feridos. Enquanto o Ministério da Defesa russo falou de uma "provocação encenada", o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, chamou o atentado de "crime de guerra".
Foto: Evgeniy Maloletka/AP/picture alliance
Charkiv: foguete mata 24 pessoas
Um vídeo de vigilância divulgado pelo Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia mostrou um foguete atingindo o prédio da Administração Estatal Regional de Kharkiv em 1º de março, causando 24 mortes, inclusive de transeuntes.
Foto: Pavel Dorogoy/AP/picture alliance
Inquérito do Tribunal Penal Internacional
As autoridades ucranianas relatam mais de 29 mil crimes de guerra, do início do conflito, em 24 de fevereiro de 2022, até 26 de agosto. Investigações independentes prosseguem. O Tribunal Penal Internacional enviou equipes para coletar informações. De acordo com as Convenções de Genebra, ataques deliberados a civis são crimes de guerra. No entanto, a Rússia não reconhece a corte sediada em Haia.