1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Alemanha julga mulher de 96 anos que atuou em campo nazista

Luisa von Richthofen
30 de setembro de 2021

Ré do provável último julgamento de crimes nazistas na Alemanha é acusada de ter sido cúmplice de assassinatos em mais de 11 mil casos em Stutthof. Sobrevivente do campo diz à DW que desfecho vem "tarde demais".

Campo de concentração de Stutthof
Cerca de 65 mil pessoas foram mortas no campo de concentração de StutthofFoto: Andreas Keuchel/picture alliance

"Eu queria viver!", diz Abba Naor ao ser indagado sobre como conseguiu sobreviver por quatro anos em campos nazistas. "Não queria morrer. Era fácil morrer, e muito mais difícil permanecer vivo. Talvez isso tenha tido um impacto em mim, não sei." Ele diz que pode ser muito teimoso. "Estava certo, hoje tenho onze netos, sou um homem rico."

Naor, que tem 93 anos, viaja anualmente de Israel para Munique, cidade no sul da Alemanha que se tornou a sua segunda casa. Lá ele passa vários meses dedicando-se ao que vê como sua missão: visitar escolas e relatar a experiência de seu sofrimento. Contar como passou vários anos da sua juventude nas garras da máquina assassina nazista e como ela destruiu a sua família.

"Éramos lituanos orgulhosos"

Naor nasceu em 1928 em uma família de judeus na Lituânia. "Foi uma infância feliz", relembra. "Sobretudo, éramos lituanos orgulhosos. Claro que havia um pouco de antissemitismo, mas isso era parte do folclore."

Ele tinha 13 anos quando o Exército alemão, a Wehrmacht, invadiu a Lituânia, então sob ocupação soviética. Membros da comunidade judaica na sua cidade de Kaunas foram forçados a permanecer no gueto. Naor e sua família de 23 pessoas tiveram que se amontoar em um apartamento de dois cômodos. Apesar de um certo alívio inicial por estarem ao menos protegidos da sanha assassina de seus vizinhos lituanos, rapidamente ficou claro que o gueto era um local de terror.

Um dia, o irmão mais velho de Naor e alguns outros jovens saíram para tentar obter mais alimentos, uma prática então ilegal para os judeus que viviam sob a lei da ocupação. Eles foram presos e mortos por alemães. "Por muito tempo, meus pais se recusaram a acreditar e achavam que ele voltaria. Eles não conseguiam imaginar que estavam matando também crianças."

"Começamos a entender que não éramos mais uma família"

Naor e sua família viveram três anos no gueto de Kaunas. Até que, em julho de 1944, eles foram retirados da Lituânia, e logo souberam que estavam sendo levados para o campo de concentração de Stutthof, a leste da cidade de Gdansk (então Danzig), hoje na Polônia.

Abba Naor (segundo da esquerda para a direita) a caminho de escola clandestina no gueto de Kaunas em 1941/1942Foto: Abba Naor

"Quando fomos deportados para Stutthof, ainda éramos parcialmente humanos. Vestíamos as nossas próprias roupas. E, apesar de tudo, no gueto vivíamos com a nossa família. Em Stutthof, começamos a entender que não éramos mais uma família."

Eles foram separados. Homens para um lado, mulheres e crianças para o outro. Em 26 de julho de 1944, Naor, então com 16 anos, viu mulheres e crianças receberem uma ordem para se reunirem do outro lado da cerca. "Vi minha mãe e meu irmão menor em uma longa fila, com outras mulheres e crianças pequenas. Naquele momento soube que estava vendo eles pela última vez. Isso era bem claro para mim."

No mesmo dia, a mãe de Naor e seu irmão foram deportados para Auschwitz, onde foram mortos. Sua mãe tinha 38 anos, e seu irmão apenas 6.

Do outro lado: Irmgard F.

Naquele mesmo dia, Irmgard F., que tinha 19 anos, provavelmente estava indo para o seu trabalho diário. Ela era secretária do diretor do campo de concentração, Paul-Werner Hoppe. Agora, quase oito décadas depois, ela irá a julgamento na Alemanha.

Promotores da cidade de Itzehoe, no norte da Alemanha, afirmam que "no exercício de sua função de estenógrafa e datilógrafa no escritório do diretor do campo de concentração Stutthof, de junho de 1943 a abril de 1945, ela auxiliou os responsáveis pelo assassinato sistemático de prisioneiros." Hoje com 96 anos, ela é acusada de ser cúmplice de assassinato em mais de 11 mil casos.

O julgamento começaria nesta quinta-feira (30/09), mas a ré fugiu de sua casa de idosos, em um táxi, algumas horas antes do início da audiência, e foi localizada e detida algumas horas mais tarde. Por esse motivo, o julgamento foi adiado para 19 de outubro. O Comitê Internacional Auschwitz, formado por sobreviventes e parentes de vítimas do campo de concentração, criticou as autoridades alemães por não terem prevenido a breve fuga de F.

Escritório do diretor do campo de concentração de StutthofFoto: Muzeum Stutthof

F. já testemunhou duas vezes sobre a sua função em Stutthof. Em 1954, ela disse que, diariamente, Hoppe ditava a ela cartas e mensagens de rádio. Mas ela diz que não sabia nada da máquina assassina nazista localizada muito próxima do seu local de trabalho e que matou dezenas de milhares de pessoas.

Como ela era menor de 21 anos quando teria cometido os crimes pelos quais é acusada, F. será julgada pela Justiça juvenil. É possível que este seja o último julgamento de crimes nazistas na Alemanha.

"Julgamento está ocorrendo muito tarde"

Naor não quis participar do julgamento como assistente de acusação. Ele até acha que a ré deveria ser deixada em paz, argumentando que os "peixes grandes" conseguiram escapar da punição.

"Nós não fomos levados ao escritório em Stutthof para ver como ela trabalhava. Mas se ela fez algo errado ou cometeu um crime, por que esperaram até hoje?" Ele também acredita que "simplesmente viver com o pensamento de que você fez algo ruim para outra pessoa é, algumas vezes, pior do que a prisão".

Abba Noar não quis ser assistente da acusação no julgamentoFoto: Luisa von Richthofen/DW

O advogado Onur Özata representa diversos assistentes da acusação, vítimas e parentes de vítimas no julgamento. Ele afirmou à DW que alguns sobreviventes veem o caso de forma diferente da de Naor. Segundo ele, as pessoas não participam de um julgamento desses porque querem vingança. Em vez disso, diz Özata, o que importa para muitos sobreviventes é testemunhar em juízo para contar a sua história. "O que eles estão dizendo é: Não queremos que esse sofrimento seja esquecido."

O advogado de Irmgard F., Wolf Molkentin, também disse à DW que acredita que é correto realizar julgamentos sobre acusações de crimes nazistas, mesmo quando já se passou muito tempo. "Na minha opinião, não é suficiente apontar para tudo o que foi negligenciado no passado — por exemplo, o fato de que muitos autores de crimes nunca foram levados à Justiça — e dizer que esses julgamentos não deveriam mais ocorrer."

Molkentin diz que não pretende adotar uma postura de confronto e atacar testemunhos prestados por sobreviventes. "Pelo contrário, quero trabalhar para garantir um arranjo digno para estabelecer e esclarecer os principais fatos." Isso é muito importante para ele, diz.

Como advogado de defesa, ele irá discutir as acusações feitas contra a sua cliente em sua esfera pessoal. "É necessário esclarecer que conhecimento deve ser assumido em relação aos assassinatos e até que ponto isso é suficiente para uma acusação de ser cúmplice de assassinatos."

Visitas a escolas: uma forma de terapia

Naor sobreviveu ao campo de Stutthof, assim como a dois outros campos de trabalho forçado na Baviera, em Utting e Kaufering. Após ter sido libertado por militares americanos, ele emigrou para Israel, e por décadas manteve seu sofrimento apenas para si mesmo.

Abba Noar relata a sua história de vida em escolas alemãsFoto: KZ Gedenkstätte Dachau

Até que ele encontrou uma forma de lidar com a sua história. Naor já visitou centenas de escolas, nas quais relata o que aconteceu com ele. As crianças, ele diz, são como se fossem seus jovens terapeutas, que dão a ele a força que precisa para lidar com o seu passado. "E vejo isso como meu dever de mantê-las alertas e explicar aos jovens o que pode acontecer se não somos cuidadosos", diz.

Pular a seção Mais sobre este assunto