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Amadeus, Theophilus, Gottlieb: um artista europeu por excelência

Augusto Valente27 de janeiro de 2006

Para Mozart, fronteiras lingüísticas, geográficas e estilísticas pouco representavam. Poliglota, ele estava perfeitamente à vontade em metrópoles como Paris, Viena ou Roma. Um artista pan-europeu completa 250 anos.

Retrato a óleo de Wolfgang Amadeus Mozart (1756–1791)Foto: dpa - Bildfunk

Bona nox! Bist a rechta Ochs;
bona notte, liebe Lotte;
bonne nuit, pfui, pfui;
good night, good night,
heut müss ma noch weit;
gute Nacht, gute Nacht,
scheiss ins Bett dass' kracht;
gute Nacht
Schlaf fei' g'sund und
reck' den Arsch zum Mund.

Este é o texto de um cânone de Wolfgang Amadeus Mozart, Bona nox, KV 561, datado de 1788, três anos antes da morte do compositor. Mesmo para quem não domina o alemão, um aspecto chama logo a atenção: a letra, da autoria de Mozart, está salpicada de fragmentos em italiano, francês, inglês e até falso latim.

Como se trata de uma peça humorística (o conteúdo é, diga-se de passagem, divertidamente irreverente e escatológico), não há dúvida de que a miscelânea de idiomas foi introduzida como elemento cômico, além de propiciar o jogo de rimas.

Porém, ao mesmo tempo, esse cânone nos lembra um traço essencial da biografia do grande músico austríaco: Mozart, que viajava sem cessar, era um poliglota, perfeitamente à vontade onde quer que seu trabalho o levasse. "Em Roma, como os romanos", porém sem perder o perfil individual. Enfim: a personificação perfeita do ideal de um "artista pan-europeu".

Coach e superpai

Exposição 'A Space For Mozart' , na casa de nascença do compositorFoto: dpa

Tal cosmopolitismo foi, por assim dizer, cultivado desde o berço: com apenas sete anos de idade, o menino-prodígio já realizava sua primeira viagem de concertos pelo continente.

Ao lado da também superdotada irmã Nannerl, o jovem virtuose do teclado maravilhou entre 1763 e 1768 as cortes da Alemanha, França, Inglaterra, Holanda, Boêmia (atual República Tcheca) e, naturalmente, Áustria.

Ambos viajavam sempre assistidos pelo pai, Leopold, que sabia explorar ao máximo o talento das crianças, num misto de preceptor rigoroso, coach e agente. (Essa complicada ambivalência – notem-se os paralelos com a constelação que, 200 anos mais tarde, destruiria a frágil psique de um Michael Jackson... – prolongou-se até Wolfgang se mudar para Viena e desposar Constanze Weber, em 1781–82.)

Aos 13 anos de idade, as atividades de Mozart o levariam até a Itália, onde o papa Clemente 14 em pessoa lhe concedeu a Ordem da Espora Dourada. Uma espiada no catálogo da obra mozartiana revela registros dessas peregrinações, como o Caderno londrino ou as sinfonias Linz, Paris e Praga.

Nomen ist omen

A mobilidade cultural de Mozart já começa em seu nome. Ele foi batizado Joannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus. Seguindo o costume católico, seus dois prenomes se devem à data de nascimento: 27 de janeiro, dia de São João Crisóstomo.

O terceiro nome é a versão latina do germânico "Wolfgang". E, no dia-a-dia, o grego "Theophilus" – nome de seu padrinho – será latinizado para "Amadeus". Segundo o musicólogo Otto Erich Deutsch, na Itália, a partir de 1770, o músico se assina "Wolfgango Amadeo" e, sete anos mais tarde, "Wolfgang Amadè".

Essa preferência pessoal pela variante afrancesada, contudo, não encontrou aceitação universal, já que alguns de seus amigos e associados preferiam a tradução germânica de Amadeus, "Gottlieb".

Europa sem fronteiras

Ainda que curiosa, tal prática onomástica não era tão fora do comum no século 18. Ela nos recorda uma Europa anterior aos movimentos nacionalistas exacerbados, onde as fronteiras culturais ainda/já eram fluidas. Uma Europa paradoxalmente progressista, em comparação à atual.

Johann Sebastian Bach (1685–1750)

Da mesma forma que Mozart, Bach, por exemplo, não teve problemas em assinar-se "Jean Sebastien", na dedicatória dos Concertos de Brandemburgo, lisonjeando assim a francofilia do margrave daquela cidade. O italiano Giambattista Lulli também aclimatou-se como "Jean-Baptiste-Lully" à corte de Luís 14.

Haydn podia ser "Joseph", "Josef" ou "Giuseppe", conforme a necessidade; Ludwig van Beethoven foi publicado como "Luigi" e "Louis". E até hoje os ingleses disputam com a Alemanha o "seu" "George Friedric Handel".

Na próxima página: uma ópera em italiano, de compositor austríaco, baseado em peça francesa, com ação na Espanha...

O caso Fígaro

O poliglotismo mozartiano se reflete de maneira virtuosística em sua obra vocal. Com a mesma desenvoltura, Wolfgang escreveu árias, cantatas e canções sobre textos alemães, italianos, franceses ou latinos. Quer estreadas em Viena, Munique ou Praga, parte de suas óperas tem libreto em italiano (La clemenza di Tito, Idomeneo re di Creta), parte no idioma vernáculo (Die Entführung aus dem Serail, Der Schauspieldirektor, Die Zauberflöte).

A ópera cômica As bodas de Fígaro (Le nozze di Figaro) ilustra de forma exemplar a "União Cultural Européia" da época de Mozart. Sua fonte literária é a revolucionária peça teatral homônima do francês Pierrre-Augustin de Beaumarchais (1732–1799), um seguidor do satírico Voltaire.

Trata-se de uma crítica à aristocracia, escrita às portas da Revolução de 1789, e cuja ação se situa na Espanha. Embora liberada pela censura em 1781, ela foi imediatamente banida na França e em outras cortes, tão logo o rei Luís 16 reconheceu seu potencial subversivo.

Hino multicultural europeu?

'Cosi fan tutte', montagem de Peter Konwitschny na Komische Oper de BerlimFoto: dpa

Bem mais inofensivo, e portanto digerível para a corte austríaca, resultou o texto que Lorenzo da Ponte (1749–1838, natural da região de Veneza, e também libretista de Così fan tutte e Don Giovanni) redigiu para Mozart.

Ainda assim, a qualidade literária, a complexidade da trama e a profundidade psicológica das personagens estão muito acima da média dos libretos da época e mesmo dos séculos seguintes. A estréia da ópera se deu em 1786, no Burgtheater de Viena, na presença do imperador José 2º.

Recapitulando: uma obra de um compositor austríaco e um libretista italiano, que estreou na capital austríaca, com texto em italiano, baseado em comédia de autor francês, e cuja ação se passa na Espanha.

Completando, a música composta por Mozart para essa ópera aciona todos os recursos à disposição, ignorando não apenas fronteiras estilísticas nacionais, como as convenções do gênero cômico. Se o sonho multicultural europeu precisasse de um hino, As bodas de Fígaro, de Wolfgang /Wolfgango /Wolfgangus Amadeus /Amadè /Theophilus /Gottlieb Mozart seria um forte candidato!