Ameaça de Kim serve de alerta para Washington
17 de maio de 2018Os blefes e a diplomacia arriscada de Washington e Pyongyang nos dias que antecedem a aguardada cúpula entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e o líder norte-coreano Kim Jong-un, já eram esperados. Da mesma forma, a história de manobras diplomáticas súbitas da Coreia do Norte não são incomuns – como quando cancelou no último minuto uma reunião planejada secretamente entre o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, e representantes de Pyongyang durante os Jogos Olímpicos de Inverno deste ano.
Assim, diante da última ameaça da Coreia do Norte, Washington não precisa entrar em pânico quanto à realização de fato da cúpula planejada para 12 de junho e que visa acabar com o impasse sobre o programa de armas nucleares norte-coreano. Mas também não precisa ver a ameaça de Pyongyang de cancelar o encontro como um mero blefe.
A Coreia do Norte cancelou um encontro com a Coreia do Sul marcado para terça-feira em protesto pelos exercícios militares conjuntos de EUA e da Coreia do Sul, que Pyongyang considerou um gesto agressivo.
"Eu esperava que eles reclamassem. E, talvez, se os Estados Unidos não atenderem às exigências, essa reunião de cúpula [com Trump] pode ser abortada", afirma Han Park, ex-negociador não oficial entre EUA e a Coreia do Norte que conseguiu a libertação de dois jornalistas americanos em 2009 e facilitou a visita do ex-presidente americano Jimmy Carter a Pyongyang em 1994.
"Não é uma surpresa completa que a Coreia do Norte responda a esses exercícios, demonstrando a Trump que as negociações vão ser um processo complexo, e os Estados Unidos não devem já tomar como certa a participação da Coreia do Norte", concorda Kelsey Davenport, diretora para política de não proliferação da Associação de Controle de Armas.
Ela sugere que, durante as conversas em andamento, Washington considere tirar a ênfase de elementos dos exercícios militares conjuntos que a Coreia do Norte considera mais provocativos. De acordo com uma reportagem da mídia sul-coreana, bombardeiros estratégicos com capacidade nuclear dos EUA, que tinham sido originalmente agendados para participar, agora não vão participar das manobras.
Kim na dianteira
A ameaça da Coreia do Norte de cancelar a cúpula pode também ser entendida como uma resposta ao presidente Trump, que repetidamente descreveu a si mesmo como um negociador experiente. Recentemente, ele atacou o ex-secretário de Estado americano John Kerry por se recusar a abandonar as conversações quando o acordo nuclear com o Irã estava sendo negociado.
Segundo Trump, a falta de disposição de Kerry para abandonar as conversas acabou levando a um acordo que o presidente rotulou como o pior da história – pacto esse do qual ele recentemente retirou os EUA.
Com sua ameaça de cancelar a cúpula, Kim, de certa forma, ganhou vantagem em relação a Trump, afirmando que ele não somente pode abandonar um mau acordo, mas que também pode cancelar um encontro que não satisfaça suas condições. Portanto, tanto Trump quanto Kim têm interesse em fazer a cúpula histórica se tornar realidade – mesmo que seja apenas para atuar diante de suas respectivas audiências domésticas.
"Temos que ter uma visão realista em relação à Coreia do Norte em termos de seus desejos e planos", propõe Han Park, ex-negociador que visitou a Coreia do Norte mais de 50 vezes. "Um plano coerente ou uma estratégia de longo prazo para lidar com Pyongyang, além do mantra de desnuclearização do governo Trump, permanece ausente", constata.
"Claro que Trump gostaria que houvesse desnuclearização, mas a Coreia do Norte não vai desistir de suas aspirações nucleares ou de ter uma capacidade de defesa militar contra os Estados Unidos", adverte o especialista. "Eles não vão abrir mão dessa capacidade sem ter uma garantia de paz. E não discutimos ainda o que podemos dar à Coreia do Norte em troca da paz e da desnuclearização."
Preocupações com segurança
Se a administração Trump fala a sério sobre negociar desnuclearização, deve levar em consideração as preocupações de segurança da Coreia do Norte, ressalta Davenport.
"Pyongyang considera a presença militar dos EUA na região uma ameaça. E os EUA terão que reduzir esta ameaça se quiserem que a Coreia do Norte dê passos significativos para suspender e reverter seu programa de armas nucleares."
Em preparação para a cúpula, os EUA – e especialmente o próprio presidente – precisam entender que há um preço a pagar pelos passos em direção ao desarmamento nuclear norte-coreano, dizem os especialistas. Os EUA também precisam estar cientes de que tal esforço levará tempo e não pode ser alcançado em um ambiente de alto nível entre Trump e Kim.
"Na melhor das hipóteses, é o começo de algo, na pior das hipóteses, é um gesto simbólico e demonstrativo, especialmente da parte de Trump", avalia Park.
"Em vez de se concentrar demais nesse único evento, Washington deveria se concentrar na desnuclearização como uma meta de longo prazo, reconhecendo que, nesse ínterim, medidas que reduzam a ameaça representada pelas armas nucleares da Coreia do Norte e que reduzam a capacidade de expandir seu arsenal ainda podem ser significativas e beneficiar a segurança nacional dos EUA.
O "modelo líbio"
Em um comunicado divulgado nesta semana, o ex-negociador nuclear norte-coreano Kim Kye Gwan atacou o novo assessor de Segurança Nacional do presidente Trump, John Bolton. "Nós não escondemos nosso sentimento de repugnância em relação a ele", disse.
Kim se sentiu ofendido depois que Bolton – um linha-dura que tem histórico de defender ações militares preventivas em países como Irã, Iraque e Coreia do Norte – sugeriu que o desarmamento nuclear da Líbia sirva de modelo para a Coreia do Norte.
Compreensivelmente, a comparação com a Líbia não caiu bem em Pyongyang, porque menos de dez anos depois que a Líbia encerrou suas atividades nucleares, o líder do país Muammar Kadafi foi derrubado e morto, depois de uma intervenção militar que incluiu os EUA.
Nesta quinta-feira, Trump também mencionou o modelo líbio, sugerindo que Kim poderá ter o mesmo destino de Kadafi caso Washington e Pyongyang não cheguem a um acordo.
O presidente parecia não estar ciente do acordo nuclear de 2003, interpretando como "modelo líbio" a intervenção da Otan em 2011 que resultou na deposição de Kadafi e, mais tarde, em sua morte por rebeldes nas ruas de Trípoli.
"O modelo, se observarmos o modelo com Kadafi, foi de dizimação total. Fomos lá para vencê-lo. Esse modelo poderá ser usado, muito provavelmente, se não chegarmos a um acordo", disse Trump.
"Mas se chegarmos a um acordo, acho que Kim Jong-un ficará muito contente", disse o presidente, sugerindo que a sobrevivência do regime norte-coreano dependerá da intenção de Kim em desnuclearizar o país. "Ele vai poder governar seu país. Seu país poderá ser muito, muito rico", afirmou.
Desconfiança de Bolton
O que a missiva de Kim não mencionou explicitamente – mas o que provavelmente é uma explicação ainda melhor para a hostilidade da Coreia do Norte em relação a Bolton – é seu papel na rejeição de um acordo nuclear a que um governo americano anterior havia chegado com Pyongyang – assim como fez recentemente com o acordo com o Irã.
"A Coreia do Norte tem uma razão legítima para desconfiar de John Bolton", diz Davenport. "Ele foi fundamental para matar o acordo negociado entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte quando Bush sucedeu Clinton como presidente."
Como o acordo nuclear posterior com o Irã, o acordo com a Coreia do Norte assinado em 1994 por Bill Clinton é extremamente polêmico e nunca ratificado pelo Congresso americano. A classificação da Coreia do Norte pelo presidente George W. Bush como um membro do chamado "eixo do mal" marca o fim de fato do acordo.
O ex-negociador norte-coreano Park, que conhece Bolton pessoalmente, acha que o assessor de Segurança Nacional de Trump tem uma visão anacrônica dos assuntos globais.
"Ele é basicamente um militarista. Ele acha que as coisas devem ser resolvidas através de meios militares. Mas esse tempo acabou. Não podemos usar meios militares contra a Coreia do Norte."
Mas Park também oferece conselhos para o secretário de Estado, Mike Pompeo, que disse recentemente que "se a Coreia do Norte adotar uma ação ousada para rapidamente se desnuclearizar, os Estados Unidos estão preparados para trabalhar com a Coreia do Norte para alcançar prosperidade no mesmo nível que nossos amigos sul-coreanos”.
"Quando Pompeo sugere que a Coreia do Norte pode ser assistida pelos EUA para se tornar como a Coreia do Sul – não é isso que eles querem. Eles não querem ser uma pequena Coreia do Sul. Eles querem o dinheiro, mas não através de meios capitalistas, de propriedade privada ou coisa parecida. Eles não querem ser como a Alemanha Oriental", diz Park.
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