"Quando Bolsonaro perdeu as eleições, choramos de alívio. Tínhamos sobrevivido. Mas o ódio não foi embora. Quem achava que bastaria mudar de presidente para que o horror começasse a ceder foi inocente."
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"Vou te estuprar e depois cortar a tua cabeça". Essa frase estava em uma mensagem que foi enviada em fevereiro para a professora e blogueira feminista Lola Aronovich. Quando Lola contou o fato no Twitter, não me surpreendi. Conheço Lola há mais de dez anos. E, desde sempre, ela sofreu ameaças de morte. O motivo? Lola é feminista e tem um blog, onde ousa falar o que pensa e denunciar "incels" e masculinistas (os perigosos homens que odeiam as mulheres).
E ser feminista em um país misógino como o Brasil é perigoso. Se mulheres já correm risco, quem denuncia o machismo corre risco em dobro. Assim como quem tem voz e luta pelos direitos humanos. Quem faz todas essas coisas, e além de tudo, é uma mulher negra, corre mais risco ainda.
Era esse o perfil de Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018. Há cinco anos, passamos por esse choque, um dos maiores da nossa geração.
O horror dessa morte deveria ter servido de alerta para o crescimento da violência contra mulheres feministas e ativistas no Brasil e para que algo do tipo nunca mais se repetisse. Mas, de lá para cá, o cenário só piorou.
Epidemia de mulheres ameaçadas de morte
No momento, o Brasil vive uma epidemia de mulheres ameaçadas de morte. Entre fevereiro e os primeiros dias de março, além de Lola, pelo menos mais 12 mulheres receberam ameaças por causa de ativismo e/ou participação política. Fiz esse levantamento baseado em notícias que saíram na mídia. Ou seja, esses são apenas os casos que tiveram repercussão.
Das ameaças registradas entre fevereiro e março, a mais repercutida foi o caso da atriz e humorista Livia La Gatto, que recebeu uma mensagem do coach Thiago Schutz onde dizia que, se ela não retirasse um conteúdo humorístico sobre ele da internet, receberia "processo ou bala".
Entre as outras mulheres que foram ameaçadas de morte, estão a advogada feminista Luanda Pires, do MeToo Brasil, e pelo menos cinco vereadoras de Santa Catarina. Sim, em um só estado do Brasil, mulheres de cidades diferentes passaram a ser ameaçadas após serem eleitas. É um escândalo.
E, enquanto escrevo esse texto, três mulheres que lutam pela preservação da Reserva Extrativista Tapajós, no Pará, denunciam que estão sendo ameaçadas. Um perigo real.
As vítimas desses crimes, além de serem mulheres, têm em comum o fato de terem voz e quererem mudar as coisas, algo que parece ser ofensivo em um país machista como o Brasil.
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Anos sob ataque
Ser mulher no Brasil nunca foi fácil. Mas, nos últimos anos, piorou. Ser feminista, ativista e jornalista, por exemplo, passou a ser quase uma senha para sofrer ataques da extrema direita brasileira durante o governo Bolsonaro.
Vivemos esses quatro anos sendo alvo de violência (falo no plural porque também fui vítima, por conta do meu trabalho como jornalista e dos meus posicionamentos feministas).
Quando Bolsonaro perdeu as eleições, choramos de alívio. Tínhamos sobrevivido. Mas o ódio não foi embora. Quem achava que bastaria mudar de presidente para que o horror começasse a ceder foi inocente.
O terror continua. E isso não tem nada de "normal". É importante lembrar que em países democráticos sérios mulheres não são constantemente ameaçadas por fazerem seus trabalhos e lutarem por suas causas.
Estou falando de mulheres ativistas ameaçadas. Quando abrimos mais o espectro e olhamos para toda a sociedade, a situação é muito pior. Segundo pesquisa da Rede de Observatórios de Segurança divulgada semana passada, em 2022 uma mulher foi vítima de violência a cada quatro horas e, a cada seis horas, uma foi vítima de feminicídio.
Desesperador.
A solução para esse cenário não é fácil. Mas, para começar, os criminosos precisam pagar pelos seus crimes e a violência contra as mulheres precisa parar de ser banalizada.
Não é normal que sejamos ameaçadas de morte por ex-parceiros ao terminar um relacionamento (e muitas de fato morrem) ou porque sermos feministas, ativistas ou jornalistas.
Não podemos nos acostumar com esse cenário onde mulheres são eleitas vereadoras e passam a ser ameçadas ou onde uma advogada feminista precisa andar com seguranças.
Em uma democracia de verdade, ser feminista e ativista não pode ser sinônimo de correr risco de vida. Jamais.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.
As heroínas do Brasil
Mulheres inscritas no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria e protagonistas ainda pouco reconhecidas na história do país.
Foto: Public domain
Anita Garibaldi
Chamada de "heroína dos dois mundos", a catarinense Ana Maria de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi (1824-1849), lutou pelos ideais republicanos ao lado do marido, Giuseppe Garibaldi, tanto no Brasil quanto na Itália, respectivamente, na Guerra dos Farrapos e no movimento pela unificação italiana. Desde 2012, seu nome está inserido no "Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria".
Foto: Public domain
Bárbara de Alencar
O livro no Panteão da Pátria em Brasília também inclui Bárbara de Alencar (1760-1832). A avó do escritor José de Alencar participou da Confederação do Equador, impulsionando o ideal republicano no Ceará no inicio do século 19. Ainda hoje se pode visitar a masmorra em que foi presa e torturada na fortaleza que dá nome à capital alencarina. Ela é considerada a primeira presa política do Brasil.
Foto: Public domain
Ana Néri
Em 2009, a baiana Ana Justina Ferreira Nery (1814-1880) iniciou a lista das Heroínas da Pátria. Depois de viúva, ela partiu com seus três filhos para frente de batalha na Guerra do Paraguai, onde cuidou de feridos, organizou hospitais de campanha e montou uma enfermaria às próprias custas na ocupada capital paraguaia. Ganhou a fama de "Mãe dos Brasileiros" e primeira enfermeira do Brasil.
Foto: Public domain
Jovita Feitosa
Aos 17 anos, a cearense Antônia Alves Feitosa (1848-1867), conhecida como "Jovita", travestiu-se de homem para lutar na Guerra do Paraguai. Mesmo com sua identidade desmascarada, foi aceita no corpo de voluntários e ganhou fama nacional, mas foi impedida de ir ao campo de batalha. Foi incluída no Livro das Heroínas da Pátria em 2017 e hoje dá nome a uma importante avenida da capital do seu estado.
Foto: Public domain
Maria Quitéria
Como "Soldado Medeiros", a baiana Maria Quitéria de Jesus Medeiros (1792-1853) participou ativamente nas lutas pela independência do Brasil em 1822. Sua habilidade com armas e disciplina militar fizeram com que ela permanecesse no exército mesmo depois de sua identidade ter sido revelada. Foi a primeira mulher a entrar em combate pelo Brasil e condecorada pelo próprio imperador Dom Pedro 1°.
Foto: public domain
Joana Angélica
Se Maria Quitéria foi a guerreira das lutas pela independência na Bahia, a freira Joana Angélica de Jesus (1761 - 1822) é considerada a mártir desse movimento. No ano de sua morte, os saques praticados pelas tropas portuguesas em Salvador também atingiram o Convento da Lapa, no qual era abadessa. Ao tentar impedir que entrassem no convento, Joana Angélica foi esfaqueada por um dos soldados.
Foto: Public domain
Maria Felipa de Oliveira
A luta pela independência na Bahia teve a participação de outra importante personagem: Maria Felipa de Oliveira. A marisqueira e pescadora da ilha de Itaparica liderou um grupo de mulheres e homens de diferentes classes e etnias, combatendo tropas portuguesas e incendiando navios que se preparavam para atacar Salvador. Ela é conhecida como a Heroína Negra da Independência.
Foto: Public domain
Clara Camarão
No século 17, a índia potiguar Clara Camarão participou junto ao marido, Felipe Camarão, também um Herói da Pátria, das lutas de resistência contra as invasões holandesas no Nordeste brasileiro. Para os historiadores, embora pouco se saiba sobre a vida da guerreira potiguar, seu reconhecimento como Heroína da Pátria dá destaque a personagens indígenas pouco prestigiados na história do Brasil.
Foto: tse/biblioteca digital
Zuzu Angel
Zuzu Angel (1921-1976) é a única mulher da recente história brasileira a ser reconhecida como Heroína da Pátria. Segundo a jornalista Hildegard Angel, o nome de sua mãe está junto a todos aqueles que sofreram sob a ditadura. Após a morte de seu filho pelo regime em 1971, a estilista passou a denunciar as arbitrariedades dos militares. Morreu em acidente de carro atribuído aos agentes de repressão.
Foto: Public domain/Arquivo Nacional Collection
Heroínas desconhecidas
Em 2019, a Mangueira se tornou campeã do Carnaval carioca com enredo que fala dos heróis e heroínas desconhecidas do Brasil. Uma delas foi Esperança Garcia, reconhecida simbolicamente pela OAB como a primeira advogada do Piauí. Em 1770, ela escreveu uma petição ao presidente da província, denunciando maus- tratos e abusos sofridos por ela e seu filho na fazenda em que eram escravos.
Foto: Divulgação
Marias, Mahins, Marielles, malês
Além de Dandara dos Palmares, defensora da liberdade dos negros ao lado do marido, Zumbi, foram lembradas Luísa Mahin, que articulou o levante de escravos na Bahia conhecido como Revolta dos Malês; e Marielle Franco, política e ativista assassinada em 2018 no Rio de Janeiro. "Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês", lembra o samba-enredo da escola vencedora.
Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000. Desde 2015, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão em Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada.